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sábado, 30 de julho de 2016

Terrorismo, lobos solitários e a matança como espetáculo

Entramos numa nova fase do terrorismo, em que a divulgação nas redes sociais potencializa o medo e estimula uma epidemia de atentados 

Nas últimas cinco horas de sua vida, enquanto cometia o maior massacre a tiros da história recente dos Estados Unidos, que deixou 49 mortos e 53 feridos na boate gay Pulse, em Orlando, o americano Omar Mateen sacou várias vezes o celular e buscou, no Facebook, as expressões “shooting” (tiroteio) e “Pulse Orlando”. Mateen queria medir a repercussão de seu espetáculo sangrento, ainda em curso, nas redes sociais e na internet. Enquanto mantinha vítimas em cativeiro, ele também telefonou para uma emissora de televisão e chamou a polícia. Mais do que uma consequência, a transformação do massacre em um show de horror, que alcançasse imediatamente o maior número de pessoas possíveis, foi deliberadamente perseguida pelo terrorista.


Horas antes de começar o tiroteio dentro da Pulse, Mateen telefonou à polícia para jurar lealdade ao grupo terrorista Estado Islâmico (EI). Um rapaz de 29 anos, nascido numa família de afegãos que imigrara para os Estados Unidos, Mateen era muçulmano e frequentava uma mesquita na cidade onde morava, na Flórida. Mas não era devoto disciplinado e, quando ia à mesquita, não trocava meia palavra com os demais. Rezava e logo ia embora. O que ressaltava na personalidade de Mateen era sua instabilidade.

Na infância, ele fora um garoto agressivo, disperso. Na adolescência, colecionara advertências escolares por brigar com colegas e desrespeitar regras. Na vida adulta, direcionou a agressividade para o emprego como segurança de um centro de detenção de jovens. Alardeava ter ligações com o Hezbollah, a milícia xiita do Líbano considerada terrorista pelos Estados Unidos. Por isso, entrara numa lista de investigados do FBI. Ao mesmo tempo, expunha seus preconceitos sem muito pudor: racismo, machismo, antissemitismo e, exageradamente, homofobia. Tivera um rápido casamento com uma jovem muçulmana, conhecida pela internet, que logo quis se separar dele por causa de seu comportamento violento.

Mateen visitou a boate Pulse, frequentada especialmente por gays e simpatizantes
, pelo menos uma dúzia de vezes antes do ataque. Chegou a fazer um perfil em um aplicativo de relacionamento gay e a conversar com um usuário que descreveu seu comportamento como “esquisito”. Após a morte de Mateen, abatido a tiros pela polícia, o limite entre a espreita de suas vítimas e o pertencimento à comunidade gay ficou impreciso. Apesar de o Estado Islâmico logo ter declarado Mateen um soldado de sua guerra fundamentalista contra o Ocidente,  a investigação não encontrou  ligações dele com a organização terrorista. Assim também ficou impreciso se o ato de Mateen era um gesto de extremismo solitário ou um assassinato em massa levado a cabo por um indivíduo com aversão à homossexualidade, talvez a própria. Na dúvida, Mateen acabou enquadrado na categoria dos “lobos solitários”, os terroristas que se radicalizam depois de acessar pela internet a maciça propaganda virtual disseminada pelo Estado Islâmico e outras organizações, e perpetram atentados, sem nenhum planejamento sofisticado e apoio logístico dos grupos terroristas.

Desde  o massacre de Orlando, em 12 de junho, uma série de atentados terroristas, assassinatos em massa, chacinas  aconteceram em países do Ocidente e no Japão numa sequência ao mesmo tempo impressionante e apavorante. Alguns ataques têm um caráter ideológico, outros não e outros caem numa zona cinzenta. Boa parte deles foi reivindicada por aparentes “lobos solitários” como Mateen, que proclamaram estar agindo em nome do Estado Islâmico. Foi o caso de Mohamed Lahouaiej Bouhlel, um tunisiano morador de Nice, na Riviera Francesa, que matou 84 pessoas e feriu centenas de outras ao dirigir em alta velocidade um caminhão de 19 toneladas contra uma multidão que assistia à beira-mar à queima de fogos do Dia da Bastilha, a data nacional francesa.



Fonte: Revista Época


 
 

sábado, 16 de julho de 2016

Por que os atentados estão ficando cada vez mais brutais

Um motorista assassino no comando de um caminhão deixa um rastro de mais de 80 mortos no sul da França – e o terrorismo sobe mais um degrau na escalada da brutalidade 


A sensação de déjà-vu foi inevitável. A cada novo relato, vídeo publicado ou imagem compartilhada de Nice, o balneário chique da icônica Côte d’Azur francesa, o mundo foi transportado mais uma vez à Paris de novembro de 2015. A cidade do sul da França foi alvo, na quinta-feira, do segundo maior atentado terrorista da história recente do país: foram 84 mortos, entre eles dez crianças e adolescentes. Os feridos ultrapassam os 200, dos quais 50 se encontram em estado grave, sob tratamento em hospitais da cidade. A arma da vez foi um caminhão frigorífico de 19 toneladas. Ele foi lançado contra uma multidão reunida à beira-mar para comemorar o 14 de Julho, maior feriado cívico do país. No Dia da Bastilha, Nice virou um palco de carnificina de inocentes, sem sentido ou explicação plausível, como a Paris daquela sexta-feira 13 de novembro.


Trata-se do terceiro atentado de grande magnitude a atingir a França em um espaço de 18 meses. O Estado Islâmico assumiu a autoria do atentado no sábado, afirmando que "o homem por trás da operação em Nice era um soldado do Estado Islâmico e lançou o ataque para atender aos chamados para atacar os cidadãos dos países que fazem parte da coalizão internacional que combate o Estado Islâmico". Especialistas em terrorismo ainda questionam se o motorista tinha ligação de fato.

O governo francês, na figura do presidente François Hollande e do primeiro-ministro Manuel Valls, disse tratar-se, sim, de um ato terrorista, independentemente da procedência. A França parece ter se convertido no alvo preferencial – e vulnerável – para tais atentados. Isso é consequência em parte de seu papel como integrante da coalizão liderada pelos Estados Unidos que combate o Estado Islâmico na Síria e no Iraque. Os franceses estão envolvidos também em ações militares contra grupos islâmicos militantes na África subsaariana

A articulação de células jihadistas bem-sucedidas no recrutamento de terroristas nos subúrbios e nas prisões francesas também é um fator importante na sequência de atentados. E as multidões, pacíficas, em festa e em momentos de descontração parecem ser cada vez mais atrativas para a escalada empreendida pelos terroristas que lançam mão de qualquer tipo de arma até mesmo caminhões –, apenas com o objetivo de propagar o medo e a sensação de uma guerra civil .

 >> O atentado em Nice escancara a vulnerabilidade da França



O alvo da vez foram as comemorações do Dia da Bastilha, marco da Revolução Francesa, que reúnem milhares de pessoas todos os anos com desfiles militares, programação cultural e queimas de fogos. Em Nice, o feriado é celebrado à beira-mar, quando turistas e moradores, muitos com suas famílias e crianças pequenas, abarrotam bares e cafés e se reúnem para assistir ao show pirotécnico nas praias da Promenade des Anglais, a charmosa avenida que serpenteia a costa mediterrânea na cidade e abriga a casa de ópera da cidade e o icônico hotel Negresco. É uma espécie de versão local da Avenida Atlântica carioca.

O horror começou por volta das 11 da noite (horário local), quando o show de fogos estava acabando. A multidão que participava da festa caminhava pela avenida, retornando para suas casas ou se encaminhando para os bares abertos. Foi quando um grande caminhão branco entrou na Promenade, próximo a um hospital infantil. Ali, se iniciou um trajeto mortal (leia no mapa no final da página): o motorista, o tunisiano Mohamed Lahouaiej Bouhlel, de 31 anos, lançou o veículo contra uma das calçadas, atropelou logo duas pessoas, retornou à rua e avançou em alta velocidade ziguezagueando. Ele foi derrubando quem e o que estivessem a sua frente.

O caminhão só foi interceptado pela polícia, que trocou tiros com Bouhlel até conseguir abatê-lo, depois de ele percorrer 2 quilômetros, deixando atrás de si um rastro de mortos e feridos. “Eu vi corpos voar como pinos de boliche na pista. Ouvi barulhos e gritos que nunca vou esquecer”, descreveu o jornalista francês Damien Allemand, do jornal local Nice Matin. Câmeras capturaram imagens de mães carregando carrinhos de bebê e gritando horrorizadas, buscando abrigo nos edifícios próximos. Vídeos chocantes de corpos estendidos, desconjuntados e desfigurados, espalhados pela avenida, tomaram as redes sociais.


“Vimos os fogos e estávamos voltando para pegar o bonde. Dependemos dele para voltar para casa porque moramos longe do centro. Estávamos caminhando pela rua, porque ela estava fechada, e aí subimos na calçada. Dois ou três minutos depois, ouvimos os tiros”, diz a brasileira Ana Carolina Pereira, de 38 anos. Ela mora com o marido, cidadão português, em Nice, há dois meses. “Eu não olhei para trás, eu não vi o que estava acontecendo. Só ouvi os tiros e vi gente correndo. Recém-operado da coluna, meu marido não pode correr. Minha preocupação era ele. Entramos em um restaurante na praia e procuramos abrigo. Nós perguntávamos para as pessoas o que estava acontecendo e ninguém sabia”, diz Ana Carolina, ao relatar seus momentos de pânico.


 3. Policiais diante do caminhão usado no crime (Foto: VALERY HACHE/AFP)

Entre as mais de 80 vítimas estão um executivo americano e seu filho de 11 anos, uma estudante russa de 21 anos  e uma mulher marroquina, mãe de sete filhos. O jornal New York Times testemunhou a reza da família de uma das vítimas, uma mulher muçulmana, estendida na avenida: seu filho orava para que ela fosse “aceita no paraíso”. Os corpos espalhados pela rua foram cobertos com toalhas de mesa tiradas dos restaurantes próximos, numa tentativa mínima de preservar sua dignidade. “Perdi minha amiga de infância, uma pessoa linda”, lamentava uma usuária de um grupo de moradores de Nice no Facebook. “Quero prestar-lhe homenagem e dizer que estamos todos unidos.”

Até o momento, ao menos um brasileiro consta entre os feridos. O técnico de enfermagem Anderson Happel, de 24 anos, foi atingido na perna esquerda pelo para-choque do caminhão. “Tinha muita criança morta e as mães pedindo a Deus para elas voltarem a viver. Vi muita gente morta, isso me deixou em estado de choque”, afirmou Happel em depoimento ao site de notícias G1.

Pouco depois do ataque, dezenas de posts começaram a circular no Facebook e Twitter – retratos de pessoas com mensagens como “desaparecida desde ontem às 23 horas”, “a família está em busca”, “por favor, passem adiante”. A foto de um bebê de 8 meses, perdido pela família, foi compartilhada centenas de vezes – de acordo com a publicação on-line, o bebê foi encontrado, mas toda a sua família estava internada. Moradores montaram uma página, a SOS Nice, para compartilhar os casos de desaparecidos: dezenas de retratos de esposas, maridos, filhos, casais – que não dão notícias desde a noite de quinta-feira e encontravam-se num local próximo ao atentado.


As motivações por trás do ataque ainda precisam ser esclarecidas. Bouhlel trabalhava como motorista e tinha ficha policial com casos de furtos e roubos. Mas não era investigado e nem estava incluído em nenhuma lista de terrorismo – autoridades francesas e tunisianas afirmaram que Bouhlel não aparecia conectado a nenhuma rede jihadista. Sua primeira condenação criminal, uma agressão no trânsito, aconteceu em março. Seus vizinhos dizem que ele não aparentava ser religioso. Vizinhos da esposa, da qual estava separado, o descrevem como  agressivo e violento. Dentro do caminhão, foram encontrados duas armas automáticas, munição, um celular, os documentos de Bouhlel, além de armas falsas. Um egípcio, presente na hora em que a polícia interceptou o veículo, testemunhou o tiroteio em que ele foi abatido. “Nós pensamos no começo que fosse um acidente, até vermos que ele sacou uma arma e começou a atirar contra a polícia. Nesse momento, entendi que havia algo de errado. Começamos a correr porque pensávamos que poderia haver uma bomba dentro do caminhão. Eu o  vi por um momento. Ele estava muito nervoso, procurando algo dentro do caminhão”, disse à BBC.

A circulação de veículos pesados não é permitida no centro de Nice. Por causa das festas do Dia da Bastilha, havia ainda restrições adicionais ao trânsito. Para completar, a França está em estado de alerta máximo e de emergência desde novembro do ano passado. Ainda não foi esclarecido como Bouhlel, com todas essas barreiras, foi capaz de furar o perímetro de segurança organizado para as festividades. De acordo com relatos publicados pelo jornal britânico The Telegraph, o caminhão teria sido parado pela polícia, e Bouhlel, para conseguir avançar com o veículo, disse que iria entregar sorvete. 

 A França mergulha em um novo período de luto e atenção máxima. O ataque em Nice, assim como os que o precederam, foi simbólico. Atinge o espaço público, num dia de uma festividade nacional. Nas redes sociais, marchas em homenagem às vítimas começavam a ser organizadas. Em um grupo organizado por moradores da cidade, o J’ai Nice Dans la Peau! (Sou apaixonado por Nice), a convocação teve respostas positivas. “Permanecemos unidos e fortes perante o horror”, disse uma moradora de Nice. “Vamos à Promenade na próxima quinta-feira e acenderemos velas às 23 horas. Vamos mostrar que desafiamos esses obscurantistas loucos”, reagiu outra francesa. Parece um bom jeito de recomeçar: contra a escuridão do radicalismo, só as luzes da resistência e da união podem ser eficazes.


 >> FOTOS: Atentado provoca pânico na multidão em Nice

>> Parte da reportagem de capa da edição de ÉPOCA desta semana