Um motorista assassino no comando de um
caminhão deixa um rastro de mais de 80 mortos no sul da França – e o
terrorismo sobe mais um degrau na escalada da brutalidade
A sensação de déjà-vu foi inevitável. A cada novo relato, vídeo publicado ou imagem compartilhada de Nice, o balneário chique da icônica Côte d’Azur francesa, o mundo foi transportado mais uma vez à Paris de novembro de 2015. A cidade do sul da França foi alvo, na quinta-feira, do segundo maior atentado terrorista da história recente do país:
foram 84 mortos, entre eles dez crianças e adolescentes. Os feridos
ultrapassam os 200, dos quais 50 se encontram em estado grave, sob
tratamento em hospitais da cidade. A arma da vez foi um caminhão
frigorífico de 19 toneladas. Ele foi lançado contra uma multidão reunida
à beira-mar para comemorar o 14 de Julho, maior feriado cívico do país.
No Dia da Bastilha, Nice virou um palco de carnificina
de inocentes, sem sentido ou explicação plausível, como a Paris daquela
sexta-feira 13 de novembro.
Trata-se do terceiro atentado de grande magnitude a atingir a França
em um espaço de 18 meses. O Estado Islâmico assumiu a autoria do
atentado no sábado, afirmando que "o homem por trás da operação em Nice
era um soldado do Estado Islâmico e lançou o ataque para atender aos
chamados para atacar os cidadãos dos países que fazem parte da coalizão
internacional que combate o Estado Islâmico". Especialistas em
terrorismo ainda questionam se o motorista tinha ligação de fato.
O governo francês, na figura do presidente François Hollande e do primeiro-ministro Manuel Valls, disse tratar-se, sim, de um ato terrorista, independentemente da procedência. A França
parece ter se convertido no alvo preferencial – e vulnerável – para
tais atentados. Isso é consequência em parte de seu papel como
integrante da coalizão liderada pelos Estados Unidos que combate o Estado Islâmico na Síria e no Iraque.
Os franceses estão envolvidos também em ações militares contra grupos
islâmicos militantes na África subsaariana.
A articulação de células
jihadistas bem-sucedidas no recrutamento de terroristas nos subúrbios e
nas prisões francesas também é um fator importante na sequência de
atentados. E as multidões, pacíficas, em festa e em momentos de
descontração parecem ser cada vez mais atrativas para a escalada
empreendida pelos terroristas que lançam mão de qualquer tipo de arma –
até mesmo caminhões –, apenas com o objetivo de propagar o medo e a
sensação de uma guerra civil .
>> O atentado em Nice escancara a vulnerabilidade da França
O alvo da vez foram as comemorações do Dia da Bastilha, marco da
Revolução Francesa, que reúnem milhares de pessoas todos os anos com
desfiles militares, programação cultural e queimas de fogos. Em Nice, o
feriado é celebrado à beira-mar, quando turistas e moradores, muitos com
suas famílias e crianças pequenas, abarrotam bares e cafés e se reúnem
para assistir ao show pirotécnico nas praias da Promenade des Anglais, a
charmosa avenida que serpenteia a costa mediterrânea na cidade e abriga
a casa de ópera da cidade e o icônico hotel Negresco. É uma espécie de
versão local da Avenida Atlântica carioca.
O
horror começou por volta das 11 da noite (horário local), quando o show
de fogos estava acabando. A multidão que participava da festa caminhava
pela avenida, retornando para suas casas ou se encaminhando para os
bares abertos. Foi quando um grande caminhão branco entrou na Promenade,
próximo a um hospital infantil. Ali, se iniciou um trajeto mortal (leia no mapa no final da página):
o motorista, o tunisiano Mohamed Lahouaiej Bouhlel, de 31 anos, lançou o
veículo contra uma das calçadas, atropelou logo duas pessoas, retornou à
rua e avançou em alta velocidade ziguezagueando. Ele foi derrubando
quem e o que estivessem a sua frente.
O caminhão só foi
interceptado pela polícia, que trocou tiros com Bouhlel até conseguir
abatê-lo, depois de ele percorrer 2 quilômetros, deixando atrás de si um
rastro de mortos e feridos. “Eu vi corpos voar como pinos de boliche na
pista. Ouvi barulhos e gritos que nunca vou esquecer”, descreveu o
jornalista francês Damien Allemand, do jornal local Nice Matin.
Câmeras capturaram imagens de mães carregando carrinhos de bebê e
gritando horrorizadas, buscando abrigo nos edifícios próximos. Vídeos
chocantes de corpos estendidos, desconjuntados e desfigurados,
espalhados pela avenida, tomaram as redes sociais.
“Vimos
os fogos e estávamos voltando para pegar o bonde. Dependemos dele para
voltar para casa porque moramos longe do centro. Estávamos caminhando
pela rua, porque ela estava fechada, e aí subimos na calçada. Dois ou
três minutos depois, ouvimos os tiros”, diz a brasileira Ana Carolina
Pereira, de 38 anos. Ela mora com o marido, cidadão português, em Nice,
há dois meses. “Eu não olhei para trás, eu não vi o que estava
acontecendo. Só ouvi os tiros e vi gente correndo. Recém-operado da
coluna, meu marido não pode correr. Minha preocupação era ele. Entramos
em um restaurante na praia e procuramos abrigo. Nós perguntávamos para
as pessoas o que estava acontecendo e ninguém sabia”, diz Ana Carolina,
ao relatar seus momentos de pânico.
3. Policiais diante do caminhão usado no crime (Foto: VALERY HACHE/AFP)
Entre as mais de 80 vítimas
estão um executivo americano e seu filho de 11 anos, uma estudante russa
de 21 anos e uma mulher marroquina, mãe de sete filhos. O jornal New York Times
testemunhou a reza da família de uma das vítimas, uma mulher muçulmana,
estendida na avenida: seu filho orava para que ela fosse “aceita no
paraíso”. Os corpos espalhados pela rua foram cobertos com toalhas de
mesa tiradas dos restaurantes próximos, numa tentativa mínima de
preservar sua dignidade. “Perdi minha amiga de infância, uma pessoa
linda”, lamentava uma usuária de um grupo de moradores de Nice no
Facebook. “Quero prestar-lhe homenagem e dizer que estamos todos
unidos.”
Até
o momento, ao menos um brasileiro consta entre os feridos. O técnico de
enfermagem Anderson Happel, de 24 anos, foi atingido na perna esquerda
pelo para-choque do caminhão. “Tinha muita criança morta e as mães
pedindo a Deus para elas voltarem a viver. Vi muita gente morta, isso me
deixou em estado de choque”, afirmou Happel em depoimento ao site de
notícias G1.
Pouco depois do ataque, dezenas de posts começaram a
circular no Facebook e Twitter – retratos de pessoas com mensagens como
“desaparecida desde ontem às 23 horas”, “a família está em busca”, “por
favor, passem adiante”. A foto de um bebê de 8 meses, perdido pela
família, foi compartilhada centenas de vezes – de acordo com a
publicação on-line, o bebê foi encontrado, mas toda a sua família estava
internada. Moradores montaram uma página, a SOS Nice, para compartilhar
os casos de desaparecidos: dezenas de retratos de esposas, maridos,
filhos, casais – que não dão notícias desde a noite de quinta-feira e
encontravam-se num local próximo ao atentado.
As motivações por
trás do ataque ainda precisam ser esclarecidas. Bouhlel trabalhava como
motorista e tinha ficha policial com casos de furtos e roubos. Mas não
era investigado e nem estava incluído em nenhuma lista de terrorismo –
autoridades francesas e tunisianas afirmaram que Bouhlel não aparecia
conectado a nenhuma rede jihadista. Sua primeira condenação criminal,
uma agressão no trânsito, aconteceu em março. Seus vizinhos dizem que
ele não aparentava ser religioso. Vizinhos da esposa, da qual estava
separado, o descrevem como agressivo e violento. Dentro do caminhão,
foram encontrados duas armas automáticas, munição, um celular, os
documentos de Bouhlel, além de armas falsas. Um egípcio, presente na
hora em que a polícia interceptou o veículo, testemunhou o tiroteio em
que ele foi abatido. “Nós pensamos no começo que fosse um acidente, até
vermos que ele sacou uma arma e começou a atirar contra a polícia. Nesse
momento, entendi que havia algo de errado. Começamos a correr porque
pensávamos que poderia haver uma bomba dentro do caminhão. Eu o vi por
um momento. Ele estava muito nervoso, procurando algo dentro do
caminhão”, disse à BBC.
A
circulação de veículos pesados não é permitida no centro de Nice. Por
causa das festas do Dia da Bastilha, havia ainda restrições adicionais
ao trânsito. Para completar, a França está em estado de alerta máximo e
de emergência desde novembro do ano passado. Ainda não foi esclarecido
como Bouhlel, com todas essas barreiras, foi capaz de furar o perímetro
de segurança organizado para as festividades. De acordo com relatos
publicados pelo jornal britânico The Telegraph, o caminhão teria sido parado pela polícia, e Bouhlel, para conseguir avançar com o veículo, disse que iria entregar sorvete.
A
França mergulha em um novo período de luto e atenção máxima. O ataque
em Nice, assim como os que o precederam, foi simbólico. Atinge o espaço
público, num dia de uma festividade nacional. Nas redes sociais, marchas
em homenagem às vítimas começavam a ser organizadas. Em um grupo
organizado por moradores da cidade, o J’ai Nice Dans la Peau! (Sou
apaixonado por Nice), a convocação teve respostas positivas.
“Permanecemos unidos e fortes perante o horror”, disse uma moradora de
Nice. “Vamos à Promenade na próxima quinta-feira e acenderemos velas às
23 horas. Vamos mostrar que desafiamos esses obscurantistas loucos”,
reagiu outra francesa. Parece um bom jeito de recomeçar: contra a
escuridão do radicalismo, só as luzes da resistência e da união podem
ser eficazes.
>> FOTOS: Atentado provoca pânico na multidão em Nice
>> Parte da reportagem de capa da edição de ÉPOCA desta semana