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segunda-feira, 29 de junho de 2020

... E O SETOR PRIVADO QUE SE DANE! - Percival Puggina

O STF, na última quarta-feira (24/06), firmou convicção em favor do emprego público como ideal projeto de vida dos brasileiros. Seria essa uma espécie de “interpretação conforme a Constituição" do disposto em seu art. ao, inciso III, que trata da redução das desigualdades sociais?

Até onde me lembro, sempre foi assim. Na minha infância, toda mãe amorosa, todo pai zeloso sonhava com um bom emprego público para o futuro de seus pimpolhos. Lembro que lá na minha Santana do Livramento, as referências eram o Banco do Brasil, a carreira militar, fiscal da receita. Não sei se essas posições ainda se mantêm cobiçadas. O que sim, sei, é que quanto mais a atividade privada patina em meio às sucessivas crises da economia ao longo das últimas décadas, maior a atração pelos concursos e mais aumenta a população concurseira. Estima-se que, todo ano, cerca de 10 milhões de brasileiros busquem a rede de ensino que opera com foco nesse atraente mercado.

Jovens habitualmente pouco ou nada ligados ao estudo no sistema formal, público ou privado, ao ambicionarem um cargo acessível por concurso, passam a queimar pestanas que cruzaram intactas e dispensadas de maior esforço todos os anos anteriores. O lado bom dessa história é que, aprovado ou não, o concurseiro vai aprender com esforço próprio um pouco mais do que trazia como patrimônio de conhecimento após encerrar seu mal aproveitado ciclo escolar. O lado ruim é o desestímulo para a atividade privada. Impossível recusar o fascínio de uma vida sob a proteção do Estado, a subsistência garantida do ato de nomeação ao túmulo. Estabilidade e segurança nessas proporções não costumam ser disponíveis na atividade autônoma ou no setor produtivo da economia.

Voltemos, então, à recente decisão do STF. Na crise que a covid-19 fez desabar sobre a economia brasileira, empregos viram pó e postos de trabalho, fumaça. Para alimentar a esperança de não voltar ao envio de currículos, às ruas e às entrevistas, trabalhadores concordam com reduzir seus salários e suas jornadas. De algum jeito, que provavelmente lhes vai demandar angustiantes e longos ajustes no orçamento familiar, colaboram com sua quota de sacrifício para que os tutores da pandemia não acabem de vez com seu posto de trabalho.

Já no que concerne ao setor público, o STF (aquele das lagostas e vinhos premiados), por “sólida” convicção de 6x5 em ambos os casos, decidiu que os repasses do Executivo aos outros poderes não devem ser reduzidos em caso de frustração de receita, nem podem os governantes diminuir vencimentos de servidores para compatibilizar sua despesa ao caixa, conforme impõe a responsabilidade fiscal. Conclui-se daí que esta é uma crendice, atingível por feitiços, artes ocultas ou milagres. Não é sensato, nem soa como democrático que, num julgamento desempatado por um único voto e sendo parte interessada, o STF (elite do setor público) derrube decisões tomadas pela maioria dos quase 600 congressistas. Esse é mais um primor da Carta de 1988, que não impõe um número mínimo de votos para que o STF revogue decisões do Congresso. [a Constituição cidadã também é omissa quando não estabelece que decisões derrubando atos do Presidente da República  = Poder Executivo da União = devem ser tomadas pelo Plenário com no mínimo 7 votos a favor da derrubada, não sendo válidas decisões monocráticas contra atos do Presidente.] 

Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.



quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

O Brasil na casinha do cachorro

Para sair, só com a mão armada para controlar as carreiras políticas e do funcionalismo

[antes do concurso público o individuo que não tinha padrinho reclamava do nepotismo;
agora com a consolidação do concurso público,  o individuo que não consegue ser aprovado em um concurso público, chama - em tom pejorativo - de concurseiro,  aquele que batalha para passar em um concurso público.]
 
Em nenhum campo mais que no da política “o meio é a mensagem”. É o sistema que faz as pessoas, e não o contrário. Há sempre um elemento de “o ovo ou a galinha” nesse raciocínio, mas o fato é que, como McLuhan demonstrou em sua obra, a alteração do meio, ou seja, da tecnologia institucional em uso, é muito mais determinante para definir ou mudar os resultados (as mudanças sociais e comportamentais necessárias) do que o conteúdo que transita por esse meio (o discurso do bem ou mesmo a boa intenção que, porventura, tenha nascido sincera).

O caso brasileiro é um exemplo eloquente. Seja quem for que ingresse na política ou no serviço público do jeito que o “sistema” opera hoje, acaba por se corromper. A qualidade da matéria-prima inserida no “processador” pode alterar a velocidade da corrosão, mas ela é incoercível. Ninguém mergulha nesse mar de privilégios e impunidade e sai incólume. O bom comportamento num ambiente assim acaba assumindo o ar de uma denúncia. Ou o recém chegado se corrompe ou acaba sendo expelido como uma ameaça para os demais. Já começa, aliás, por se acumpliciar, pois para entrar na política é obrigatório “acertar-se” com o dono de algum dos partidos, que já vivem de dinheiro do governo e da distribuição de pedaços do Estado, enquanto no serviço público impera o espírito do “concurseiro”, a quem não interessa quando nem onde, tudo o que conta é pôr um pé dentro do privilégio...

Daí para a frente se cria uma cadeia causal. O de entrada é um sistema de seleção negativa. O de permanência, um filtro mais fino ainda. E como o “negócio” passa a ser a criação de dificuldades para proporcionar a venda de facilidades, essa filtragem negativa se estende para a sociedade como um todo. Quem insistir no caminho da lei morrerá afogado na burocracia, pois para seguir adiante na velocidade que o mundo requer é preciso subornar.  Em Estados tanto quanto em empresas, é o sistema de governança muito mais que o esforço despendido por cada indivíduo solitariamente que define o resultado do trabalho. É uma ilusão de noiva achar que algo vai mudar mudando-se apenas as pessoas na operação do mesmo sistema político.

O sistema político faz a riqueza ou a pobreza das nações. É uma falácia o argumento de que o Brasil jamais poderia ter um sistema civilizado. Os suíços e os americanos, entre outros, não nasceram como são hoje. Eles ficaram como são hoje porque por uma conjunção específica de acontecimentos históricos, cada um em seu momento, adotaram um sistema que resulta num filtro de seleção positiva. Não têm o sistema político que têm porque eram mais educados, mais ricos ou mais virtuosos que os demais no ponto de partida. É o contrário, eles ficaram mais ricos e educados porque instituíram um filtro de seleção positiva. A matéria-prima é a mesma aqui e lá, mais inclinada para o vício que para a virtude. Apenas lá, ao contrário daqui, o Estado trabalha para desimpedir os caminhos para a virtude e atravancar os que conduzem ao vício. Tanto que o melhor do que hoje “assinam” como produção própria foi feito por estrangeiros fugitivos de sistemas nos quais só o vício consegue passagem.

A questão da segurança jurídica é crítica. Dada a propensão preferencial da espécie pelo vício, quanto mais longe se colocar a baliza das decisões do arbítrio e do pensamento abstrato, pai do arbítrio, melhor tende a ser o resultado. Existe uma fortíssima coincidência entre a riqueza das nações e o seu sistema jurídico. É sob o sistema de “common law”, que foi comum a toda a Europa, Portugal inclusive, até os primeiros passos das monarquias absolutistas no final do século 13, que vive a maioria das nações mais ricas e livres do mundo. Nesse sistema é o precedente que define a sentença, e não o juiz. É o júri, não o meritíssimo, que define se o caso presente é mesmo idêntico ao anterior. Se a conclusão for que sim, a sentença será automaticamente a mesma que foi dada para aquele. O juiz está lá mais para conferir os ritos do processo do que para qualquer outra coisa, mesmo porque o sentido da justiça terrena é reduzir as oportunidades de corrupção, e não redesenhar a humanidade. O problema é que a corrupção se torna irresistível justamente quando é a liberdade do indivíduo ou até a sua vida que está em jogo, como no caso das decisões judiciais. Os fatos são o que são e podem ser concretamente aferidos na sua sequência e na sua relação causal, enquanto a vontade humana, livre para voar por definição, é sempre uma expressão do arbítrio, a própria negação da impessoalidade que torna previsível, ou seja, segura, a justiça que o investimento em desenvolvimento requer.

Assim também os sistemas políticos. A lei só será “amigável para o usuário” se for feita por ele ou, no mínimo, para ele. A democracia foi inventada para isso. Neste mundo de multidões, porém, ela só pode ser “representativa”. E para ser mesmo “representativa” é preciso que o representante esteja permanentemente sujeito à cobrança do representado e esta, para ser efetiva, tem de ser feita “à mão armada”. Ou seja, a sobrevivência do mandato do cobrado (assim como a do emprego público) tem de estar permanentemente em jogo.

Qualquer brasileiro, por menos educado que seja, sabe que se contratar um empregado amanhã garantindo-lhe que daí por diante será indemissível, faça o que fizer, e ele próprio definirá seu salário independentemente do serviço que entregar, em seis meses estará na casinha do cachorro e o tal empregado, deitado em sua cama.  O Brasil está na casinha do cachorro. Para sair terá de ter a mão armada para ganhar controle efetivo sobre o desenvolvimento futuro das carreiras políticas e do funcionalismo. E só tem esse controle quem tem o poder de demitir. Só o recall,o referendo e as leis de iniciativa popular dão esse poder ao povo de forma irrecorrível. E só com eleições distritais puras essa arma passa a atirar apenas e tão somente se for acionada de modo responsável, transparente e com garantia de atingir somente o alvo visado.
 
Fernão Lara Mesquita - O Estado de S.Paulo 

 

sábado, 11 de junho de 2016

Os privilégios dos servidores

Somos viciados em privilégios. No Brasil, todo mundo tem, ou busca, um privilégio para chamar de seu 

[um único comentário/pergunta: qual a razão de tanto ódio de certa parte da mídia aos funcionários públicos?  
o que leva certos funcionários públicos a ser contra beneficios da categoria a qual pertencem? 
o que motiva alguns jornalistas a omitirem que o tão famoso reajuste dos funcionários públicos será pago em quatro anos, em oito parcelas semestrais?

Lembro que não sou funcionário público. Fui militar, Exército Brasileiro -  ingressei na AMAN por concurso público nacional - e deixei o EB no inicio do governo Collor - por livre e espontânea vontade para trabalhar na iniciativa privada.]
Uma hora esta caixa-preta será aberta. O debate da Previdência Social já mudou as leis em vários países. Não há como nenhum Estado pagar aposentadoria integral de supersalários a funcionários e seus viúvos e viúvas e dependentes. Aposentadorias, pensões e benefícios pagos pela Previdência representam cerca de 20% dos gastos do governo. Vai piorar. Não dá.

Se é para equilibrar contas públicas e não quebrar o país, essa vaca terá de deixar de ser sagrada. Além de prender os ladrões sem-vergonha da República, o Brasil precisa da reforma da Previdência. O Brasil e o resto do mundo, que hoje envelhece muito. Não é para fazer maldade, mas para não perpetuar privilégios e desigualdades até os 100 anos de idade. Há, em países menos hierarquizados, uma estrutura de saúde e acolhimento digna e mais democrática para os velhinhos.

A estabilidade dos servidores – direito adquirido, previsto na Constituição – é outro tabu a discutir. A impossibilidade de demitir um servidor colide com a meritocracia e estimula a acomodação. Alguns países acabaram com a estabilidade, outros a flexibilizaram ou adotaram contratos temporários. O desempenho do servidor passa a ser controlado, premiado ou punido.

O foco do serviço público deveria ser a satisfação do cliente e não a garantia do servidor num emprego vitalício. Há casos em que o servidor se torna mero aproveitador de um cargo ou emprego ao qual só comparece para assinar o ponto ou nem sequer comparece por ter outras fontes de renda. Uma minoria, sim, nascida de um sistema de privilégios.

É um assunto explosivo. Na semana passada, recebi vários protestos de servidores à minha coluna (“O trem da vergonha nos Três Poderes”) que criticava os reajustes e aumentos aprovados pela Câmara a 16 categorias de funcionários públicos, num momento de ajuste fiscal. Dá para entender a mágoa de alguns, quando eu chamo os servidores de “casta privilegiada”. Generalizações são mesmo injustas. Se pensarmos nos professores e policiais, que cuidam de educação e segurança, não há nada de privilégio no dia a dia deles.

Alguns desses leitores não tinham reajuste em seus vencimentos havia vários anos e, com a aprovação do pacote e a bênção do presidente interino Michel Temer, poderão repor as perdas da inflação. Aumentos reais estavam embutidos no pacote de bondades. É importante que os servidores tenham em mente que trabalhadores do setor privado estão abrindo mão de direitos trabalhistas e até de reposição de perdas, para se adequar à crise e evitar demissão. Os autônomos – exceto profissionais liberais como os médicos – tampouco conseguem repor a inflação.

O leitor Alcides Pestana escreveu que “esses jornalistas vivem à caça de notícias deste naipe, será ódio?”. O leitor Fábio Vicente disse que “o ódio pelo servidor público nasce da incapacidade de ser aprovado em concursos os quais (sic) a concorrência chega a mais de 2 mil candidatos/vaga”. O leitor Roberto Tavares disse que “chamar os servidores públicos de casta é um desrespeito com a categoria. Se acham que somos privilegiados, demonstrem que são capazes e façam concurso público”.

Muitos servidores se acham mesmo superiores só porque fazem concurso público. Frequentemente alegam, a seu favor, que “dão o máximo para servir o país”. E isso lhes dá direito a estabilidade e aposentadoria integral? O leitor Paulo Roberto de Almeida, em reação a um editorial do jornal O Estado de S. Paulo, “O déficit da previdência pública”, escreveu: “Eu sou um funcionário público e, para que fique muito claro, quero deixar explícito, mais uma vez, que sou contra: 1) estabilidade no setor público 2) privilégios de qualquer tipo em relação ao setor privado 3) salários exorbitantes 4) outros abusos e vantagens típicos do mandarinato que caracteriza o Brasil. Acho que vai demorar para corrigir, se é que um dia se corrigirão essas iniquidades”.

Há muitas maneiras de enriquecer no Brasil. A mais rápida é se tornando vereador, deputado, senador, prefeito, governador e presidente ou dando a sorte de ser mulher, marido, filho ou parente de qualquer um deles. Não só pelo que ganham, mas pelo que desviam, mamam e roubam (não todos, mas...). Uma outra maneira, mais lenta, de se dar bem na vida financeiramente é: conseguir um emprego público. Faça concurso, e mais concurso, insista. Assim você não poderá ser demitido e vai ganhar tanto penduricalho e benefício em seus vencimentos ao longo da vida que ficará garantido. Mire nos Tribunais de Contas.

No livro Estado, democracia e administração pública no Brasil, o autor, Marcelo Douglas de Figueiredo Torres, escreve: “A defesa de velhos e insustentáveis privilégios geralmente se esconde sob o seguinte argumento: se é para corrigir o problema A, também deveremos atacar simultaneamente os outros problemas B, X, Y ou Z. É cristalino que essa posição é absolutamente fundada na defesa do statu quo. Na prática, o raciocínio é o seguinte: se é preciso acabar com os privilégios dos funcionários públicos, também devemos resolver as questões da sonegação fiscal e dos incentivos tributários, da corrupção, dos favorecimentos na execução orçamentária, dos subsídios aos grandes agricultores, dos empréstimos camaradas do BNDES, dos lucros aviltantes do setor financeiro e assim por diante”. É claro que é fundamental melhorar a gestão da Previdência. Mas não basta.

O Brasil, dos iletrados aos pós-doutores, sabe que corrupção não se combate com altos salários, mas com leis, valores éticos e morais, corregedorias eficientes. E com o controle social. O problema é que nossa sociedade é viciada em privilégios. Todo mundo tem, ou busca, um privilégio para chamar de seu.

Fonte: Ruth de Aquino - Época