Luiz Guedes da Luz Neto
Domingo, 11 de julho de 2021, chegou a notícia de que o povo cubano
tinha ido às ruas para protestar contra o governo, clamando por
liberdade. De acordo com imagens e notícias divulgadas nas redes
sociais, o governo cubano denominou o protesto popular de atos
contrarrevolucionários e determinou a repressão imediata e firme por
parte do estado e seu aparato. Quando percebeu que os protestos foram
divulgados e articulados pelas redes sociais, desligou a internet da
ilha.
Um fato novo que não existia na época da queda da antiga URSS é
a internet, que permite a disseminação da informação de forma
descentralizada. Não se depende mais de uma rádio ou de um canal de
televisão estatal, ou que funcione por concessão pública, para se obter
informação. Com a rede mundial de computadores, a informação circula de
forma livre, sendo possível para moradores de territórios controlados
(através de tecnologia simples como uma VPN) por governos totalitários o
contato com o mundo exterior e com isso terem conhecimento de outras
realidades. Por essa razão regimes totalitários proíbem a internet ou a
limitam.
De acordo com vários perfis em redes sociais, a situação em Cuba é
bastante desoladora, com milhares de pessoas passando fome e morrendo
nos hospitais por problemas de saúde, entre eles a COVID-19. A suspensão
do turismo no último ano contribuiu para a redução da renda do regime
cubano, o que resultou para uma piora na já extremamente precária
infraestrutura. Uma questão ressurge com o movimento recente do povo cubano. Pode um
povo se rebelar contra o seu governo?
Uma rebelião não é um ato ilegal, e
como tal, não pode ser tolerada pelo estado, que deve reprimi-la com
força?
Para responder às questões acima, que podem ser as mesmas de muitas
pessoas, recorro aos ensinamentos de John Locke, na obra “Dois tratados
do governo”, publicado inicialmente em 1690, que permanece atual até os
dias atuais, ajudando a entender sobre o governo civil.
John Locke assim se manifesta sobre a possibilidade de rebelião de um povo contra seu governo:
[…]
sempre que tais legisladores tentarem violar ou destruir a propriedade
do povo, ou reduzi-lo à escravidão sob um poder arbitrário,
colocar-se-ão em estado de guerra com o povo, que fica, a partir de
então, desobrigado de toda obediência e deixado ao refúgio comum
concedido por Deus a todos os homens contra a força e violência” (LOCKE, p. 580).
E continua:
Logo,
sempre que o legislativo transgrida essa regra fundamental da sociedade
e, seja por ambição, seja por medo, insanidade ou corrupção,
busque tomar para si ou colocar nas mãos de qualquer outro um poder
absoluto sobre a vida, as liberdades e as propriedades do povo, por uma
tal transgressão ao encargo confiado ele perde o direito ao poder que o
povo lhe depôs em mãos para fins totalmente opostos, revertendo este ao
povo, que tem o direito de resgatar sua liberdade original e, pelo
estabelecimento de um novo legislativo (tal como julgar adequado), de
prover à própria segurança e garantia, que é o fim pelo qual vive em
sociedade” (LOCKE, p. 580).
O
que John Locke afirmou em relação ao legislativo, também é aplicável ao
executivo, que ele denomina de executor supremo:
O que
disse aqui a respeito do legislativo em geral é válido também para
o executor supremo que, sendo depositário de um duplo encargo a ele
confiado, o de fazer parte do legislativo e o da suprema execução da
lei, age contra ambos quando busca estabelecer sua própria vontade
arbitrária como lei da sociedade (LOCKE, p. 580).
Quando o estado é governado totalmente contra os interesses do povo,
buscando tornar estes escravos, suprimindo a liberdade, a dignidade
humana e a propriedade, perde a sua legitimidade, nascendo, para o povo,
o direito de rebelar-se contra tal governo e exigir, até mesmo pela
força, a constituição de um governo legítimo, que respeite os direitos
do seu povo, que seja realizado em favor do povo e não dos interesses
privados dos governantes.
John Locke assinala que tal governo é pior do que o estado de natureza.
Verdade, de acordo com as teorias contratualistas de Thomas Hobbes, John
Locke e Jean-Jacques Rousseau (na parte comum a elas), o ser humano,
através da adesão a um suposto pacto social, abre mão do direito ao uso
da força em favor de um estado, para que este, através do monopólio do
uso legítimo da força, possa garantir a seus súditos segurança, paz,
liberdade (menor do que no estado de natureza, é verdade) e garantia da
propriedade.
Porém, um estado totalitário, além de não garantir os direitos buscados
com a adesão ao contrato social, procura subjugar os seus cidadãos à
tirania do governante, reduzindo-os à condição de servos ou de escravos.
Quando
o governo suprime a liberdade do povo, retirando deste os direitos
fundamentais para torná-lo escravo, introduz na nação um estado de
guerra, “que é o da força sem autoridade” (LOCKE, p. 585).
O magistério de John Locke é bastante claro e aplicável ao caso cubano:
Todo
aquele que usa de força sem direito, assim como todos aqueles que o
fazem na sociedade contra a lei, coloca-se em estado de guerra com
aqueles contra os quais a usar e, em tal estado, todos os antigos
vínculos são rompidos, todos os demais direitos cessam e cada qual tem o
direito de defender-se e de resistir ao agressor (LOCKE, p. 588-589).
Sobre o direito do povo em relação ao governo que tenta submeter o povo a
um regime tirânico, assim conclui o filósofo inglês:
[…] se
por faltas por parte dos que detêm a autoridade, o direito a esse poder é
perdido, com a perda do direito dos governantes a esse poder ou ao
terminar o prazo estabelecido, retorna este poder à sociedade, e o povo
tem o direito de agir como supremo e continuar o legislativo em si
mesmo, ou instituir uma nova forma, ou ainda, sob a forma antiga,
colocá-lo em novas, conforme julgar adequado.
O
povo cubano tem a legitimidade e o poder de agir como supremo e
escolher qual tipo de governo quer, resistindo ao poder outrora
constituído, porém que não detém mais autoridade, legitimidade, mas
apenas a força e, com esta, tenta ou reduz o povo à escravidão com a
supressão das liberdades, submetendo este a um estado pior do que o
estado de natureza.
Se o povo cubano conseguirá exercer o direito de resistência ao atual
governo, que é uma continuidade de uma ditadura que se instalou há mais
de 60 (sessenta) anos, só o tempo dirá. Na torcida para que o povo
cubano, o real possuidor do poder civil, possa instituir um novo governo
e, com isso, construir dias melhores, nos quais a liberdade possa ser
exercida da melhor forma possível.
Luiz Guedes da Luz Neto
Referência: LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.