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quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

É sobre isso Tenho pena de Lula. E do canalha-ao-lado. E explico por quê

Paulo Polzonoff Jr.

É sobre isso

Ao procurar uma imagem para ilustrar este texto, me ocorreu esta pergunta: Barrabás foi perdoado?

Não existe nada mais difícil do que ser misericordioso. Ou caridoso. Por isso os ensinamentos cristãos de 2000 anos atrás são tão fascinantes. E tão difíceis de serem assimilados e incorporados à vida cotidiana. Sobretudo aqui na nossa contemporaneidade, com tantos guerreiros narcisistas que, por detrás de uma tela de computador ou celular, travam guerras sem sangue, mas não isentas de vítimas.

Ao procurar uma imagem para ilustrar este texto, me ocorreu esta pergunta: Barrabás foi perdoado? - Foto: Reprodução/ Wikipedia

Há anos, e aos sobressaltos, tento aplicar a ideia da misericórdia (como humildemente a compreendo) à guerra ideológica – com pouco sucesso e muito fracasso. Afinal, imagine chegar aqui hoje, em plena segunda-feira, e sugerir aos leitores da Gazeta do Povo que vejam Lula pelo que ele é: um homem que, apesar do poder, da influência e da riqueza, não pode nem tomar uma cachacinha no bar da esquina com os amigos de sindicato
Um homem corrompido pela própria ideia de grandeza e benevolência, incapaz de se olhar no espelho e se ver por inteiro. 
Um homem tão escravizado pela imagem que os outros fazem dele que já nem sabe quem é.  
Um leproso moral que anda pelas ruas negando o caráter contagioso das próprias chagas.

E pensar que tudo isso poderia ter sido evitado se Moro tivesse abandonado momentaneamente os manuais e códigos e biografias por uma cópia de “Moby Dick”.

Moro: “Coloque-se na minha situação”. Eu: “É pra já!”

Para mim, tudo isso é castigo o bastante. E é justamente por isso que a anulação das sentenças contra Lula não faz nem cócegas. Tá, talvez faça um pouquinho, mas só na planta do pé. Mas sou exceção, reconheço. E também vacilo nessa minha excepcionalidade. A depender da cor do meu café-com-leite matinal e do formato e do peso das nuvens, tendo a ser mais ou menos severo com esses líderes que se veem como deuses, mas (sabemos eu e você e até a torcida do Flamengo) não passam de cadáveres prematuros à espera da terra que os cobrirá – porque cobrirá a todos nós.

Castigo maior, para mim, seria dar a Lula uma cópia de “A Morte de Ivan Ilitch” ou “Lições de Abismo” e trancafiá-lo por alguns anos, até que ele saísse do cativeiro com uma compreensão profunda de sua existência. Mas talvez isso seja uma forma de tortura proibida pela Convenção de Genebra – menos pelas obras-primas citadas e mais pela crueldade de obrigar alguém a se olhar no espelho por tanto tempo. Eu mesmo talvez não suporte se um dia for obrigado a passar mais de cinco minutos diante do amontoado de pecados e erros que sou.

E, antes que você fique aí todo revoltadinho porque citei Lula e não Bolsonaro ou Moro ou Doria ou o Cabo Daciolo, aqui está a frase que, apesar da obviedade, há de me redimir na manhã nublada de domingo em que escrevo este texto: não estamos cercados nem somos liderados por santos de nenhum tipo. E todos esses homens que sobem ao púlpito da política para oferecer nossa sanidade em sacrifício à deusa Democracia, fomentando uma guerra fratricida (ou parricida, no caso do meu amigo que brigou com o pai petista), são dignos, sim, da nossa mais sincera pena, misericórdia, caridade.

E na vida?
Exercer a misericórdia na vida cotidiana é ainda mais difícil do que na política. E eu, como todos nós, erro mais do que acerto. Mas, na base do estudo, da experiência e das muitas (muitas mesmo!) surras da vida, essa professorinha atraente, mas severa, aprendi um bocado ao longo dos últimos anos. E se você acha que a frase anterior é expressão de uma vaidade repreensível e até repugnante (e é mesmo), tente ser misericordioso comigo agora (tentarei também).

Hoje em dia, com os joelhos eternamente ralados pelos tropeços da juventude, quando vejo perto de mim uma manifestação do que considero canalhice & perversidade, não saio correndo para escrever sobre o assunto e o ofensor e, pateticamente, tentar fazer justiça com as parcas sílabas que me sói encadear na forma de argumentos e insultos literários. De jeito nenhum! Quando vejo perto de mim (real ou virtualmente) o dito-cujo se regozijando com a maldade própria ou alheia, só me permito ceder à raiva privada – àquele xingamento dito para o apartamento vazio e que talvez se prolongue pela Eternidade, mas tomara que não.

Exige esforço. Nunca ninguém disse que era fácil. A mim o silêncio só me vem a muito custo – espero que não o de uma gastrite nervosa. Outro dia mesmo, ao me deparar com a perversidade pública e mal-disfarçada de um desses parasitas, tive ganas de gritar ao mundo o nome dele. De compor uma crônica que deixasse clara a minha revolta. E até de procurar meios formais de reparação – talvez a maior estupidez do nosso tempo, à qual, ao que parece, não estou imune.

Mas daí me lembrei dessa milenar ideia frágil: a misericórdia.
Fechei os olhos por um instante e me lembrei da voz mansa e covarde, da magreza pachequenta, dos olhos vazios de quem alcançou a velhice sem jamais ter saboreado um único momento de sabedoria. E entendi, numa lição que precisa ser reaprendida diariamente, que para alguns a vida é apenas uma sucessão de dias. “Coitado”, concluí, sem brilhantismo nem indignação. E fui dormir o sono pesado que me é de direito.

Porque, parafraseando o historiador e político romano Tácito, numa frase que serve tanto para o canalha-ao-lado quanto para o líder no palanque, na vida sempre haverá aqueles que, cercados pela mais cretina miséria moral (e política), insistirão em chamar isso de vitória. E até de vida.

Paulo Polzonoff Jr., colunista - Gazeta do Povo - VOZES

 

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Um tribunal menor

O prende e solta da semana é mais um episódio a apequenar o Supremo — e uma temeridade numa época em que certa direita arreganha os dentes contra a Corte

Reza a máxima que os onze ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) atuam como “ilhas incomunicáveis” que, para fazer valer suas convicções pessoais, muitas vezes desconsideram os precedentes da Corte, fomentam um ambiente de insegurança jurídica e desgastam a imagem do próprio Poder Judiciário. O ministro Marco Aurélio Mello rendeu uma homenagem poderosa a essa metáfora na quarta-feira 19, o último dia de trabalho do STF neste ano, ao conceder uma liminar que suspendia a prisão de condenados em segunda instância. A decisão se tornou pública depois da derradeira sessão plenária de 2018 e do almoço de confraternização dos ministros do tribunal. Foi, portanto, uma surpresa — duplamente desagradável.

Primeiro, porque a liminar contraria entendimento firmado pelo plenário do Supremo, que autorizou o chamado cumprimento antecipado da pena. Segundo, porque, se a liminar fosse cumprida, poderia resultar na libertação de até 169 000 presos, o equivalente a 23% da população carcerária brasileira. Entre os beneficiados estariam criminosos de todos os tipos, incluindo e aí é que reside a grande polêmica nacional — o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas a soltura em massa foi barrada pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli, que cassou a liminar do colega.

LULA PRESO –  A comemoração dos petistas ante a provável libertação do ex-presidente durou apenas seis horas

É fácil, diante da polêmica do prende e solta, atribuir a responsabilidade pelo tumulto apenas ao voluntarismo do ministro Marco Aurélio. Ocorre que o Supremo tem sido palco de decisões semelhantes de vários outros ministros e isso só contribui para apequenar o tribunal perante a opinião pública. É um risco que isso esteja acontecendo no atual contexto, em que forças da direita populista vêm arreganhando os dentes contra a Corte. Na campanha, o próprio presidente eleito Jair Bolsonaro afirmou que era preciso alterar a composição do tribunal com a nomeação de “dez isentos”. Seu filho Eduardo Bolsonaro chegou a dizer que, para fechar o STF, bastam “um soldado e um cabo”. São declarações que trazem embutida uma clara indisposição contra a independência da Corte como fórum garantidor da Constituição — situação que atingiu extremos em países como Venezuela, Hungria e Polônia, onde os governos, de esquerda e de direita, vêm limitando ou ceifando por completo a liberdade dos tribunais.

As decisões voluntariosas dos ministros do STF contribuíram para jogar lenha nessa fogueira. Tanto que o prende e solta logo gerou reações intensas. Os procuradores da força-­tarefa da Lava-Jato convocaram uma entrevista para protestar contra o que seria um estrondoso retrocesso. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, recorreu contra a liminar, alegando que ela afronta o sistema de precedentes jurídicos, a persecução penal e a credibilidade da própria Justiça. O mundo político também se alvoroçou. Além de Lula, poderiam ser soltos outros figu­rões presos no caso do petrolão, como o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, o ex-senador Gim Argello e o ex-diretor da Petrobras Renato Duque. Horas depois da publicação da liminar de Marco Aurélio, centenas de pessoas se reuniram em frente à sede do Supremo, em Brasília, para protestar. Os petistas foram às ruas para entoar o mantra “Lula livre”. Houve até quem pregasse o impeachment de Marco Aurélio Mello, o que revela uma alma autoritária segundo a qual “juiz bom é apenas o juiz que decide como eu quero”.

Entre a liminar de Marco Aurélio e a cassação por Toffoli, transcorreram apenas seis horas, tempo suficiente para que o tribunal mergulhasse em mais uma crise, reveladora de suas fissuras internas. O mais recente imbróglio teve como pano de fundo um dos temas mais polêmicos da pauta do Supremo: se condenados em segunda instância podem ir para a prisão. Em outubro de 2016, os ministros disseram, por 6 votos a 5, que sim, podem ser presos. Com isso, deram fôlego à Lava-Jato, ao estimular suspeitos de saquear os cofres públicos a fazer delações premiadas. Só em Curitiba foram firmados 176 acordos de colaboração. Foi com base nessa decisão de 2016 que o então juiz Sergio Moro, futuro ministro da Justiça, determinou a prisão de Lula, em abril passado. Naquele mesmo mês, o PCdoB ajuizou uma ação com o propósito de derrubar a antecipação da pena e libertar o líder petista. Sorteado relator do recurso, o ministro Marco Aurélio Mello tentou, desde então, levar o caso ao plenário para julgamento, mas nunca conseguiu seu intento. Na segunda-feira 17, Dias Toffoli anunciou que a ação do PCdoB será analisada em abril de 2019. O caso parecia encaminhado. Só parecia.

Dois dias depois, na quarta-feira 19, Marco Aurélio pegou os colegas de surpresa ao conceder a liminar. “Em época de crise, impõe-se observar princípios, impõe-se a resistência democrática, a resistência republicana”, disse o ministro, para quem um condenado só pode ser preso depois de seu processo ser julgado por todas as instâncias do Judiciário. No início da noite de quarta-feira, enquanto o cabo de guerra entre investigadores e investigados se desenrolava, Dias Toffoli cassou a liminar. Ele lembrou que o plenário do STF havia julgado favoravelmente à antecipação da pena e afirmou que “a decisão já tomada pela maioria dos membros da Corte deve ser prestigiada”. Sua intervenção foi criticada pelos petistas, a quem serviu como advogado e assessor parlamentar antes de se tornar ministro, e elogiada por Bolsonaro: “Parabéns ao presidente do Supremo Tribunal Federal por derrubar a liminar que poderia beneficiar dezenas de milhares de presos em segunda instância no Brasil e pôr em risco o bem­-estar de nossa sociedade, que já sofre diariamente com o caos da violência generalizada”. Empossado no comando do Judiciário em setembro, Dias Toffoli disse que queria fazer de sua gestão um instrumento de pacificação, reduzindo as disputas internas entre os ministros e tirando o Supremo do centro das crises políticas. Não será nada fácil, como ficou evidente na semana passada.

Outro exemplo do tumulto em que vive o STF é o caso do terrorista italiano Cesare Battisti, cuja situação só galvaniza atenção devido à guerra ideológica que envolveu o país. Condenado a prisão perpétua por quatro assassinatos cometidos na Itália na década de 70, quando militava no grupo Proletários Armados pelo Comunismo, Battisti se refugiou no Brasil, onde foi descoberto em 2007, e ganhou tratamento privilegiado no governo do PT — que o declarou não um terrorista procurado por homicídio, como de fato é, mas um “refugiado político”, como se a Itália fosse uma ditadura a perseguir seus opositores.

Em 2009, o STF disse que os crimes do italiano não eram políticos e que ele poderia ser extraditado, mas a palavra final sobre seu destino deveria ser do presidente da República — e Lula aceitou que ficasse no país.

Em 12 de dezembro passado, com a virada no clima político do país, o ministro do STF Luiz Fux derrubou o derradeiro pedido de Battisti e determinou sua prisão — e o presidente Michel Temer, em seguida, chancelou sua extradição. Antes de tornar pública a decisão, Fux, com o objetivo de evitar a fuga do criminoso, avisou o diretor-geral da Polícia Federal, Rogério Galloro, e a procuradora Raquel Dodge. O ministro esperava que Battisti fosse pego de surpresa. Um avião do governo italiano e policiais europeus ficaram de prontidão no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Com a ordem judicial em mãos, a Polícia Federal partiu para prender o terrorista em sua casa, em Cananeia, no litoral paulista. Bateu à porta e não achou ninguém.

Publicado em VEJA de 26 de dezembro de 2018, edição nº 2614