Um tribunal menor
O prende e
solta da semana é mais um episódio a apequenar o Supremo — e uma
temeridade numa época em que certa direita arreganha os dentes contra a
Corte
Reza a máxima que os onze ministros do
Supremo Tribunal Federal (STF) atuam como “ilhas incomunicáveis” que,
para fazer valer suas convicções pessoais, muitas vezes desconsideram os
precedentes da Corte, fomentam um ambiente de insegurança jurídica e
desgastam a imagem do próprio Poder Judiciário. O ministro Marco Aurélio
Mello rendeu uma homenagem poderosa a essa metáfora na quarta-feira 19,
o último dia de trabalho do STF neste ano, ao conceder uma liminar que
suspendia a prisão de condenados em segunda instância. A decisão se
tornou pública depois da derradeira sessão plenária de 2018 e do almoço
de confraternização dos ministros do tribunal. Foi, portanto, uma
surpresa — duplamente desagradável.
Primeiro, porque a liminar contraria entendimento firmado pelo
plenário do Supremo, que autorizou o chamado cumprimento antecipado da
pena. Segundo, porque, se a liminar fosse cumprida, poderia resultar na
libertação de até 169 000 presos, o equivalente a 23% da população
carcerária brasileira. Entre os beneficiados estariam criminosos de
todos os tipos, incluindo — e aí é que reside a grande polêmica nacional
— o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas a soltura em massa foi
barrada pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli, que cassou a
liminar do colega.
LULA PRESO – A comemoração dos petistas ante a provável libertação do ex-presidente durou apenas seis horas
É fácil, diante da polêmica do prende e solta, atribuir a
responsabilidade pelo tumulto apenas ao voluntarismo do ministro Marco
Aurélio. Ocorre que o Supremo tem sido palco de decisões semelhantes de
vários outros ministros — e isso só contribui para apequenar o tribunal
perante a opinião pública. É um risco que isso esteja acontecendo no
atual contexto, em que forças da direita populista vêm arreganhando os
dentes contra a Corte. Na campanha, o próprio presidente eleito Jair
Bolsonaro afirmou que era preciso alterar a composição do tribunal com a
nomeação de “dez isentos”. Seu filho Eduardo Bolsonaro chegou a dizer
que, para fechar o STF, bastam “um soldado e um cabo”. São declarações
que trazem embutida uma clara indisposição contra a independência da
Corte como fórum garantidor da Constituição — situação que atingiu
extremos em países como Venezuela, Hungria e Polônia, onde os governos,
de esquerda e de direita, vêm limitando ou ceifando por completo a
liberdade dos tribunais.
As decisões voluntariosas dos ministros do STF contribuíram para
jogar lenha nessa fogueira. Tanto que o prende e solta logo gerou
reações intensas. Os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato
convocaram uma entrevista para protestar contra o que seria um
estrondoso retrocesso. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge,
recorreu contra a liminar, alegando que ela afronta o sistema de
precedentes jurídicos, a persecução penal e a credibilidade da própria
Justiça. O mundo político também se alvoroçou. Além de Lula, poderiam
ser soltos outros figurões presos no caso do petrolão, como o
ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, o ex-senador Gim Argello e o
ex-diretor da Petrobras Renato Duque. Horas depois da publicação da
liminar de Marco Aurélio, centenas de pessoas se reuniram em frente à
sede do Supremo, em Brasília, para protestar. Os petistas foram às ruas
para entoar o mantra “Lula livre”. Houve até quem pregasse o impeachment
de Marco Aurélio Mello, o que revela uma alma autoritária segundo a
qual “juiz bom é apenas o juiz que decide como eu quero”.
Entre a liminar de Marco Aurélio e a cassação por Toffoli,
transcorreram apenas seis horas, tempo suficiente para que o tribunal
mergulhasse em mais uma crise, reveladora de suas fissuras internas. O
mais recente imbróglio teve como pano de fundo um dos temas mais
polêmicos da pauta do Supremo: se condenados em segunda instância podem
ir para a prisão. Em outubro de 2016, os ministros disseram, por 6 votos
a 5, que sim, podem ser presos. Com isso, deram fôlego à Lava-Jato, ao
estimular suspeitos de saquear os cofres públicos a fazer delações
premiadas. Só em Curitiba foram firmados 176 acordos de colaboração. Foi
com base nessa decisão de 2016 que o então juiz Sergio Moro, futuro
ministro da Justiça, determinou a prisão de Lula, em abril passado.
Naquele mesmo mês, o PCdoB ajuizou uma ação com o propósito de derrubar a
antecipação da pena e libertar o líder petista. Sorteado relator do
recurso, o ministro Marco Aurélio Mello tentou, desde então, levar o
caso ao plenário para julgamento, mas nunca conseguiu seu intento. Na
segunda-feira 17, Dias Toffoli anunciou que a ação do PCdoB será
analisada em abril de 2019. O caso parecia encaminhado. Só parecia.
Dois dias depois, na quarta-feira 19, Marco Aurélio pegou os colegas
de surpresa ao conceder a liminar. “Em época de crise, impõe-se observar
princípios, impõe-se a resistência democrática, a resistência
republicana”, disse o ministro, para quem um condenado só pode ser preso
depois de seu processo ser julgado por todas as instâncias do
Judiciário. No início da noite de quarta-feira, enquanto o cabo de
guerra entre investigadores e investigados se desenrolava, Dias Toffoli
cassou a liminar. Ele lembrou que o plenário do STF havia julgado
favoravelmente à antecipação da pena e afirmou que “a decisão já tomada
pela maioria dos membros da Corte deve ser prestigiada”. Sua intervenção
foi criticada pelos petistas, a quem serviu como advogado e assessor
parlamentar antes de se tornar ministro, e elogiada por Bolsonaro:
“Parabéns ao presidente do Supremo Tribunal Federal por derrubar a
liminar que poderia beneficiar dezenas de milhares de presos em segunda
instância no Brasil e pôr em risco o bem-estar de nossa sociedade, que
já sofre diariamente com o caos da violência generalizada”. Empossado no
comando do Judiciário em setembro, Dias Toffoli disse que queria fazer
de sua gestão um instrumento de pacificação, reduzindo as disputas
internas entre os ministros e tirando o Supremo do centro das crises
políticas. Não será nada fácil, como ficou evidente na semana passada.
Outro exemplo do tumulto em que vive o STF é o caso do terrorista
italiano Cesare Battisti, cuja situação só galvaniza atenção devido à
guerra ideológica que envolveu o país. Condenado a prisão perpétua por
quatro assassinatos cometidos na Itália na década de 70, quando militava
no grupo Proletários Armados pelo Comunismo, Battisti se refugiou no
Brasil, onde foi descoberto em 2007, e ganhou tratamento privilegiado no
governo do PT — que o declarou não um terrorista procurado por
homicídio, como de fato é, mas um “refugiado político”, como se a Itália
fosse uma ditadura a perseguir seus opositores.
Em 2009, o STF disse
que os crimes do italiano não eram políticos e que ele poderia ser
extraditado, mas a palavra final sobre seu destino deveria ser do
presidente da República — e Lula aceitou que ficasse no país.
Em 12 de
dezembro passado, com a virada no clima político do país, o ministro do
STF Luiz Fux derrubou o derradeiro pedido de Battisti e determinou sua
prisão — e o presidente Michel Temer, em seguida, chancelou sua
extradição. Antes de tornar pública a decisão, Fux, com o objetivo de
evitar a fuga do criminoso, avisou o diretor-geral da Polícia Federal,
Rogério Galloro, e a procuradora Raquel Dodge. O ministro esperava que
Battisti fosse pego de surpresa. Um avião do governo italiano e
policiais europeus ficaram de prontidão no aeroporto de Guarulhos, em
São Paulo. Com a ordem judicial em mãos, a Polícia Federal partiu para
prender o terrorista em sua casa, em Cananeia, no litoral paulista.
Bateu à porta e não achou ninguém.
Publicado em VEJA de 26 de dezembro de 2018, edição nº 2614
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