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sábado, 8 de julho de 2023

No Pará, a morte de quem defende a vida

Dossiê entregue ao governo denuncia esfacelamento de programa de proteção e como é descartável a vida de quem deveria ser protegido pelo Estado

Floresta Amazônica

 Floresta Amazônica // (Mauro Pimentel/AFP)

Está na mesa do ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos e Cidadania) – e também no gabinete do ministro Flávio Dino (Justiça e Segurança Pública) – um dossiê que denuncia o tamanho da fragilidade da vida de pessoas marcadas para morrer, e que estão sob a proteção do Estado. Ou deveriam estar.

O dossiê, assinado por advogadas e advogados da organização não governamental Rede Liberdade, escancara o esfacelamento e as limitações do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, o chamado PPDDH, criado em 2004 para garantir segurança a grupos que sofrem ameaça e estejam em risco em função do trabalho que exercem. Instituído em âmbito nacional, o PPDDH resultou na criação de programas locais em 11 estados – um deles é o Pará, foco principal do dossiê da Rede Liberdade.

“Ameaça” e “risco”, palavras citadas acima, podem parecer suaves demais diante do que essas pessoas de fato enfrentam: são assédios, perseguições, intimidações, invasões de domicílios, atentados, torturas e assassinatos. Uma vez acolhidas pelo PPDDH, não só não se veem livres dos problemas que as levaram até lá como se deparam com novos, nascidos das falhas dos próprios programas que as deveriam proteger.  
Moradias precárias, insegurança alimentar, falta de assistência de saúde e educação, e o permanente medo das próprias escoltas de segurança, muitas vezes conduzidas por agentes suspeitos de compartilhar informações com mandantes de ameaças e assassinatos, estão entre as gravidades listadas no dossiê entregue aos ministérios dos Direitos Humanos e da Justiça.

Desde o fim de 2019, acompanho de perto o trabalho da Rede Liberdade, organização criada pelo advogado Beto Vasconcelos, ex-secretário Nacional de Justiça e presidente do seu Conselho. A organização atuou em casos emblemáticos de violações de direitos e liberdades. Casos como o massacre da favela de Paraisópolis, em São Paulo, e a prisão indevida das lideranças de moradia Preta Ferreira e Carmen Silva, e dos brigadistas de Alter do Chão – voluntários que, no fim de 2019, trabalhavam em conjunto com os bombeiros locais para apagar os incêndios na floresta e foram presos sob a falsa acusação de, justamente, atear fogo na mata. (Na mesma data, a ONG Saúde e Alegria, uma das mais premiadas e respeitadas organizações brasileiras, foi invadida pela polícia e teve computadores e documentos apreendidos.)

Sobre os defensores de direitos humanos, esqueça a imagem do homem branco, navegando por rios amazônicos num barco do Greenpeace, defendendo a floresta. Ou intelectuais brancos sudestinos intimidados por vocalizar críticas a governos autoritários. Estes têm seus muitos méritos, especialmente nos últimos quatro anos diante de um governo que criminalizou ambientalistas, disseminou o desprezo à ciência e estimulou o ódio aos opositores. Mas o problema aqui é de outra ordem.

Defensores e defensoras com vidas ameaçadas que estão no dossiê da Rede Liberdade são agricultores familiares, indígenas, pessoas negras das periferias mais fragilizadas, ribeirinhos e quilombolas – gente pobre e corajosa que defende a democracia e os direitos humanos com a própria vida. Lutam quase sozinhos para manter a floresta viva, em pé e como um bem público e coletivo, contra forças bem mais poderosas, e invariavelmente armadas.

(...)

Viram de perto as precariedades descritas pelo documento da Rede Liberdade. Exemplo? “Uma das defensoras atendidas pelo programa foi encaminhada para o acolhimento devido ao problema de saúde após atentado contra sua vida, de modo que precisava de atendimento especializado e tratamento contínuo. Contudo, durante os três meses em que esteve no acolhimento, não houve o devido atendimento médico, mesmo após inúmeras solicitações.” Outra teve um bebê e sangrou, sem assistência devida, por um ano e meio.

(...)


Inútil pensar que tais problemas surgiram no governo Bolsonaro ou sob o ministério dos Direitos Humanos de Damares Alves.  
Basta lembrar o caso rumoroso da missionária norte-americana Dorothy Stang, morta com seis tiros em 2005, em pleno primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva.  
Violência, pistolagem, incêndios criminosos e derrubada da floresta eram documentados e denunciados por Stang, exigindo providência das autoridades. Foi executada aos 73 anos, em Anapu.

Coluna Rodrigo de Almeida, ÍNTEGRA DA MATÉRIA, Revista VEJA


segunda-feira, 12 de outubro de 2020

O marketing de lacração deixa claro o campo de tensão: a implicância é com o homem branco

Blog Rodrigo Constantino

*Sergio Renato de Mello

Por Sergio Renato de Mello, publicado pelo Instituto Liberal

Parece que a Defensoria Pública da União, atuante na justiça do trabalho, decidiu colocar a primeira pazinha de cal para, ao depois, cimentar o programa de trainees das Lojas Magazine Luiza, implementado apenas para candidatos negros, ao ter ajuizado uma ação civil pública no Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região. A referida ação judicial conta com pedido de liminar para suspender o programa referido acima até julgamento definitivo da demanda, que deverá obrigar a loja a deixar de limitar as inscrições para o programa de trainee por meio de critérios discriminatórios. Ao seu fim, em conformidade com o pedido judicial aforado, ainda deve haver pagamento de indenização por danos morais coletivos que pode chegar à cifra de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais).

A meu ver, parece que estamos vivenciando, na pele, certa postura discriminatória que vai de encontro a direitos e princípios constitucionais de quem é tido como o vilão da opressão da comunidade negra: os brancos. Uma afirmação se impõe retirada das entrelinhas do programa: já que o branco é tido como o principal algoz na luta negra contra o racismo, a pessoa de cor branca agora é a bola da vez, gerando um campo de tensão quiçá infinito.

Temos alguns dados de antemão, principalmente de ordem empírica. Faz-se menção ao termo branquitude, com esse mesmo tom pejorativo, usado para significar o malvado. Sou defensor público não atuante na justiça do trabalho; porém, é perceptível que o referido programa é excludente, embora sua intenção seja diversa, para mais inclusão, como informado às claras pela própria empresária em entrevista neste dia 05 de outubro, segunda-feira, no programa Roda Viva.

Em sede trabalhista ou não, é certo afirmar que o programa mais exclui pessoas do círculo empregatício do que promove a inclusão, como disse. Porém, a questão não se encerra com um pano de fundo meramente trabalhista, como se questões sociais das mais importantes, como o são as que se relacionam à inclusão e exclusão de pessoas apenas por sua cor de pele, devessem ter seu conteúdo e resolução limitado a uma vaga de emprego. Não. A ferida é mais profunda.

A dicção implícita da análise de tal situação, então, perpassa o cerne trabalhista para adentrar em foro de direitos humanos. Como não existem direitos humanos apenas para uns e não para outros, pouco importando qualquer sinal identitário mais ou menos especial, natural que haja inversão dos polos passivos e ativos, numa infinita inversão de credor e devedor até que um belo dia esse impasse seja, definitivamente, resolvido. Se é que o será.

Então, o chamado racismo reverso, com esse nome, surge como um patinho feio no meio de um cenário que se diz estrutural de racismo contra as pessoas negras. Ele existe ou pode existir com o mesmo nome por que ele foi batizado para imputar aos brancos o ataque aos negros, ou seja, simplesmente racismo! A mesma discriminação em tratamento de direitos que o negro sofre o branco e demais pessoas também sofrem, dele também são vítimas. É isso.

Voltando ao malfadado programa, nele não há programa de cotas, mas seleção exclusivamente baseada na cor de pele, proceder que viola expressamente a Constituição Federal, que inadmite discriminação pela cor de pele para admissão de empregados.

A Constituição estabeleceu, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, caput e IV). Muito embora o Estatuto da Igualdade Racial, Lei n. 12.288, de 20 de julho de 2010, tenha sido destinado à população negra, como decorre de seu próprio texto no art. 1º, ele deve ser aplicado para qualquer pessoa. Ao Estatuto da Igualdade Racial, portanto, deve ser dada interpretação conforme a Constituição para trazer isonomia ao caso concreto, aplicando a mesma lei dos negros para as demais pessoas de outra cor de pele, sem retirá-la do ordenamento jurídico.

Ao promover o programa excludente, a sua promovente encerrou por destituir de direitos legítimos demais pessoas que se distinguem dos negros, ignorando que neste imenso Brasil existem vários brasis. Além de ferir o princípio da proporcionalidade e razoabilidade, na medida em que não soa razoável a admissão fora do sistema de cotas, desigualando demais pessoas do ambiente laboral. Isso só para ficar na questão trabalhista…

Aristóteles já disse que a virtude é tímida e não vem mascarada por um comportamento de marketing empresarial, o qual pode e já está virando tendência exclusiva.  Neste ponto, basta um simples olhar para o futuro e perceber que, considerando a hybris humana de tratar coisas sem a devida ponderação, se a moda pega, não é de se admirar que teremos mais exclusão do que inclusão. 

Rodrigo Constantino, jornalista - Gazeta do Povo - Vozes

*Sergio Renato de Mello atua na Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina.