No dia em que o AI-5 era decretado, há 48 anos, a capital federal perdia parte da inocência
A partir de 1964, o desenho modernista das quadras de Brasília deixou de
celebrar as vanguardas urbanísticas. Na liberdade que os pilotis davam
aos moradores, os militares encontraram uma forma de cerceá-la. Sem o
impedimento de muros e paredes, não havia como se esconder dos olhos da
ditadura. As camuflagens não ficaram restritas aos uniformes e,
principalmente depois de 13 de dezembro 1968, quando o Ato Institucional nº 5 foi decretado — há 47 anos, sob as ordens do general Artur da
Costa e Silva — todos eram subversivos em potencial. [o AI-5, foi
a única forma, também a mais eficaz para impedir que os porcos
terroristas, guerrilheiros e comunista nojenta transformassem o Brasil
em maus um satélite da URSS.]
“A
intervenção policial fazia parte do nosso dia a dia. Era comum estar num
bar, chegar um policial à paisana, sentar na sua mesa como um amigo e,
discretamente, começar a te interrogar”, lembra o dramaturgo Alexandre
Ribondi. Na esteira das restrições aos direitos democráticos, a ditadura
esperava colocar Brasília como um exemplo para o restante do país. Para
isso, não poupou esforços na tentativa de vender a imagem de uma cidade
pacata, distante de centros como Rio de Janeiro e São Paulo e, mais
ainda, dos movimentos sociais que existiam neles.
Porém, os
militares se frustraram. Fosse por meio da luta armada, da arte, da
própria consciência, ou mesmo do empenho profissional, a cidade
demonstrava insatisfação, mesmo que isso significasse receber, além da
mordaça da censura, a violência da tortura. Em quatro relatos, o Correio
revela cidadãos que, em Brasília, se postaram contra a “revolução”
prometida em 1964. Nas limitações impostas pela capital que ainda nem
havia sido terminada, essas pessoas acabaram não só analisando um
período essencial da história do Brasil: fizeram parte dele.
Em 12 de dezembro de 1968, o então adolescente Alexandre Ribondi só
queria aproveitar o dia. Afinal, aquele era o primeiro aniversário que
passava em Brasília, e o clima de tensão instaurado pela ditadura
militar não seria capaz de tirar a empolgação do garoto de 16 anos.
Contudo, o preço do entusiasmo se mostrou alto, pois nem mesmo a bebida
mais alcoólica seria capaz de garantir uma ressaca tão forte quanto a
que o despertou. “Acordei da minha festa de aniversário e tinha um AI-5
na cabeça de todos os brasileiros. Parecia um filme de ficção
científica”, recorda o dramaturgo.
O regime pairava em sua
rotina, mesmo antes do documento mais duro aprovado pelos militares.
Aluno do Elefante Branco, Alexandre testemunhou a invasão da escola. Nas
ruas, desconfiava de homens encostados em carros no meio das quadras e
que, sem cerimônia, chamavam-no de maconheiro e viado. “Dessa época,
lembro-me de ir encontrar o meu irmão na Universidade de Brasília. Era
só atravessar a rua, pois morávamos na Asa Norte. Mas tive de voltar
quando vi tanques de guerra e policiais por toda parte.”
Ele
garante que, ao recordar esse período, um filtro em preto e branco toma
conta dos pensamentos. A Brasília da ditadura militar era cinza, mesmo
que ele e sua turma tenham tentado dar mais cor aos anos de chumbo.
“Claro que vão existir pessoas mais velhas e mais novas que dirão, até
hoje, que isso nunca aconteceu. Não interessava a elas verem, não querem
essa versão da história recente do país”, lamenta.
Mas
Alexandre também rejeita os papéis de vítima e de herói. Se os acasos
da vida o trouxeram a Brasília em meio à ditadura, então, ele deveria
aproveitar a cidade da melhor forma possível. E foi a mistura da
necessidade de se divertir com o ímpeto ativista que o tornou alvo
constante da perseguição exercida pelos militares, ainda mais depois do
envolvimento com o teatro. “Corajosamente irresponsáveis”, como
ele classifica, a trupe promovia leituras poéticas em locais abertos,
além de apresentações na UnB. O troco vinha sempre: fosse na base da
truculência ou em nome da segurança nacional. “Era horrível ver
policiais perguntando quem era o aluno tal, o levarem preso e a gente
não poder fazer nada. Isso acontecia.” Ele recorda que, no restaurante
universitário, a música era muito alta o tempo todo para que os alunos
não trocassem ideias. “Não que a gente fizesse algo fantástico, mas era
porque fazíamos algo. Qualquer coisa provocava desconfiança, fazia ser
levado para depor. Fui preso, passei por sessões de tortura e, até
hoje, não me sinto à vontade para falar sobre isso. Não é fácil.”
O
dramaturgo cita características próprias de Brasília que facilitavam a
perseguição aos considerados subversivos. “Como é difícil se esconder
em Brasília. Tudo é aberto, você vê debaixo dos blocos, e isso era
usado como estratégia pela polícia. Você corre, e a polícia continua te
vendo.”
Repertório
Em um dos seus
encontros nada amistosos com a guarda do regime, ele usou táticas
aprendidas com o pai, veterano da Segunda Guerra Mundial, para conseguir
se safar. Voltando para casa, depois de visitar a namorada, Alexandre
reparou que dois homens ao lado de um carro, na 409 Norte, começavam a
segui-lo. “Eu parei, eles também pararam. A ideia era que a gente se
encontrasse em um ponto no qual eles pudessem me prender sem chamar a
atenção. Nem acredito que estivessem me procurando, mas prendendo
qualquer um com ar suspeito.” Lançou-se entre os blocos e foi
perseguido. Foi quando lembrou do pai, que corria em zigue-zague para
escapar dos soldados alemães. “Foi o que fiz. Entrei no apartamento da
Jane e me safei.”
Em 1974, depois da tortura, ele “optou” pelo
exílio. “Quando a polícia vai à sua casa e sugere que você vá embora do
Brasil porque o país é violento e você pode ser vítima de uma bala
perdida, não é bem uma escolha”, reflete. Voltou a Brasília em 1978 e
presenciou o definhar do regime. Hoje, garante viver em um banho
absoluto de liberdade política. “Não há nada que se assemelhe a uma
ditadura. A nossa época atual é franca, livre e democrática.”
Com
uma amiga, pretende voltar à casa onde viveu em Sobradinho e foi
invadida. Querem tentar encontrar uma tradução que ele fez de O Livro
Vermelho, de Mao Tsé-Tung. “A gente não se dava conta de que estava
fazendo história, apenas implicávamos com quem tínhamos de implicar.
Hoje, percebo que temos repertório de história do Brasil nas mãos e na
alma”, conclui.
Sentados à mesa durante um jantar, em Brasília, dirigentes de todas as
patentes do Exército exaltavam os caminhos que o regime fazia o Brasil
trilhar. Uma das convidadas, a empresária Pompeia Addario, interrompeu a
fala de um general. “Sempre que ele chamava de ‘revolução’, eu dizia
‘golpe’. O anfitrião disse que nunca mais nos convidaria, mas, no fim, o
general reconheceu que eu fui a única pessoa que teve coragem de
discutir com ele e me agradeceu”, lembra.
A relação de Pompeia
com a ditadura começou no momento em que as forças militares
desrespeitavam o estado democrático. Mineira de Juiz de Fora, ela estava
na cidade em 31 de março de 1964, quando as tropas sob o comando do
general Olímpio Mourão saíram da cidade em direção ao Rio de Janeiro
para depor o então presidente João Goulart, que era vice e assumiu o
governo após a renúncia de Jânio Quadros. “Eu me lembro de panfletos
pelas ruas que falavam na revolução que seria feita pelo Exército. Mas
eu era uma menina, não tinha noção do que aquilo significava.”
Somente
ao chegar à capital, em 1969, é que começou a perceber que aquela cena
marcada na memória não era apenas uma ameaça. E, mesmo não tendo se
envolvido com movimentos de oposição, a empresária sempre teve em mente
que o regime militar traria dissabores. “Sentia isso, principalmente,
na UnB. Até porque a universidade foi invadida em vários momentos e
dava para perceber a tensão entre os alunos”, explica a graduada em
história.
Proteção
As amizades que fez
mostravam os dois lados desse universo: em uma Brasília paradoxal, a
vida mais tranquila, efeito direto da população menor e do seu pouco
tempo de inaugurada, se chocava com a vigília constante àqueles
considerados subversivos. “No dia a dia, você não notava tanta
diferença. A cidade quase não tinha nada, e a gente tinha de fazer com
que as coisas acontecessem. Era uma tranquilidade que não existe mais
hoje”, lamenta.
Mas Pompeia estava, de certa forma, protegida
contra o regime. Mesmo que ela tivesse opiniões contrárias à ditadura,
não era perseguida por causa dos vínculos que a família mantinha com os
militares. À época, o então marido era funcionário de uma construtora
que prestava serviços ao governo. “Viemos para cá quando ele ficou
responsável pela construção de casas no Gama. Isso fazia com que
tivéssemos contato com eles”, conta. “Mesmo com as limitações, era uma
cidade calma. Hoje, temos a sensação de medo diferente, o da violência
urbana, e isso é muito ruim”, conclui.
Trabalhando em uma fábrica alemã em Guarulhos, São Paulo, o advogado
José Geraldo de Sousa Júnior, 68 anos, viu, da janela, tropas militares
que ajudaram a derrubar Jango da presidência da República seguirem para o
Rio de Janeiro em 31 de março de 1964. O chefe imediato, sobrevivente
da Segunda Guerra Mundial, jogou-se debaixo da mesa ao ver os tanques,
em um efeito que não refletia somente o trauma do conflito, mas previa o
tipo de regime a ser instaurado.
A partir de 1971, em Brasília,
José Geraldo acompanhou de perto as manobras utilizadas pelos militares
para garantir o controle baseado na coerção e na violência. “Aqui, vivi a
tensão da aplicação das medidas decorrentes do sistema de segurança em
uma cidade que foi reprimida muito fortemente. Em Brasília, não havia
representação política nem autonomia de gestão legislativa, e isso
restringia a capacidade crítica a um meio social sindical e de
movimentos”, explica.
As limitações impostas pela ditadura
fizeram José Geraldo integrar o coletivo da primeira Comissão de
Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). “Nós éramos
muito mobilizados, seja no plano político stricto sensu, seja nas
ocupações da UnB (ele seria reitor da universidade brasiliense entre
novembro de 2008 e novembro de 2012), seja nas perseguições a
jornalistas, bem como pelo fato de vários personagens de escala nacional
terem sido transferidos para Brasília”, detalha.
O advogado
explica que, para entender a repressão na capital federal, é preciso uma
análise que começa antes de 1964. Desde o momento em que começou a ser
construída, a nova capital teve um sistema de segurança quase miliciano,
representado pela Guarda Especial de Brasília (GEB). “A GEB fazia
aquilo que, na história brasileira, foi o padrão de contenção social: o
modelo policial repressor. Com a ditadura, o aparato se
institucionalizou, com um sistema em que a segurança é estrutura das
Forças Armadas.”
Até mesmo o fato de o DF ficar longe dos grandes
centros foi explorado, na tentativa de sufocar movimentos que no Rio de
Janeiro, em São Paulo e em Belo Horizonte eram mais comuns, como as
passeatas. “Aqui, criava-se um espaço no qual, facilmente se montava um
perímetro de segurança, fechando as entradas da cidade.” Servindo de
modelo para aquilo que os militares queriam mostrar para o resto do
país, Brasília teve, inclusive, oficiais do Exército à frente da
Secretaria de Segurança Pública durante a ditadura.
Diante disso,
logo foram instalados sindicatos de base, como o da construção civil, e
mais os terciários, como professores e bancários. “Havia uma
mobilização quase que constitutiva da estrutura sindical popular da
cidade: de um lado, uma agregação de contingentes de trabalhadores da
construção. Com eles, a chegada das organizações sindicais”, analisa
José Geraldo. “Com isso, passamos por um sistema de monitoramento e
vigilância agressivo, que teve um custo alto do ponto de vista das
intervenções dos espaços políticos urbanos.”
Medo
Foi
a partir desse cenário que o medo se instalou também na classe média.
“O brasiliense tinha horror daquelas Veraneios, que eram veículos
identificados como sendo parte das forças clandestinas do aparelho de
segurança. Se elas chegavam perto, as pessoas se retraíam. E, não poucas
vezes, delas saíam esbirros que encapuzavam e levavam pessoas para
salas de interrogatórios.”
O advogado diz que o problema do
regime de exceção não envolve a discussão do alcance das normas, mas de
como serão executadas pelos seus agentes. Por isso, ele teme as ideias
defendidas por grupos que pedem a volta da ditadura. “O único valor da
experiência é querer evitar, a todo custo, que isso aconteça novamente.” Correndo em grupo, pela 306 Sul, para fugir da perseguição policial, o
jornalista Hélio Doyle, então estudante secundarista, subiu em um dos
blocos da quadra em busca de refúgio. A ditadura seguia a época
pré-AI-5, e esses alunos recebiam apoio da classe média, inclusive nos
momentos em que procuravam abrigo. Vários deles entraram no elevador,
mas um policial à paisana que os alcançou lançou uma bomba de gás
lacrimogêneo dentro do equipamento. “Só que a nossa pressão na porta foi
maior e conseguimos sair. Um colega alcançou o policial e pediu ajuda a
um grupo que passava. Eram policiais. Ele apanhou muito”, conta.
Mesmo
que o exemplo de truculência policial possa soar comum a outras cidades
do país, o fato de ter ocorrido em Brasília demonstra o quanto o regime
estava disposto. “Existia uma questão de proteção da capital, de que
ela fosse resguardada do que acontecia nos grandes centros, como Rio de
Janeiro e São Paulo. Eles faziam de tudo para evitar que protestos como
os de outras cidades acontecessem aqui”, explica Doyle.
E isso
também envolvia a forma como Brasília fora construída. “Diferentemente
das outras cidades, você não tinha chance de fazer alguma passeata e,
depois, se esconder com facilidade. O único lugar em que havia movimento
era a W3 Sul, quando ainda era uma via importante, com muita gente
passando”, relembra. Além da consciência dessas limitações, Doyle, que
começou na militância aos 15 anos, lembra que as dificuldades
estruturais se somaram à maior repressão trazida pelo AI-5, decretado
quando ele tinha 18. “Até 1968, havia uma repressão menos drástica.
Depois do AI-5, todos começaram a temer mais as consequências de
qualquer ato. Antes, você sabia que poderia ser preso, mas a prisão não
significava, necessariamente, uma violência maior. Antes, tínhamos
receio. Depois, medo.”
E, sendo Brasília uma cidade ainda
limitada na maioria dos aspectos, até mesmo as regras mantidas pelos
grupos contrários à ditadura eram diferentes. “Na organização de que eu
participava, uma das normas de segurança era que a gente não deveria ir
ao Beirute. Lá era um centro de intelectuais, e sabíamos que estávamos
sob vigilância constante.” E, de forma até irônica, criava situações que
dificilmente poderiam acontecer em outras cidades. Doyle lembra que
mantinha um apartamento na 410 Norte, alugado com outro nome, que servia
para reuniões. Qualquer novo visitante tinha de chegar lá com os olhos
vendados para evitar que a localização se espalhasse. “Mas era
impossível a pessoa não saber que estava nas 400. Ela só não tinha como
saber qual era o bloco.”
“Bandidagem”
A
repressão em Brasília também convivia com um paradoxo que somente
existiu aqui: ao mesmo tempo em que era considerado extremamente
violento, o aparato da Polícia Militar lidava com as ligações
intrincadas que existiam entre os “subversivos” e os altos escalões do
poder. Doyle explica isso ao contar sobre a primeira vez em que acabou
preso. “À época, o meu pai era ministro do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE). No nosso grupo, havia o filho de um senador da Arena (partido de
apoio ao regime). Então, eles tinham muito cuidado. Se isso acontecesse
no Rio de Janeiro ou em São Paulo, não seríamos poupados. Isso era a
cara de Brasília.”
Não que isso evitasse a tortura, mas o
jornalista afirma que, diante das atrocidades que chegavam dos porões da
ditadura, o que ele passou não pode ser considerado grave. “Se você
sabe que existe o pau de arara e leva um soco, não pode reclamar. Tudo é
violência, mas a gente sabia que tinha sorte por só apanhar”, diz.
Relembrar
esses momentos faz com que Doyle se choque ainda mais com os grupos
atuais que pedem o retorno dos militares ao poder. “Eu me pergunto: será
que aquela violência poderia se repetir? O que eles fariam com os
protestos que acontecem hoje? Prenderiam todo mundo? Matariam?”,
questiona. Para o jornalista, acreditar que a violência urbana cairia
caso a ditadura voltasse é outro pensamento limitado. “Esse pessoal deve
partir do princípio de que violência resolve tudo. Só que isso é
inadmissível. Sem falar que a repressão construía a bandidagem como, por
exemplo, no caso dos assassinos do (jornalista) Mário Eugênio. Quando
você dá poder excessivo ao repressor, ele começa a extorquir, roubar e
usá-lo em seu benefício”, conclui.[mentira:
nos tempos do Governo Militar existia bandidos - é algo inevitável,
mas, a polícia agia de forma preventiva com eficácia e quando algum
crime ocorria, a autoria era sempre identificada.
Ocorreu, se muito, dois ou três crimes que não foram esclarecidos. Nos dias atuais, de cada cem crimes, são esclarecidos, se muito, dez.
A matéria é excelente, apenas parcial - por ouvir apenas um dos lados e, maximizar os aspectos negativos ao Governo Militar da versão dos depoentes, que por natureza já era contrária à verdade.
Pela
reportagem, fica a impressão que os depoentes eram inocentes, assíduos
frequentadores de igrejas e que nada faziam contra as leis e a Segurança
Nacional.
A
presença ostensiva e também velada dos agentes de segurança se fazia
necessária e interrogatórios enérgicos - erroneamente chamados de
tortura - era necessários.
O
caso Mário Eugênio, assassinado em 1984 - já sob a égide da Lei de
Anistia - não teve nenhum envolvimento com atividades de repressão ao
terrorismo. O jornalista foi assassinado por bandidos comuns, com
motivação na sua profissão de 'repórter policial' co Correio. ]
Fonte: Correio Braziliense