O Estado de S.Paulo
A pauta reformista do governo Bolsonaro é um prolongamento da de seu antecessor
O primeiro ano do governo Bolsonaro caracterizou-se pelo enfrentamento
com adversários, tidos por inimigos, testando o limite das instituições
democráticas. A partir do momento em que o confronto político se tornou o
eixo das ações, a prática destas, própria da democracia, passou
necessariamente a segundo plano. Nesse sentido, há no atual governo um
pendor autoritário que contrasta fortemente com seu não autoritarismo na
esfera das relações econômicas, onde propugna uma redução do papel do
Estado. Autoritarismo de um lado, liberalismo de outro, o que faz seu
próprio projeto reformista do ponto de vista econômico terminar por se
contaminar por essa sua contradição interna.
A concepção do político orientadora de suas ações pode ser retraçada ao
teórico alemão Carl Schmitt, apoiador do nazismo e admirador de Lenin e
Mao no pós-guerra, ao definir o campo do político como o da distinção
entre amigos e inimigos, não podendo haver entre eles negociação e
composição, o que seria próprio da via democrática, mais
especificamente, parlamentar. Note-se, a esse respeito, que o governo
Bolsonaro não preza e não tem articulação política, baseada na
negociação, laboriosa e dura, com a Câmara dos Deputados e o Senado.
Muitas vezes esse problema se traduz pelo fato de os políticos serem
desconsiderados, supostamente, por serem “corruptos”, quando, na
verdade, o problema consiste na composição partidária, tendo como
objetivo a aprovação de medidas provisórias, projetos de lei e emendas
constitucionais.
Apesar das aparências, não se pode dizer que tal caracterização do
político seja algo próprio da extrema direita, quanto mais não seja pelo
fato de Schmitt conferir-lhe validade universal. A questão reside em
que ela é utilizada tanto por setores de direita quanto de esquerda.
Lula e o PT empregaram a mesma distinção ao opor “conservadores e
progressistas”, “nós contra eles”, num decalque da luta até a morte,
segundo a formulação marxista, entre “burgueses e proletários”, entre
“revolução e instituições democráticas”. Na cena internacional, hoje há
schmittianos de direita e esquerda!
Seria tentado a dizer que o voto do sim em Jair Bolsonaro foi também um
voto do não à concepção autoritária do PT. Quando os brasileiros foram
às urnas em 2018, eles expressaram claramente um não ao petismo, à
corrupção e ao desastre econômico que foi o governo Dilma. Disseram não
ao acirramento das relações políticas, que atingiram até amizades e
núcleos familiares. Os eleitores não disseram sim à substituição de um
tipo de política por outro da mesma espécie com sinal trocado. Em certo sentido, pode-se dizer que Bolsonaro estava certo, conforme a
lógica eleitoral, em utilizar essa distinção, pois ao se apresentar como
o anti-PT, ele o considerou o inimigo a ser abatido numa contenda
democrática. Seu uso intensivo das redes sociais, que se prestam
particularmente a esse tipo de embate, foi-lhe da maior valia. Seu
sucesso mostra a correta estratégia adotada. Contudo não necessariamente
um instrumento empregado numa luta eleitoral tem a mesma validade na
arte de governar. São campos distintos.
Prova disso, a posição do governo Bolsonaro em relação ao governo Temer.
Sob a ótica das eleições, Bolsonaro fez como se Temer não existisse,
centrando todas as suas baterias nos governos petistas, como se eles
ainda governassem. Tinha-se a impressão de que Lula-Dilma-PT ainda
habitavam os Palácios do Planalto e da Alvorada. O candidato fez uma
ponte de mais de dois anos, omitindo-o. Entretanto, no que diz respeito à
pauta reformista do atual governo, ela é uma prolongação da anterior.
Do ponto de vista do confronto político, o bolsonarismo adota posição
contra o PT e a esquerda em geral; do ponto de vista das reformas, ele
se considera seguidor da pauta liberal do governo Temer.
Neste primeiro ano, o grande feito do atual governo foi a aprovação da
reforma da Previdência, preparada e amplamente discutida pelo governo
anterior. A assinatura do acordo União Europeia-Mercosul foi outro feito
digno de menção, embora a política de confronto adotada na esfera
ambiental já o esteja contaminando. A reforma trabalhista do governo
anterior está também tendo continuidade via medida provisória que amplia
algumas das mudanças feitas, apesar de estar também ainda em discussão
parlamentar. O programa de concessões e privatizações é, da mesma
maneira, um prolongamento dos projetos anteriores, com destaque para o
Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). O problema aí consiste em
que a política do embate, ao adentrar o Congresso e a sociedade em
geral, termina por prejudicar o liberalismo apregoado na esfera das
relações econômicas. Se o governo abandonasse a política do confronto,
as reformas marchariam com muito maior rapidez e o Brasil ganharia com
isso.
A pauta conservadora tem sido outro motivo de confronto. Os eleitores de
Bolsonaro não disseram, em sua totalidade, sim ao proposto pelo então
candidato, mas não ao PT, incluídos seus excessos ao forçar goela abaixo
dos brasileiros o politicamente correto.
Uma parte dos eleitores disse
sim ao projeto conservador, mormente entre os evangélicos, outros
disseram sim a Bolsonaro e não à visão conservadora que está sendo
implementada. Liberais, do ponto de vista dos costumes, da religião e da
moralidade em geral, votaram em Bolsonaro para dizer não ao PT.
Talvez o presidente devesse atentar melhor para esse fato, deixando de
lado seu precoce projeto eleitoral de 2022, arregimentando desde já
conservadores para o seu lado, como se as eleições fossem amanhã. O
atual governo e o Brasil têm um longo percurso pela frente, e muito do
seu sucesso ou fracasso dependerá da aprovação do seu projeto
reformista, que será tanto mais viável quanto maior for o esforço do
presidente para abandonar o confronto incessante com os adversários e as
instituições.
Denis Lerrer Rosenfield, professor de filosofia - O Estado de S.Paulo