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quinta-feira, 3 de março de 2022

QUAL O LIMITE PARA PUTIN? - Guilherme Baumhardt

Nações têm interesses e estão de olho em mercados. A relação entre parceiros pode gerar benefícios, mas quando ela se traduz em dependência pode significar, também, riscos

Semanas atrás, na véspera da visita do presidente Jair Bolsonaro à Rússia, um recuo das tropas comandadas por Vladimir Putin foi comemorado como um sinal de que o iminente conflito com a Ucrânia poderia não ocorrer. O quadro remete ao que muitas vezes ocorre com o paciente internado por longo período em um hospital: uma leve melhora antes do óbito. No caso das tropas russas, o que houve foi um embuste. A decisão de Moscou de atacar Kiev já estava tomada. Era apenas questão de tempo. Prova disso é a velocidade com que avançam sobre o território ucraniano.


Bombas, mísseis e mortes ocorrem todos os dias – a população de Israel que o diga, volta e meia atacada pelo grupo terrorista Hamas. O que estamos assistindo neste momento, porém, é bem diferente. Trata-se de uma potência nuclear avançando sobre o segundo país em área territorial do Velho Continente. Não é pouca coisa.

A ruína da antiga União Soviética trouxe cicatrizes. Países foram desmantelados (Tchecoslováquia e Iugoslávia, para ficarmos em apenas dois dos mais expressivos exemplos) e deram origem a outras nações. E embora tenham sido processos traumáticos e construídos muitas vezes à base de protestos, sangue e mortes, eram conflitos essencialmente internos.

Sem saber ainda qual o apetite de Vladimir Putin e qual a dimensão que terá o impacto nas relações políticas e econômicas, ficam algumas lições do que ocorre neste momento.

A primeira e, talvez, mais básica é: não existe vácuo de poder. Quando alguém abre mão da liderança, o que surge não é o vazio, mas sim uma substituição natural.   
Donald Trump estava longe de ser o mais polido dos presidentes norte-americanos. Mas se faltava educação e finesse, sobrava habilidade nas negociações. 
Joe Biden oscila. A ameaça de retaliar a Rússia com embargos econômicos tem alcance limitado e ele sabe disso. O mundo esperava uma reação mais enérgica. Ela não veio.

A segunda lição serve de alerta: a agenda ambiental que demoniza combustíveis fósseis pode ser, aos olhos das novas gerações, limpa e cheirosa. Mas traz riscos, especialmente do ponto de vista de segurança, tanto de fornecimento quanto de estabilidade política. A pergunta mais óbvia é: enfiar goela abaixo, a fórceps, o uso de energias alternativas interessa a quem?

Nações têm interesses e estão de olho em mercados. A relação entre parceiros pode gerar benefícios, mas quando ela se traduz em dependência pode significar, também, riscos. A Europa que estimulou (inclusive com a adoção de prazos legais) a propagação dos carros elétricos estava interessada em depender menos do petróleo que ela pouco produz (exceção feita aos nórdicos). Até aí, sem problemas. Mas a mesma Europa que queria reduzir esta dependência é hoje praticamente refém do gás russo, especialmente a Alemanha, que decidiu precipitada e erroneamente desligar usinas nucleares após o terremoto e posterior tsunami que atingiu a usina de Fukushima.

Em meio à onda desarmamentista que avança sobre o mundo, uma importante lembrança: na metade da década de 1990, um acordo selou o destino do poderio nuclear da Ucrânia, o terceiro mais importante do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e Rússia. As ogivas foram devolvidas aos russos sob a promessa de que o ocidente garantiria a segurança dos ucranianos. Pergunto: se a Ucrânia ainda tivesse este arsenal sob seus domínios, Putin se arriscaria a fazer o que fez? Pouco provável.

O fato é que Joe Biden parece perdido.[parece? o dorminhoco americano já estava perdido quando o candidataram.]  Não é a primeira vez que isso ocorre com um presidente dos Estados Unidos. Na década de 1960, John Kennedy passou por situação semelhante. Após vencer Richard Nixon nas eleições, o jovem presidente democrata entrou em uma ciranda de desgaste da gestão. A aprovação a ele e ao governo caía. Assim como ocorre agora, a antiga União Soviética viu na fraqueza de Kennedy uma oportunidade de expandir seus domínios e ampliar seu poder bélico.

O resto é história. A chamada "Crise dos Mísseis" tirou o sono de boa parte do planeta ao longo de quase duas semanas. Habilidoso, Kennedy viu ali uma oportunidade. O jovem peitou Nikita Khrushchev, impediu a instalação do arsenal soviético em solo cubano e aproveitou para recuperar o terreno perdido. Kennedy ressurgiu como liderança no seu país e, também, no ocidente. O mundo hoje olha para Joe Biden e não nutre grandes esperanças de que algo semelhante possa ocorrer. Se nada for feito, a resposta para o título da coluna será: não há limite. Infelizmente.

*Publicado originalmente no Correio do Povo de 25/02/2022

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Falta mais do que dinheiro

As leis, a mentalidade política e a cultura nacional querem do Estado muito mais do que ele pode fornecer

A história das contas do governo federal tem o seguinte enredo:
— por norma constitucional, a despesa de um ano tem que ser igual à despesa do ano anterior mais a inflação;
— na vida real, e por determinação também constitucional, as despesas com previdência, pessoal e benefícios crescem bem acima da inflação todos os anos;
— logo, para que a despesa total permaneça estável, é preciso cortar os gastos com custeio e investimento;
— logo, falta dinheiro para o governo tocar os serviços públicos de educação, saúde, segurança etc.


Claro que a primeira resposta para essa situação está na reforma previdenciária, de longe o maior gasto e o maior déficit, que cresce todos os anos.  Mas ainda que se faça essa reforma, o que é muito difícil, não vai sobrar dinheiro para o resto do Orçamento. Primeiro, porque o gasto previdenciário já atingiu um nível muito elevado — mais de 50% do total das despesas. Nenhuma reforma reduzirá esse gasto. Poderá apenas, sendo bem-sucedida, diminuir a velocidade de expansão do déficit. Logo, continuará muito apertado o orçamento de todas as demais áreas do governo. O que nos leva à necessidade de outras duas reformas, uma para conter a folha de salários do funcionalismo, outra para reduzir o generoso pagamento de benefícios diretos.  Mas, de novo, esses gastos já atingiram níveis elevados. Também não podem ser reduzidos, mas apenas contida sua expansão.

E mesmo que se consiga isso — reparem, já são três reformas muito difíceis não vai sobrar dinheiro para o setor público naquela que é sua função principal, a de prestar serviço aos cidadãos.  A razão é óbvia — ou deveria ser. E é a seguinte: as leis, a mentalidade política e a cultura nacional querem do Estado muito mais do que ele pode fornecer.

Como se financia o Estado? Com impostos e com a tomada de empréstimo. Já fizemos isso. A carga tributária é muito elevada, não cabe no bolso dos contribuintes. E a dívida pública cresce todos os anos, aproximando-se perigosamente do nível em que será insustentável. O governo tem ainda uma última arma — destruidora — que é emitir dinheiro. Resolve por um instante e gera uma baita inflação.  Tudo isso para tentar mostrar que é preciso reduzir o tamanho do Estado.

Está uma choradeira em tudo que é repartição pública. Compreensível. Está sempre faltando alguma coisa, de gasolina para a polícia a rancho para os soldados. Reação automática do pessoal: pedir mais dinheiro para Brasília.  Tem uma turma que vai ao limite do ridículo: é contra as reformas, contra mais impostos e a favor do aumento de gastos e investimentos. A dívida pública? Não tem problema, é só deixar de pagar aos especuladores, alegam.

Mas mesmo tirante essa turma, fica muita gente bem intencionada que não percebeu a raiz do problema: o Estado terá que fazer mais com menos, prestar menos serviços para menos pessoas e, finalmente, buscar recursos no setor privado.  Vamos falar francamente: não faz sentido dar universidade de graça para quem pode pagar. Idem para o atendimento médico.  Diz a Constituição que todo brasileiro tem direito a ser atendido de graça e com o melhor tratamento disponível. Não tem dinheiro para isso. Logo, é preciso fazer uma fila e definir quem pode e quem não pode receber este ou aquele tratamento. [o grande mal do Brasil é que a tal 'constituição cidadã' do falecido deputado Ulysses Cavalcanti foi pródiga em conceder direitos e ranzinza em impor deveres.
- Concede a todos tratamento de saúde dos países nórdicos, esquecendo de prover recursos para atender tal liberalidade;
- permite uma porção de bolsas, incluindo bolsa auxílio reclusão para familiares de bandidos presos e proíbe pena de morte, prisão perpétua e prisão com trabalhos forçados;
- obriga o ensino gratuito até os 14 anos mas determina que um bandido com idade de 17 anos, 11 meses e 29 dias, seja preso = é apreendido por no máximo 3 anos;

- diz que todos são iguais, mas, permite o absurdo e nefasto sistema de cotas, que extingue qualquer valor ao mérito. 
Existem dezenas de outros absurdos, mas é enfadonho citá-los.
A tal 'constituição cidadã' tem que ser reformada de cabo a rabo - incluindo a extinção do artigo que cria as malfadadas CLÁUSULAS PÉTREAS.
Essa reforma tem que ser realizada e não sendo por bem, será por um Ato Institucional.]

Dizem: isso é uma violação do princípio do atendimento universal. Mas esse princípio é violado todos os dias e da maneira mais selvagem: fila no pronto-socorro, gente morrendo no corredor do hospital ou aguardando meses para o tratamento de um câncer.  A lei não organiza a fila. Fica por conta do coitado do plantonista da emergência. Não faz sentido que as universidades e os centros de pesquisa não vendam serviços para empresas e outras instituições privadas. As universidades aqui não conseguem nem receber doações. Já em países onde estão algumas das melhores escolas do mundo, as universidades vivem basicamente de doações e venda de serviços. Incluindo a cobrança de anuidades, combinando com o fornecimento de bolsas.

Desculpem se estamos piorando o cenário, mas é isso mesmo. Não bastarão as reformas da Previdência e do funcionalismo. Precisamos de um mudança cultural: entender que o Estado brasileiro atual não cabe no país. Tem que ser menor e melhor.

Fonte: Carlos Alberto Sardenberg, jornalista