[Para melhor demonstrar a arbitrariedade cometida
com a divulgação ilegal dos salários dos servidores públicos, abaixo
publicamos a íntegra da carta pública do presidente do TJ do Rio, que demonstra
as razões dos que defendem a privacidade dos vencimentos dos servidores
públicos.]
“O Supremo Tribunal Federal, por ato de seu
presidente, decidiu suspender decisões da Justiça Federal que concederam
liminar requerida pela Confederação dos Servidores Públicos do Brasil em ação
ordinária, impeditiva da publicação do valor individual da remuneração dos
agentes públicos porque portadora de potencial lesivo ao direito à intimidade.
A liturgia inerente à austeridade própria do Poder Judiciário, de que resulta
necessária hierarquia entre os tribunais, impõe aos presidentes de todos os
tribunais do país o cumprimento da decisão também quanto aos magistrados e
serventuários de seus respectivos quadros.
Todavia, outra característica essencial da
judicatura, que é o permanente compromisso de cumprir e fazer cumprir a
Constituição e as leis - tal o juramento que fazem os magistrados quando
empossados no cargo -, deixa apreensivas as autoridades judiciárias. É que a
referida decisão foi tomada pelo presidente do STF durante as férias da Corte,
o que cabe somente em matérias que desafiem tutela de urgência, entendendo-se
por urgente a proteção a direito que, cumulativamente, se apresente fundado em
relevantes motivos, ameaçado de perecimento em razão de demora na intervenção
judicial e não seja portador de risco contra o interesse público.
A tutela de urgência é provisória e precária, tal
como ressalva a decisão do presidente do STF - “neste tipo de processo, esta
nossa Casa da Justiça não enfrenta o mérito da controvérsia, apreciando-o, se
for o caso, lateral ou superficialmente”. No caso, omitiu-se de examinar, por
isto mesmo, pontos importantes ao aprofundamento meritório da causa, atraentes
de dúvidas e perplexidades que se podem sintetizar em seis pontos:
1º - o art.
39, § 6º, da Constituição Federal estabelece, com a redação que lhe deu a
Emenda nº 19/98, que os “Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário publicarão
anualmente os valores do subsídio e da remuneração dos cargos e empregos
públicos”; a norma constitucional específica não manda publicar os valores
percebidos, individualmente, pelos ocupantes dos cargos e empregos
públicos, mas apenas o valor da remuneração correspondente aos cargos e
empregos públicos, pela evidente razão de que o montante da despesa assim
gerada é que interessa considerar quando se analisa o peso que a remuneração
dos servidores públicos em geral tem no orçamento dos entes federativos, e que
não pode ultrapassar os limites fixados pela Lei de Responsabilidade Fiscal;
eventuais desvios ou abusos personalizados sujeitam-se às mais variadas
instâncias de controle interno e externo, tais como tribunais de contas e
ministério público; a decisão provisória do presidente do STF não faz
referência ao art. 39, § 6º;
2º - a Lei
de Acesso à Informação (nº 12.527/11) não ampliou o alcance do art. 39, §
6º, da Constituição (a possibilidade de fazê-lo também é tema sujeito ao
crivo da Corte Constitucional); a ementa da Lei nº 12.527/11 enuncia que o seu
propósito é o de regular “o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do
art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição
Federal”; nenhum desses dispositivos manda dar publicidade ao valor
individualizado da remuneração dos servidores públicos; ao contrário, todos condicionam o acesso à informação à existência de
determinados interesses e preservada a inviolabilidade da intimidade, da vida
privada, da honra e da imagem das pessoas, “assegurado o direito a
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º,
X, da Constituição); a decisão do presidente do STF considera que a
publicidade individualizada da remuneração atende a interesse coletivo ou geral
pelo fato de se tratar de servidores públicos, com o que inaugura
discriminação de que jamais antes se cogitou, a
ponto de excluir os servidores públicos do sigilo fiscal assegurado a todos os
cidadãos; em tese, há urgência para evitar discriminação, não para
instituí-la;
3º - o art.
216, § 2º, da vigente Constituição, mencionado na ementa da Lei nº 12.527/11,
atribui “à administração pública, na forma da lei,
a gestão da documentação governamental e as providências para franquear
sua consulta a quantos dela necessitem”; quem mandou publicar a remuneração
dos servidores públicos de “maneira individualizada” foi o Decreto nº
7.724/12 (art. 7º, § 3º, VI), que a veio regulamentar; quem
alterou o tratamento dispensado à matéria pela Constituição não foi a Lei nº
12.527/11, mas, sim, o Decreto 7.724/12;
suscitável, aí, outra questão constitucional relevante:
a finalidade de todo decreto, que se define como ato administrativo de chefe
de poder executivo, é a de dar “fiel execução” à lei que visa
regulamentar (CR/88, art. 84, IV), por isto que não a pode
extrapolar, instituindo direitos ou criando obrigações não previstos na lei
regulamentada;
4º - a Lei nº
12.527/11 preceitua, em seu art. 31, § 2º, em harmonia com o art. 5º, X, da
Constituição, que “Aquele que obtiver acesso às informações de que trata este
artigo será responsabilizado por seu uso indevido”; tais informações são, diz a
cabeça do mesmo art. 31, as concernentes “à intimidade, vida privada, honra e
imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais”; será
necessário, para afastar a incidência dessas normas, classificar a remuneração
individual dos servidores públicos como informação pública, acessível a
todos e sem direito à proteção devida à intimidade ou à vida privada; embora
não o expressem, tais são os efeitos imediatos do Decreto nº 7.724/12 e da
decisão do presidente do STF;
5º - a
decisão suspensiva da liminar invoca, ainda, como fundamento outra decisão
proferida pelo STF, em sessão administrativa de 22 de maio de 2012, já vigente
a Lei nº 12.527/11, e por meio da qual a Corte deliberou, à unanimidade,
“divulgar, de forma ativa e irrestrita, os subsídios dos ministros e a
remuneração dos servidores do quadro de pessoal do Supremo Tribunal Federal,
assim como os proventos dos ministros aposentados, dos servidores inativos e
dos pensionistas”; os termos dessa diretriz administrativa do STF aludem,
como se vê, a valores, cargos e situações jurídicas, não a pessoas
individualizadas, e não são inequívocos, tanto que, ao neles se
espelharem, as administrações de alguns tribunais (Superior Tribunal de Justiça
e Tribunal de Justiça do Distrito Federal, por exemplo) passaram a divulgar
a relação individualizada da remuneração de seus magistrados e servidores sem,
porém, a identificação dos respectivos nomes, a
compatibilizar a publicidade com a proteção constitucional devida à intimidade;
6º - os
magistrados de carreira julgam, ao longo de décadas no exercício diuturno da
jurisdição cível ou de família, litígios os mais inusitados acerca de
alegados danos materiais e morais, por arguida violação à intimidade ou à
imagem e seus deveres correlatos; são homens e mulheres que discutem o
valor de pensão ou sobre a partilha de bens havidos de casamento ou união
estável, pais e filhos que se digladiam quanto a esses mesmos bens e valores,
credores e devedores que intentam demonstrar dispor ou não dispor de meios para
atender a compromissos contratados, prestadores de serviços (bancos,
seguradoras, planos de saúde, concessionárias de serviços públicos, entre
outros) que imputam a usuários ou consumidores condições, legítimas ou não,
para cumprir ou não cumprir cláusulas contratuais etc.; se uma das partes
desses milhares ou milhões de conflitos do cotidiano forense for servidor
público, estará em desvantagem perante a parte adversa, que já conhecerá a
remuneração daquele, se removidas as garantias constitucionais e legais tal
como eram entendidas até aqui, em colisão com a regra inscrita no art. 125 do Código
de Processo Civil, que impõe ao juiz o dever de garantir às partes igualdade de
tratamento.
Sendo o STF, como é, o Tribunal incumbido de dar a
palavra final sobre o sentido dos princípios e normas constitucionais, assim será se o STF disser que é, mas conviria que
o fizesse por decisão plenária, após amadurecida interlocução (como tem feito em outras matérias de extraordinária repercussão), da
qual talvez venha a resultar que, por questão de isonomia – tema igualmente
constitucional -, a total exposição da remuneração individual deve alcançar
todos aqueles que exerçam funções essenciais para a sociedade, ainda que não
sejam integrantes dos quadros públicos, como, por exemplo, os empresários, cujo
valor dos rendimentos pessoais poderá ser do interesse dos empregados conhecer,
à vista do princípio da preservação da empresa.
Nem é difícil imaginar que o precedente venha a
inspirar ações civis públicas por meio das quais o Ministério Público ou a
Defensoria Pública postule a publicidade da remuneração individual dos
integrantes dessa ou daquela categoria profissional como condição para atender
a tais ou quais interesses coletivos ou difusos (no mundo globalizado,
tudo, ou quase tudo, pode vir a constituir direito ou interesse tutelável
mediante ações coletivas). E quando o sigilo fiscal se houver tornado obsoleto,
caberá aos historiadores do direito registrar que tudo começou com um ato
administrativo de chefe de executivo, que decisão pessoal do presidente do STF,
durante as férias da Corte, entendeu de transformar na nova fronteira da
proteção ao direito à intimidade e à vida privada, na ordem constitucional
brasileira.
Aguardam os juízes uma clara orientação da Suprema
Corte, que sirva aos direitos e garantias fundamentais que a Constituição
defere a todos. Enquanto isto, como agentes políticos e servidores públicos em sentido
lato que também são, estarão expondo a quem queira saber - ainda que não se perceba a utilidade disto para a gestão do
estado - o valor de suas remunerações individuais, tanto pelo valor que
corresponde ao cargo, o que já se encontra nos sítios eletrônicos de todos os
tribunais, quanto em relação a acréscimos ou reduções decorrentes de fatores
variados, e previstos em lei, que lhes afetam a carreira em caráter pessoal.
A imprensa, assim como as outras instituições
primordiais da fisionomia de uma nação, escreve papel importante na
interpretação de sua Constituição. Mas, por outro lado, não lhe cabe,
ainda que a pressão que possa exercer decorra das melhores intenções, a
interpretação final dos princípios e das normas constitucionais, atribuição
precípua do Poder Judiciário e, com maior especificidade, do Supremo Tribunal
Federal. Assim, talvez não seja demais lembrar a função predominante de
cada instituição. A se admitir, por questão de conveniência ou oportunidade, a
moratória da Constituição, corre-se o risco de vê-la esvaziada de seu
fundamental conteúdo de segurança jurídica, inclusive frente aos seus próprios
e mais relevantes poderes e instituições. Por isso, na candente advertência de
Hegel: “Quem exagera o argumento, prejudica a causa.” Que
na situação concreta do julgamento de mérito, a causa possa, ponderadamente,
superar o argumento.”