Alguns amigos ficaram
alarmados com a menção a “novas doutrinas”, como se o Vaticano estivesse
dizendo “calma, não façam besteira sozinhos, esperem por nós para
fazermos besteira todos juntos”. Mas não é para tanto. A Santa Sé está
apenas dizendo que não interessa o que os “sinodais” alemães decidam
sobre ordenação de mulheres; celibato sacerdotal; comunhão para quem quiser independentemente de ser católico
ou não, de ser pecador público ou não; contracepção artificial; o que
for – nada disso tem a menor validade, porque o que vale é a doutrina imutável da Igreja, algo que não se decide “de baixo para cima”.
É inimaginável que um puxão de orelha desses não tenha tido o conhecimento e a aprovação do papa Francisco
No
mesmo dia,
a Assembleia Sinodal respondeu, de uma forma que beira a
insolência. O comunicado é assinado pelo bispo Georg Bätzing, presidente
da conferência episcopal alemã, e por Irme Stetter-Karp, presidente do
Comitê Central de Católicos Alemães (que, dias atrás, defendeu o direito ao aborto na Alemanha).
Mas, ao contrário do dito popular, a dupla primeiro assopra para depois
morder. Com um cinismo impressionante, Bätzing e Stetter-Karp dizem
alegrar-se que “a Santa Sé volte a insistir naquilo com que já nos
comprometemos (...): as decisões da Assembleia Sinodal não têm por si
mesmas efeitos jurídicos. A autoridade da Conferência Episcopal e de
cada bispo diocesano para promulgar normas jurídicas e exercer seu
magistério no âmbito de suas respectivas competências não é afetada
pelas resoluções”, como se Vaticano e Assembleia Sinodal estivessem
apenas dizendo a mesma coisa com palavras diferentes. Cinismo, sim,
porque a resposta ignora a pressão dentro do próprio “caminho sinodal”
para obrigar todos os bispos alemães a seguir o que saísse da
Assembleia.
Mais adiante, os “sinodais” partem para o
ataque. “Lamentamos com irritação que esta comunicação direta não tenha
ocorrido até agora”, afirmam, em relação à possibilidade de um diálogo
com Roma (como se o próprio papa já não tivesse tratado do assunto na
carta citada e em encontros com o bispo Bätzing), e concluem dizendo que
“isso também se aplica à forma atual de comunicação, que nos assombra.
Não há testemunho de um bom estilo de comunicação dentro da Igreja se as
declarações não são assinadas”.
Vá lá, a declaração de 21 julho
realmente não traz o nome de ninguém, nem está vinculada a algum
dicastério específico.
Mas é inimaginável que um puxão de orelha desses
não tenha tido o conhecimento e a aprovação do papa Francisco.
Assim,
quem exatamente redigiu o texto é o que menos importa neste contexto.
O
que importa é que, pela maneira como os “sinodais” reagiram, a
possibilidade de a chamada de atenção produzir algum bom resultado é
mínima.
Ponte aérea Frankfurt-Manaus
Um detalhe interessante disso tudo é que o Vaticano atirou no que viu e pode ter acertado também o que não viu.
Na véspera da divulgação da declaração da Santa Sé, a
Comissão Episcopal Especial para a Amazônia (CEA), a
Rede Eclesial Panamazônica (Repam-Brasil) e a
Conferência Nacional dos Religiosos do Brasil (CRB) lançaram um certo “
Documento de Santarém 50 anos: Gratidão e Profecia” (foi destaque até no Vatican News)
em que também se pede a ordenação sacerdotal de homens casados e a ordenação diaconal de mulheres –
“até mesmo porque não encontramos teológica e pastoralmente impedimentos para isso”,
afirmou, no evento de lançamento, Márcia Maria de Oliveira, da Universidade Federal de Roraima, que participou como perita do Sínodo para a Amazônia.
Ela argumenta que “nos apoiamos na orientação do Documento Final do Sínodo Especial para a Amazônia”
para fazer essas propostas, mas, ao menos em relação à ordenação de
mulheres ao diaconato, o documento não chega a fazer essa solicitação;
apenas menciona que, nas consultas prévias, esse pedido apareceu com
frequência e,
“por isso, o tema também esteve muito presente no Sínodo”.
Quanto à ordenação sacerdotal de homens casados, sim, o documento final
foi mais explícito ao afirmar que “propomos estabelecer critérios e
disposições por parte da autoridade competente, no âmbito da Lumen Gentium 26,
para ordenar sacerdotes a homens idôneos e reconhecidos pela
comunidade, que tenham um diaconato permanente fecundo e recebam uma
formação adequada para o presbiterato, podendo ter uma família
legitimamente constituída e estável”.
Mas o papa meio que já deu suas respostas na exortação pós-sinodal Querida Amazônia.
Sobre as mulheres, escreveu que não se pode “reduzir a nossa
compreensão da Igreja a meras estruturas funcionais. Este reducionismo
levar-nos-ia a pensar que só se daria às mulheres um status e
uma participação maior na Igreja se lhes fosse concedido acesso à Ordem
sacra. Mas, na realidade, este horizonte limitaria as perspectivas,
levar-nos-ia a clericalizar as mulheres, diminuiria o grande valor do
que elas já deram e subtilmente causaria um empobrecimento da sua
contribuição indispensável”, e que “as mulheres, que de fato realizam um
papel central nas comunidades amazónicas, deveriam poder ter acesso a
funções e inclusive serviços eclesiais que não requeiram a Ordem sacra
e permitam expressar melhor o seu lugar próprio” (o destaque é meu).
Sobre a ordenação sacerdotal de homens casados, o papa não diz
absolutamente nada. Então, se a Igreja na Amazônia estiver pensando em
trilhar o caminho dos “sinodais” alemães, para ela também vale o aviso
do Vaticano.
O pedido de perdão do papa Francisco no CanadáO papa está no Canadá para uma “viagem penitencial”. Nesta segunda-feira,
sua conta oficial no Twitter em português trouxe a seguinte mensagem:Vamos, então, acalmar os perplexos.
Sim, o Trudeauzinho é um protótipo de ditador que não tem nenhum apreço pela liberdade religiosa.
Sim, a história das valas comuns com corpos de crianças mortas em escolas religiosas era uma farsa completa
(e ainda estamos esperando os pedidos de desculpas pelo vandalismo
cometido contra igrejas após o surgimento da história). Mas, apesar
disso,
temos de admitir que escolas católicas também (porque não foram
as únicas) participaram do projeto do governo canadense de substituir
forçadamente a cultura indígena local pela cultura europeia, em uma
assimilação forçada que violou inúmeras liberdades, inclusive a
religiosa.
Não foi algo amplamente generalizado, muitas escolas
proporcionavam um tratamento perfeitamente respeitoso às crianças
indígenas, mas houve outras em que a coisa foi bem diferente. A esse
respeito, colo aqui o que um amigo católico, que já viveu no Canadá e
prefere não se identificar, escreveu no Facebook:
Sendo
católico e tendo morado alguns anos no Canadá, creio que é importante
comentar certos pontos da visita do Papa e seu pedido de perdão aos
indígenas canadenses.
1. As escolas residenciais foram um genocídio cultural e a Igreja tem sim
responsabilidade quanto a elas, assim como também têm certas
denominações protestantes e o governo canadense. O exagero propagado por
alguns grupos revanchistas quanto ao dano causado não exime esta culpa.
O pedido de perdão do Papa é cabido e necessário para um vital processo
de reparação.
2. O
Canadá tem um “Centro de Verdade e Reconciliação” criado para a questão
das escolas residenciais. Por meio dele, há várias exigências contra a
Igreja – algumas plausíveis, outras descabidas. Uma delas é o pedido de
perdão formal. A demonstração de boa vontade nos municia para abrir o
diálogo da outra parte e para rechaçar as exigências descabidas.
3.
O ódio anticlerical lá é forte e depois das recentes agressões
anticatólicas, com incêndio criminoso de igrejas, este pedido de perdão é
ainda mais relevante e evangélico. Deixa claro que os intolerantes e
agressores, agora, são esses grupos que exploram a vulnerabilidade
social dos indígenas para nos atacar; e não nós. No campo político, isto
reequilibra a balança a favor da Igreja.
4.
Indígenas no Canadá não são como no Brasil: organizam-se em federações e
têm representação política formal, com assentos nos parlamentos. Um
pedido de perdão em cerimônia oficial é importante também por isso.
5. Nota-se também que o Santo Padre citou nominalmente as reduções jesuíticas no Brasil e Paraguai como um bom exemplo
de evangelização de povos indígenas que não usaram de agressão
colonialista. Provou que é possível evangelizar sem destruir e derrubou
mais uma mentira anticatólica.
6.
Ah, o Papa usou um cocar? Ótimo, agora os indígenas o reconhecem como
autoridade. Cocar não é fantasia de carnaval, é uma coroa – e os papas
também usaram coroas romanas e germânicas pagãs. E como disse o Padre
Antônio Vieira: “a coroa de penas é tão digna quanto a coroa de ouro”.
Julgar
as pessoas de outrora a partir do que sabemos hoje é sempre algo
complicado. Pode ser que elas estivessem realmente crentes de que faziam
a coisa certa. Mas hoje sabemos que não era a coisa certa, e por isso é preciso retificar.