A
aparente contradição entre a fé e a razão suscita um debate que – mais
do que recorrente – tem sido permanente nos últimos três séculos da
história. Durante todo esse período, assim como houve quem lesse a
Bíblia como um livro científico, houve quem lesse os livros da ciência
como obra revelada e nesse teimoso engano abriram-se trincheiras que
ainda hoje persistem em mentalidades mais renitentes. Contudo, a
verdadeira fé, por ser ato humano, não prescinde da verdadeira razão.
Que a Bíblia
não é um livro científico parece mais do que evidente. E que a razão e a
observação – a testa e o tato – não são as vertentes definitivas do que
é verdade ou verdadeiro, deveria ser igualmente óbvio. Conforme Karl Popper
(um agnóstico que não pode ser apresentado como defensor da
religiosidade), nossos sentidos costumam nos iludir, as verdades
científicas são sempre hipóteses provisórias e acreditar que a razão
produz a verdade é outra espécie de fideísmo (qualquer bom filósofo sabe
o quanto a razão conduz a paradoxos).
A dimensão
religiosa é natural à pessoa humana, assim como o são, entre outras, as
dimensões artística, moral, econômica e política. Qualquer uma delas
pode ser desenvolvida ou não e o fato de perder impulso no transcurso da
existência de algumas pessoas não significa que tenha deixado de
existir. Por isso, o fenômeno religioso é presente em todos os povos e
épocas. Há dezoito séculos, Plutarco já sustentava: “Podereis
encontrar uma cidade sem muralhas, sem edifícios, sem ginásios, sem
leis, sem moeda, sem cultura das letras.
Mas um povo sem Deus, oração,
juramentos, ritos, tal nunca se viu”. Todo conhecimento
antropológico posterior veio corroborar essa observação, assim como veio
comprovar a preeminente posição da religiosidade em todas as culturas.
Joachim Wash,
em seu Estudo comparativo das religiões, ensina que a experiência
religiosa é uma resposta do homem à realidade última das coisas, a qual
se expressa num Ser superior, transcendente e, todavia, susceptível de
relacionar-se com ele;
que orientar-se para esse Ser exige do homem uma
resposta total e que dele aproximar-se constitui uma experiência
inigualável, criativa e transformadora.
A
naturalidade da dimensão religiosa jamais oblitera e ressurge,
inclusive, nas explicações redutivas, de cunho científico, que a
pretendem suprimir. Em todas há uma fé (ainda que na matéria, na
natureza, no próprio homem, nas leis econômicas, no valor da
sensualidade, na política, etc.) e, consequentemente, em todas há uma
doutrina inquestionável e alguma forma de culto.
Por isso, Max Scheler,
não sem alguma ironia, afirma ser impossível se convencer alguém de que
Deus existe pela mera razão.
Mais fácil, constata ele, é mostrar que
essa pessoa colocou algo no lugar de Deus: a si mesmo, a riqueza, o
poder, o prazer, a beleza, a ciência, a arte, etc..
De fato, é curta a
distância, mas há um abismo qualitativo entre o amor a Deus e a
idolatria.
Dada a
naturalidade do fenômeno religioso e da dimensão religiosa do ser
humano, recusá-las é negar realidade ao próprio ser. E isso é uma forma
de alienação. Como a vida se encarrega de evidenciar, se adotamos a
Razão por fonte única da verdade, deixamos o homem sem possibilidade de
resposta para as maiores questões de sua existência – tais como o
sofrimento, o amor, a esperança, a morte e a própria finalidade da vida –
que não se resolvem no plano da razão ou no dos sentidos. Ignorá-las,
como tantos ensaiam fazer, é pura e simples alienação.
Plutarco: De natura deorum, citado em Religião e Cristianismo (ITCR PUCRS)
Karl Popper: conforme citado por Vitorio Messori em Pensare la Storia.
Max Scheler: resumido da citação feita à obra Vom ewigen im Menschen, em Religião e Cristianismo (idem).
Percival Puggina (77), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto,
empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de
dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o
totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do
Brasil. Integrante do grupo Pensar+.