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segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

FÉ, RAZÃO E... ALIENAÇÃO - Percival Puggina

A aparente contradição entre a fé e a razão suscita um debate que – mais do que recorrente – tem sido permanente nos últimos três séculos da história. Durante todo esse período, assim como houve quem lesse a Bíblia como um livro científico, houve quem lesse os livros da ciência como obra revelada e nesse teimoso engano abriram-se trincheiras que ainda hoje persistem em mentalidades mais renitentes. Contudo, a verdadeira fé, por ser ato humano, não prescinde da verdadeira razão.

Que a Bíblia não é um livro científico parece mais do que evidente. E que a razão e a observação – a testa e o tato – não são as vertentes definitivas do que é verdade ou verdadeiro, deveria ser igualmente óbvio. Conforme Karl Popper (um agnóstico que não pode ser apresentado como defensor da religiosidade), nossos sentidos costumam nos iludir, as verdades científicas são sempre hipóteses provisórias e acreditar que a razão produz a verdade é outra espécie de fideísmo (qualquer bom filósofo sabe o quanto a razão conduz a paradoxos).

A dimensão religiosa é natural à pessoa humana, assim como o são, entre outras, as dimensões artística, moral, econômica e política. Qualquer uma delas pode ser desenvolvida ou não e o fato de perder impulso no transcurso da existência de algumas pessoas não significa que tenha deixado de existir. Por isso, o fenômeno religioso é presente em todos os povos e épocas. Há dezoito séculos, Plutarco já sustentava: “Podereis encontrar uma cidade sem muralhas, sem edifícios, sem ginásios, sem leis, sem moeda, sem cultura das letras.  
Mas um povo sem Deus, oração, juramentos, ritos, tal nunca se viu”. Todo conhecimento antropológico posterior veio corroborar essa observação, assim como veio comprovar a preeminente posição da religiosidade em todas as culturas.
 
Joachim Wash, em seu Estudo comparativo das religiões, ensina que a experiência religiosa é uma resposta do homem à realidade última das coisas, a qual se expressa num Ser superior, transcendente e, todavia, susceptível de relacionar-se com ele; 
que orientar-se para esse Ser exige do homem uma resposta total e que dele aproximar-se constitui uma experiência inigualável, criativa e transformadora.
 
A naturalidade da dimensão religiosa jamais oblitera e ressurge, inclusive, nas explicações redutivas, de cunho científico, que a pretendem suprimir. Em todas há uma fé (ainda que na matéria, na natureza, no próprio homem, nas leis econômicas, no valor da sensualidade, na política, etc.) e, consequentemente, em todas há uma doutrina inquestionável e alguma forma de culto. 
Por isso, Max Scheler, não sem alguma ironia, afirma ser impossível se convencer alguém de que Deus existe pela mera razão. 
Mais fácil, constata ele, é mostrar que essa pessoa colocou algo no lugar de Deus: a si mesmo, a riqueza, o poder, o prazer, a beleza, a ciência, a arte, etc.. 
De fato, é curta a distância, mas há um abismo qualitativo entre o amor a Deus e a idolatria.

Dada a naturalidade do fenômeno religioso e da dimensão religiosa do ser humano, recusá-las é negar realidade ao próprio ser. E isso é uma forma de alienação. Como a vida se encarrega de evidenciar, se adotamos a Razão por fonte única da verdade, deixamos o homem sem possibilidade de resposta para as maiores questões de sua existência – tais como o sofrimento, o amor, a esperança, a morte e a própria finalidade da vida – que não se resolvem no plano da razão ou no dos sentidos. Ignorá-las, como tantos ensaiam fazer, é pura e simples alienação.

Plutarco: De natura deorum, citado em Religião e Cristianismo (ITCR PUCRS)

Karl Popper: conforme citado por Vitorio Messori em Pensare la Storia.

Max Scheler: resumido da citação feita à obra Vom ewigen im Menschen, em Religião e Cristianismo (idem).

Percival Puggina (77), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.


domingo, 19 de julho de 2020

O peso ético do termo ‘leviano’ - O Estado de S.Paulo

Roberto Romano


O apodo aplicado ao ministro Gilmar Mendes não poderia ter outro endereço?

Em nota de repúdio às declarações do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), os comandantes das Forças Armadas e o ministro da Defesa o acusam de várias coisas. Na ética, a mais grave afiança que Mendes falou de modo leviano. Para um juiz ou militar que se preze é essencial o recato da linguagem. O modelo do soldado virtuoso começa em Esparta. A vida silente encontra seu elogio naquela cultura. Mesmo em Atenas, onde o cidadão assumia ao mesmo tempo a guerra e a segurança interna, a fala excessiva não era apreciada. Longos discursos seriam reservados para a Assembleia. Ali se orientava o destino de todos, generais incluídos. A inflação das palavras, no governo do Estado, foi combatida pelos políticos e filósofos gregos.

Plutarco, de quem o mundo ocidental recebeu o maior contributo ético – sobretudo em matéria de moralidade militar –, redigiu tratados sobre o abuso das palavras e os danos que ele acarreta. No De Garrulitate e em seu par, o De Curiositate, o pensador adverte – com base em fatos reais – sobre os perigos da fala sem peias. Comandantes militares que frequentam barbearias são avisados: a conversa descuidada com o fígaro pode ser ouvida por espiões e arruinar a defesa coletiva. Guardar o discurso sóbrio evidencia uma das mais celebradas virtudes militares.

Quando se aponta alguém como leviano é preciso que tal acusação seja absolutamente certa e comprovada em fatos e lógica. Caso oposto, trata-se de uma quebra perigosa da ordem pública e privada. O acusado é atingido no fundamento da ordem civil: a personalidade reta. Em todas as Constituições, mesmo nas ditaduras que marcaram o Brasil no século 20, a condição para exercer um cargo oficial e garantir negócios privados reside na reputação ilibada. O leviano não tem tal direito. Indicá-lo como irresponsável é o centro da fala emitida pelo comandantes e ministro da Defesasignifica dele extrair autoridade em matérias de Estado e poder. Provada tal acusação, todos os atos do indigitado perdem forca legítima em decisões que envolvem a cidadania. Pensemos nas consequências: o Supremo Tribunal Federal é um corpo. A personalidade de seus integrantes só pode viger de forma coletiva, cada um deles responde pelo todo e vice versa. Se um ministro do STF for leviano, o fato macula o colegiado. Logo, as decisões assumidas por ele podem ser legais, mas sem legitimidade.

A fé pública exige decisões legais e legítimas. Sem fé pública o próprio Estado é corroído. Antes de comunicar ao povo que um ministro da mais alta Corte de Justiça é leviano, todo servidor do Estado deve refletir várias vezes, pois se trata de minar a obediência civil, a lei e a ordem. Tais imperativos valem para os militares que apoiam o governo. 
Volto às nossas origens éticas e às virtudes militares ou civis. Somos herdeiros da Grécia e de Roma. O Direito, a política, a vida militar não fogem à regra. No Estado moderno, atualizando as formas romanas da vida pública, as teses de soberania e majestade, contra o exercício ditatorial ou aristocrático, aplicam-se à totalidade dos cidadãos. Faltar com o decoro na fala e nos atos é destruir a fé pública.

Nenhum servidor do Estado, civil ou militar, tem o direito de ser leviano. Seu ofício exige a ponderação, a gravitas. Para os romanos, “falar ao público dizendo o que ele gostaria de ouvir é apanágio do homem que se define ao redor da levitas. A gravitas comanda uma atitude adequada que não se curva em proveito do sucesso político passageiro” (Yavetz, Z., La Plèbe et le Prince). A “leviandade consiste em obter o favor do povo desconsiderando o bem geral” (Yavetz). O governante não pode tratar os cidadãos como tolos ou crianças. Ele deve seguir a gravitas dicendi (Hellegouarch’h, J., Le Vocabulaire Latin des Relations et des Partis Politiques sous la République).

Perguntemos aos comandantes e ao ministro: dizer que uma pandemia que já ceifou a existência de cerca de 80 mil brasileiros é como uma “gripezinhaé próprio da gravitas? [Para muitos é; o general Heleno -  para citar um idoso, faixa de idade que os 'especialistas' consideram grupo de risco - foi acometido da Covid-19 e não teve nenhuma complicação, em uma declaração ele disse que sua temperatura permanecer abaixo dos 36º (talvez oportuno os 'especialistas' observarem se todas as pessoas que vencem o vírus, sem dificuldades, possuem uma temperatura normalmente baixa?); 
milhares de brasileiros, e em outros países, tiveram a covid-19 sem complicações.
Portanto, dizer que é uma gripezinha não caracteriza crime nem fere a gravitas.] Louvar certo fármaco para a cura de tal moléstia, contra advertências de especialistas em medicina, é próprio da gravitas? Zombar do sofrimento vivido por índios, abandonados aos matadores ferozes e ao vírus, sem uma palavra de apoio, integra a gravitas? Vetar o fornecimento de água e cuidados sanitários aos mesmos indígenas integra a gravitas? Afastar dois ministros médicos da Saúde porque não aceitaram propagandear a mezinha predileta do governante integra a gravitas? Desafiar autoridades médicas e sem máscara reunir multidões, apertar mãos de seguidores que exigem o fechamento do Congresso e da Justiça integra a gravitas?

Muitas perguntas podem ser feitas sobre o tema. Apenas me dirijo com respeito aos senhores militares: o apodo aplicado ao ministro Gilmar Mendes não poderia ter outro endereço? [ainda que sem procuração dos destinatários da pergunta, respondemos: o ministro - na nota tratado como senhor, para desvincular o STF da questão - ofendeu o glorioso Exército brasileiro e por extensão as demais forças da prática de um crime repugnante = genocídio. O silêncio poderia alimentar novas e mais graves declarações - o caso do ex-deputado Márcio Moreira Alves se faz presente.]  Decida a sua consciência. Na era da imprensa livre e das comunicações acessíveis a todos, agir de um modo e acusar outrem pelos próprios erros não é virtude. O nome da coisa é diverso, muito diverso.

Roberto Romano, professor - O Estado de S. Paulo



segunda-feira, 16 de abril de 2018

Por que Gleisi e Lindbergh serão os primeiros a abandonar Lula

Tanto adularam o operário-símbolo do Brasil que ele acreditou ser uma criatura divina. Acreditou também que merecia um triplex como recompensa

Se é verdade que Lula está preenchendo o tédio da prisão com leitura, gostaríamos de sugerir um título que lhe será útil. Não cometeremos a maldade de indicar Caminho Suave, a famosa cartilha de alfabetização escolar, tampouco a obviedade de um clássico como Crime e Castigo, ainda que a obra de Dostoiévski seja amplamente usada nos projetos de leitura existentes em algumas penitenciárias brasileiras. A propósito, aí está uma iniciativa louvável: a cada livro lido e resenhado, os presos diminuem alguns dias de cárcere, forma mais legítima de abreviar a pena do que recorrer a habeas corpus que só seriam possíveis com a mudança da lei.

O livro que indicamos a Lula se chama Como Distinguir o Bajulador do Amigo, de Plutarco, escrito no princípio da Era Cristã. Desde aquela época se sabe que “cada um de nós é o primeiro e maior bajulador de si próprio”. Se não tomamos consciência da absurda necessidade de aprovação que trazemos da infância, facilmente nos tornamos vítimas de oportunistas que nos afagam e elogiam para tirar vantagem no final. O texto de Plutarco tem menos de 100 páginas e é muito fácil de ler. É baratinho nos sebos e, com os direitos livres, pode ser legalmente baixado da internet. Alguém por favor leve um exemplar ao ex-presidente.

Se nunca é tarde para aprender, o livro terá o efeito de uma revelação. Convenhamos, um sujeito que diz o que Lula costuma dizer em público “não sou mais um ser humano, sou uma ideia” precisa de um mínimo de humildade para seguir em frente. Tanto adularam o operário-símbolo do Brasil, tanto lhe deram tapinhas nas costas, tanto lamberam as suas botas com as intenções do arrivismo, que ele acreditou — ah, meu Deus! — acreditou que é um ser especial, talvez etéreo, uma força da natureza, uma mente predestinada a trazer a redenção. Ah, claro: acreditou também que merecia um tríplex como recompensa.

Depois da leitura, seria bom se Lula ficasse um pouco quieto no seu “cantinho do pensamento”, tarefa difícil com a claque acampada a alguns metros de sua cela para diariamente saudá-lo com um “bom dia, presidente!” Nada como o tempo, porém. Pagos ou não, esse pessoal logo se cansa e vai embora, assim como os maiores nomes do oportunismo político nacional, Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias, a Barbie e o Ken do PT, os mesmos que chegaram ao cúmulo da bajulação ao adotar o nome de Lula. Esse esmero ridículo, segundo Plutarco, é prova suficiente de que os dois são inconfiáveis, mesmo dentro do partido, e só continuarão a lambança enquanto for vantajoso.

O grande problema para eles é que Luís Inácio foi preso por corrupção vulgar, um fato triste e comprovado, e a imprensa internacional não comprou a lorota do Mandela Barbudo da América do Sul. Houve quem apostasse que a influência de Lula cresceria com a prisão, mas as pesquisas mostram que está diminuindo, e é muito provável que, em breve, os ratos mais cabeludos do PT deem um salto ornamental no oceano. Será o grande momento individual de Lula, a sua hora da verdade, o instante em que finalmente ficará sozinho, longe dos puxa-sacos, e poderá conversar de si para consigo num grau de concentração que não experimenta há meio século.
— Por que não li esse livrinho antes?
Será o lamento solitário daquele que poderia ter sido, mas não foi.

Já que livros não fazem mal a ninguém, indicamos o mesmo título de Plutarco a Gleisi e Lindbergh. Se faltar tempo ou disposição para a leitura, destacamos um trechinho especial para a dupla: “Deve-se ajudar seu amigo em seus empreendimentos, mas não em seus crimes; deve-se ser um conselheiro e não um conspirador; um fiador, não um cúmplice; um companheiro de infortúnios, sim, por Zeus, mas não um conivente nos erros”.

O Leitor - Maicon Tenfen