Guilherme Amado
Há justificativa neste momento para vetar aglomerações, fechar igrejas e limitar o direito de ir e vir. Mas a vigilância é fundamental
Direito de livre assembleia proibido, ir e vir restrito, liberdade de
culto com limitações. O coronavírus parece também ter obrigado a
democracia a entrar em quarentena, com o mundo afundado em um misto de
medidas necessárias para vencer a pandemia, mas também tentativas de
líderes autoritários de se aproveitarem dela para ganhar mais poder e
populistas que, usando a recorrente tática de vender soluções fáceis
para problemas complexos, mais atrapalham do que ajudam seus países no
combate à doença.
Scholars especializados no tema têm acompanhado com preocupação o
impacto que o enfrentamento ao vírus pode ter na democracia de diversos
países, muitos já convivendo com retrocessos nos últimos anos. Desde
2006, mais países veem suas democracias erodindo do que outros as têm
fortalecido. De acordo com a Freedom House, organização sem fins
lucrativos baseada nos Estados Unidos e que monitora os avanços e recuos
das democracias de todo o mundo, 64 países se tornaram menos
democráticos e somente 37 se fortaleceram em 2019. A perspectiva para
este ano é que esse número seja ainda maior, por causa da pandemia.
Mas, onde muitos só veem janelas para o autoritarismo ganhar espaço, há
quem aposte também na oportunidade que a Covid-19 está dando para as
populações perceberem quão perigoso é entregar o comando do país a um
populista. Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán agora pode governar por
decretos.
Em Israel, o Parlamento e tribunais foram fechados, e Benjamin
Netanyahu conseguiu adiar seu julgamento por corrupção por dois meses.
Na Sérvia e na Turquia, veículos pró-regime deram voz a falsos
especialistas que defenderam que suas populações são geneticamente
protegidas do vírus.
No México, López Obrador abriu mão da máscara e do
álcool em gel e se apegou a imagens religiosas, sugerindo que os
governados fizessem o mesmo, e demorou a admitir a gravidade do
problema. No vizinho Estados Unidos, enquanto a governista Fox News
culpava o Partido Democrata por espalhar medo, Donald Trump também
passou por diversas fases, da banalização da doença à tentativa de criar
o rótulo de “vírus chinês”, desaguando agora numa guerra à Organização
Mundial da Saúde (OMS).
Por aqui, Jair Bolsonaro embarcou forte na onda negacionista. Perdeu
três semanas batendo na tecla da “gripezinha”, pregando contra o
isolamento, enquanto um de seus filhos e sua tropa digital escolhiam a
China como bode expiatório. Não deu certo. O Datafolha apontou que 76%
da população concorda com a quarentena como está sendo feita hoje, e
houve um esforço diplomático de diferentes instituições para apaziguar
as relações com a China. Diante do fracasso das duas tentativas
iniciais, Bolsonaro apostou em badalar a cloroquina e a
hidroxicloroquina como as soluções para a Covid-19, novamente à revelia
da comunidade científica mundial e de seu próprio ministro da Saúde. E,
ao menos para sua popularidade, deu certo.
Depois de dias enfraquecido nas redes sociais, começou uma reação.
Segundo medição da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da
Fundação Getulio Vargas, antes de o presidente e seus apoiadores
concentrarem esforços na promoção da cloroquina e na associação da
imagem de Bolsonaro a ela, a base bolsonarista representava apenas 12,3%
das interações em torno do coronavírus no Twitter. A oposição tinha
59,6%. Ainda que possa ser uma vantagem momentânea, colou o discurso do
“remédio de Bolsonaro”, maneira pela qual a militância passou a chamar
os dois medicamentos. De acordo com medição da consultoria Bites, também
na análise do sentimento dos internautas nas redes sociais, até às 21
horas da quarta-feira 8, eram 249 mil menções associando a cloroquina a
Bolsonaro, pouco menos da metade de todos os tuítes de brasileiros sobre
o coronavírus naquele dia. Os bolsonaristas saíram-se bem na ação para
criar a percepção de que o presidente estava certo desde o começo,
quando defendeu a cloroquina no combate à Covid-19 — o que, ressalte-se,
ainda não é comprovado pela ciência.
Medidas severas para combater a pandemia, ainda que infrinjam
temporariamente liberdades e direitos, não são por si só
antidemocráticas. Na Áustria, o ministro da Saúde tentou editar um decreto de Páscoa que
autorizaria a polícia a entrar nas casas para checar se as famílias
estavam se reunindo em almoços do feriado religioso. Uma medida como
essa, um recurso extremo, não faria sentido sem o consentimento do
Parlamento. Não à toa, o Ministério da Saúde austríaco desistiu após
protestos da oposição e da sociedade civil.
No Brasil, algo desse tipo foi a tentativa de Bolsonaro de mudar a Lei
de Acesso à Informação, praticamente suspendendo-a durante a pandemia, o
que não só dificultaria a capacidade da sociedade de fiscalizar o poder
público, como restringiria o direito à informação, fundamental para que
a população esteja preparada para se prevenir e enfrentar a doença. O
contrapeso dos outros Poderes se fez necessário. O Supremo Tribunal
Federal suspendeu o efeito imediato da Medida Provisória que mudara a
lei e o Congresso provavelmente alterará seu teor nas próximas semanas.
Autor de O povo contra a democracia, uma das bíblias para entender a
ascensão do populismo autocrata, o alemão Yascha Mounk, professor em
Harvard, é o âncora semanal de um dos mais interessantes podcasts para
quem gosta de debates aprofundados sobre política. Em The good fight,
disponível gratuitamente no site de Mounk, ele conversa com professores,
jornalistas, diplomatas e outros profissionais envolvidos no debate
sobre os rumos da democracia mundo afora. No último episódio, Mounk
recebeu Daniel Ziblatt, também professor de Harvard, coautor de outro
livro essencial para entender o populismo de direita atual, Como as
democracias morrem. Os dois avaliam na conversa que a pandemia poderá
atrapalhar os autocratas populistas que já estão no poder, quando
táticas de usar bodes expiatórios falharem e os cidadãos perceberem a
falta que fazem instituições fortes e sérias funcionando. “Essa situação (a pandemia) favorecerá a oposição aos governos. Vai
prejudicar os populistas que já estão no cargo. Acho que na verdade
reduz as chances de reeleição. Pode enfraquecer alguém como Jair
Bolsonaro, no Brasil”, analisa Mounk.
Blatt lembra que a crise econômica poderá enfraquecer quem já está no
poder. “Essa crise de saúde torna-se uma crise econômica. Isso é bem
provável. Isso vai enfraquecer dramaticamente tanto Bolsonaro quanto
Trump”, afirma, lembrando que os populistas que estão na oposição, a
exemplo da França, podem sair fortalecidos, se forem enxergados como
alternativa. As próximas semanas mostrarão quanto tempo vai durar o sucesso do
discurso salvacionista da cloroquina. E se saberá se o Brasil está no
grupo de países em que a pandemia fortaleceu o populismo ou naquele em
que mais pessoas perceberam que não existem remédios milagrosos para
problemas complexos.
Guilherme Amado, jornalista - Época