Deveria ser desnecessário enfatizar essa obrigação, mas, nestes tempos estranhos, nunca é demais lembrar que descumprir ordem emanada do STF equivale a desrespeitar a Constituição
[o ex-deputado Ulysses Guimarães, apesar do grande destaque obtido em sua carreira política - conseguiu ser tetra-presidente - sempre exagerou na avaliação da constituição cidadã.
O que não torna surpreendente, o fato de haver considerado à Carta Magna de 1988 igual a própria Pátria para a qual foi concebida.]
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello rejeitou, a
pedido da Procuradoria-Geral da República, um requerimento de partidos
de oposição para que o celular do presidente Jair Bolsonaro fosse
apreendido na investigação sobre sua suposta tentativa de interferir
politicamente na Polícia Federal. Ao fazê-lo, o decano do STF apenas
seguiu o que está na lei, que limita ao Ministério Público a
prerrogativa de requerer diligências desse tipo em investigação penal,
assim como havia meramente seguido a praxe ao encaminhar tal
requerimento para análise do Ministério Público.
Como se sabe, esse foi um dos casos que serviram de pretexto para que o
presidente da República ameaçasse descumprir ordens judiciais que
considerasse “absurdas”. Quando o pedido de apreensão do celular de
Bolsonaro foi encaminhado pelo ministro Celso de Mello à
Procuradoria-Geral, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional,
Augusto Heleno, emitiu uma “nota à Nação” para dizer que “o pedido de
apreensão do celular do presidente da República é inconcebível e, até
certo ponto, inacreditável” – como se Celso de Mello tivesse aceitado o
requerimento – e para declarar que a atitude do ministro do Supremo
poderia resultar em “consequências imprevisíveis” – uma explícita ameaça
de ruptura institucional. Para não haver dúvidas sobre a disposição
hostil do bolsonarismo, o próprio presidente avisou: “Me desculpe,
senhor ministro Celso de Mello. Retire o seu pedido, que meu telefone
não será entregue. Ninguém vai pegar o meu telefone”. [o ministro Chefe do GSI, provavelmente foi motivado por despacho anterior do mesmo ministro, o decano do STF, determinando a condução, caso necessário, de três ministros de Estado, entre eles o signatário da 'nota à Nação', debaixo de vara para prestar depoimento.]
Diante desse comportamento irresponsável, de afronta explícita às
instituições, o ministro Celso de Mello aproveitou seu despacho sobre o
pedido de apreensão do celular de Bolsonaro para lembrar ao presidente
sobre o dever primário de todos e de cada um dos brasileiros de cumprir
as ordens da Justiça. De singelo indeferimento de uma solicitação, o
despacho de Celso de Mello tornou-se poderoso manifesto em defesa da
Constituição contra seus ruidosos inimigos que hoje, por infelicidade
eleitoral, ocupam os mais altos postos no Executivo.
Primeiro, o ministro Celso de Mello declarou que o Supremo “não
transigirá nem renunciará ao desempenho isento e impessoal da
jurisdição, fazendo sempre prevalecer os valores fundantes da ordem
democrática e prestando incondicional reverência ao primado da
Constituição, ao império das leis e à superioridade político-jurídica
das ideias que informam e animam o espírito da República”. Em outras
palavras, o STF não se intimidará diante dos arreganhos dos camisas
pardas do bolsonarismo.
Cabe ao Judiciário, escreveu Celso de Mello, entre outras coisas,
“repelir condutas governamentais abusivas” e “impedir a captura do
Estado e de suas instituições por agentes que desconhecem o significado
da supremacia da Constituição e das leis da República”. O ministro salientou que “o ato de insubordinação ao cumprimento de uma
decisão judicial”, como ameaçou fazer o presidente Bolsonaro, “traduz
gesto de frontal transgressão à autoridade da própria Constituição da
República”. Para Celso de Mello, “é tão grave a inexecução de decisão
judicial por qualquer dos Poderes da República” que, “tratando-se do
chefe de Estado, essa conduta presidencial configura crime de
responsabilidade”.
Por fim, o ministro Celso de Mello recordou que “a condição da guarda da
Constituição da República foi outorgada a esta Corte Suprema pela
própria Assembleia Nacional Constituinte, que lhe conferiu a gravíssima
responsabilidade de exercer, em tema de interpretação de nossa Carta
Política, o monopólio da última palavra”. Assim, as decisões do Supremo,
goste ou não o presidente da República, devem ser cumpridas, mesmo que
se discorde delas.
Deveria ser desnecessário enfatizar essa obrigação, que é de todos os
cidadãos, a começar pelo chefe de Estado. Mas, nestes tempos estranhos,
nunca é demais lembrar que descumprir uma ordem emanada do Supremo
equivale a desrespeitar a Constituição. Mais do que isso: Celso de
Mello, lembrando as palavras do deputado Ulysses Guimarães por ocasião
do encerramento da Assembleia Constituinte, advertiu que descumprir ou
afrontar a Constituição é ato de traição – e “traidor da Constituição”,
disse Ulysses, “é traidor da Pátria”.
Editorial - O Estado de S. Paulo
Editorial - O Estado de S. Paulo