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domingo, 1 de março de 2020

O Mito e seu lugar de fala - Nas entrelinhas

”Diariamente, Bolsonaro se relaciona com os jornalistas tratando-os como ‘párias’. Suportar essa situação para qualquer um humilhante faz parte das agruras da profissão

A relação entre o discurso e a verdade é cada vez mais complexa. Na teoria, trabalha-se com três conceitos fundamentais: 
- condições de validade (ou seja, se a afirmação é válida ou corresponde aos fatos)
- pretensões de validade (a narrativa ou os argumentos utilizados para o convencimento); 
- e o resgate das condições de validade (quando o discurso é legitimado pelo ideal de fala e como tal, apesar de imposto unilateralmente, obtém certo consenso). Se na filosofia lidar com a verdade é um assunto complexo, nas redes sociais então nem se fala. A verdade morre e ressuscita todos os dias, de diferentes maneiras, num embate cujo desfecho nem sempre é o melhor para a sociedade. A opinião pública se forma a partir do choque de versões, no qual o contraditório acaba sendo o meio mais eficaz de aproximação da realidade.

Nessa guerra de informação, a tropa de elite é formada pelos jornalistas profissionais, cuja relação com a política é quase inseparável. Há cerca de 100 anos, numa palestra antológica (“A política como vocação”), o sociólogo alemão Max Weber destacou que os jornalistas pertencem a uma espécie de “casta de párias” e que “as mais estranhas representações sobre os jornalistas e seu trabalho são, por isso, correntes”. Ao discorrer sobre o mundo da política, o papel da imprensa e as vicissitudes do jornalismo, dizia a que a vida do jornalista é muitas vezes “marcada pela pura sorte” e sob condições que “colocam à prova constantemente a segurança interior, de um modo que muito dificilmente pode ser encontrado em outras situações”: “A experiência com frequência amarga na vida profissional talvez não seja nem mesmo o mais terrível. Precisamente no caso dos jornalistas exitosos, exigências internas particularmente difíceis lhe são apresentadas. Não é de maneira alguma uma iniquidade lidar nos salões dos poderosos da terra aparentemente no mesmo pé de igualdade (…) Espantoso não é o fato de que há muitos jornalistas humanamente disparatados ou desvalorizados, mas o fato de, apesar de tudo, precisamente essa classe encerra em si um número tão grande de homens valiosos e completamente autênticos, algo que os outsiders  não suporiam facilmente”.

Grandes mulheres também, diria Max Weber, nos dias de hoje, porque há 100 anos o jornalismo não era uma profissão majoritariamente feminina, como agora acontece; muito pelo contrário, havia poucas mulheres nas redações. Mesmo assim, sobrevivem ainda o machismo, a misoginia e o assédio sexual e/ou moral, em todos os níveis de relações de poder, às vezes até nas redações. É óbvio que estou contextualizando o embate entre o presidente Jair Bolsonaro e a jornalista Vera Magalhães, colunista do Estado de São Paulo que divulgou mensagens de WhatSApp do presidente da República em apoio às manifestações contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), convocadas para 15 de março.

Comportamento
Diariamente, Bolsonaro se relaciona com os jornalistas tratando-os como “párias”, ao sair do Palácio do Alvorada. Suportar essa situação para qualquer um humilhante faz parte das agruras da profissão, da mesma forma como aspirar gás lacrimogêneo na cobertura de manifestações e correr o risco de ser vítima de uma bala perdida nas reportagens policiais. Bolsonaro coleciona agressões verbais a jornalistas, como as recentes declarações misóginas contra Patrícia Campos Mello. Volte e meia, ofende um colega numa coletiva. Suportar esse tipo de agressão não faz parte dos manuais de redação. Não existe um comportamento padrão para isso, a reação depende de cada um. No caso mais recente, porém, Bolsonaro colidiu com “Sua Excelência, o fato”, como diria Ulysses Guimarães, numa situação na qual se contrapôs ao Congresso, ao Supremo e à Constituição de 1988. Perdeu! Vera validou o que disse com três vídeos compartilhados pelo próprio Bolsonaro.

A “mimesi” de Bolsonaro nas redes sociais faz parte da construção do “Mito”. É uma imitação da realidade, não uma reprodução. A mimesi ocorre quando a ação humana é representada de forma melhor (tragédia e epopeia) ou pior (comédia) do que a realidade. É uma representação em torno do mito, ou seja, da ação, que deve seguir sempre os critérios da verossimilhança. O mito é caracterizado por um conjunto de ações escolhidas e organizadas, sua construção se remete a algo que poderia acontecer e não ao que aconteceu.

Bolsonaro construiu o Mito a partir de um “lugar de fala” que não é a Presidência da República, mas o universo de origem de sua candidatura. Procura manter um eleitorado cativo, com perfil originário de suas eleições para a Câmara, mas agora nacionalizado: militares, policiais, milicianos, caminhoneiros, taxistas, ruralistas, pentecostais, ultraconservadores e reacionários. [todos, possuidores individuais de um voto = ao de qualquer eleitor, seja ele quem for.] Em consequência, aparta a autoridade constituída — a Presidência — do carisma do “Mito” e se isola politicamente. Ocorre que um determinado mito pode ser episódico (são os piores) e fruto da surpresa (emoção causada por fatos inesperados). Isso depende da percepção do espectador, não depende, por exemplo, de haver um único herói na trama. Na tragédia, como na sua campanha eleitoral, o mito se forma pela peripécia e o reconhecimento; na comédia, porém, acaba desconstruído. É o que pode acontecer com Bolsonaro na Presidência quando briga com os fatos.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - Correio Braziliense


domingo, 29 de dezembro de 2019

Do bolsonarismo ao integralismo, como a extrema direita se organiza - Blog do Noblat e EL PAIS



Por Felipe Betim

Os ultraconservadores se dividiram em três subgrupos na internet - Em um deles estão os encapuzados que reivindicaram o ataque ao Porta dos Fundos

 

Jair Bolsonaro está prestes a completar um ano no cargo de presidente da República. Ao longo deste período, o território virtual que abriga o bolsonarismo, e que foi engrenagem essencial de sua campanha para chegar ao poder, sofreu algumas mudanças e se dividiu. A ideologia de extrema direita continua lá, intacta e até mais radical. Mas a união conseguida por Bolsonaro naquelas eleições se desfez. Os extremistas estão agora divididos em ao menos três subgrupos, segundo explica David Nemer, especialista em Antropologia da Informática. Em um deles, que ele nomeia de insurgentes, estão pessoas com o mesmo perfil dos homens encapuzados que reivindicaram o ataque com coquetel molotov à sede da produtora Porta dos Fundos, na madrugada de 24 de dezembro. Eles se identificam com o integralismo, o movimento fascista que surgiu nos anos 1930 e que, na era da Internet, ganha novo vigor.
“Os insurgentes são mais militaristas e acabaram virando oposição, porque acham que Bolsonaro cedeu ao establishment e não é radical o suficiente. Acreditam que a única forma de salvar o país é fazendo uma insurgência armada para fechar o Congresso e o STF, e começar do zero. Eles falam muito de insurgência armada”, explica Nemer, que desde 2018 está presente em grupos de WhatsApp da extrema direita para monitorar seu comportamento.

Em vídeo que circula nas redes sociais desde a última quarta-feira, os encapuzados que assumiram o ataque ao Porta dos Fundos dizem ser parte do Comando de Insurgência Popular Nacional, recorda Nemer. Já a Frente Integralista Brasileira (FIB) soltou uma nota  negando qualquer relação com os homens que assumiram o atentado. Ainda que não seja possível dizer que aquelas pessoas específicas formem parte dos grupos de WhatsApp que monitora ou que oficialmente estejam ligados aos integralistas, o pesquisador explica que “o tom nacionalista cristão e as ideias de atentar contra as universidades e as instituições” são as mesmas. Ele ainda lembra que o mesmo grupo que diz ter atacado a produtora invadiu a UniRio em 2018 e queimou bandeiras antifascistas, conforme também publicou a Ponte Jornalismo. Esses radicais atuam em fóruns da darkweb, mas também recrutam novas pessoas pelo WhatsApp e pelo Youtube. “Não consegui identificar um só canal no Youtube, porque eles são constantemente banidos ou colocados em quarentena. Então existe uma rotatividade”, completa o pesquisador.

[dica óbvia para ajudar incautos e identificar os falsos integralistas:
- não pregam o racismo - Plínio Salgado criador do movimento integralista era radicalmente contra o racismo;
- são assumidamente republicanos (a bandeira com a letra Sigma é a autêntica; quanto  a do Brasil Império que está na foto acima não entendemos o motivo de sua presença.
É um assunto pouco estudado, mas o Google e a Wikipédia, tornarão qualquer curioso uma verdadeira enciclopédia.] 

O núcleo de propaganda é outro subgrupo que Nemer identificou após as eleições. Formado por bolsonaristas que apoiam o presidente incondicionalmente, tornou-se uma espécie de cão de guarda do Governo, atuando de acordo com a agenda política diária. Nas redes, essas pessoas defendem a gestão Bolsonaro em situações delicadas ― por exemplo, em momentos nos quais mede força com o Congresso ― ou quando se vê acuado ― como durante a crise internacional desatada pelos incêndios na Amazônia. “Bolsonaro precisa de um inimigo para alimentar a retórica do eles contra nós. E essas pessoas nas redes precisam de um inimigo para trabalhar. Nesse sentido, os peronistas se tornaram inimigos, Macron se tornou inimigo e até pessoas do PSL se tornaram inimigas. Agem como milícia virtual e até pessoas como Alexandre Frota e Joice Hasselmann se tornaram alvos”, explica Nemer, mencionando os dois deputados que romperam com Bolsonaro depois de se elegerem fazendo campanha para ele.

Por fim, o pesquisador também identificou o subgrupo que ele classifica como supremacistas sociais, que estão mais ligados aos evangélicos e podem ser tão radicais quanto os insurgentes. “Os supremacistas sociais não estão muito ligados à política do dia a dia, mas eles capitalizam em cima do discurso do presidente e de seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro. Compartilham conteúdo neonazista, racista, anti-LGBT, anti-Nordeste…”, explica Nemer. “Afinal, se o filho do presidente usa uma retórica parecida e não acontece nada com ele, então essas pessoas, que estão no anonimato, se sentem mais livres para compartilhar esses conteúdos. O Governo Bolsonaro valida muito esse pensamento racista que eles têm”.

Por que o bolsonarismo se dividiu em três subgrupos? O pesquisador aponta para a própria natureza das últimas eleições. “Bolsonaro abarca várias linhas de pensamento: a liberal na economia, a evangélica, a militar… Essas linhas são conflitantes, não andam de mãos dadas, como pudemos ver durante a briga entre os seguidores de Olavo de Carvalho e os militares”, argumenta. “Esses grupos estavam todos alinhados numa mensagem de eleger Bolsonaro, mas começaram a entrar em conflito. Umas pessoas queriam mais militarismo, outras queriam mais olavistas, outras mais evangélicos. É um reflexo do que Bolsonaro está fazendo na vida real: se ele demitia um militar, então os militaristas ficavam indignados…”, prossegue. Assim, as pessoas foram deixando os grupos de WhatsApp montados durante a campanha e criando outros mais de acordo com a linha que eles queriam que o presidente seguisse.

O método de sua pesquisa
Professor titular e pesquisador no Departamento de Estudos de Mídia na Universidade da Virgínia, Nemer realiza seu trabalho de campo em ambiente virtual, para averiguar como as pessoas se comportam e interagem entre si. No ano passado, identificou que as conversas dos grupos de família estavam mudando e adquirindo um tom mais político conforme as eleições se aproximavam. Algo aparentemente normal, mas que ganhou força com a difusão de conteúdos feitos de forma caseira ― isto é, pouco profissional ― com informações falsas ou distorcidas. Também foi um dos que identificou o comportamento de milícias virtuais que agem para perseguir determinadas figuras públicas e destruir reputações. Ele mesmo se tornou neste mês de dezembro um dos alvos dessas milícias virtuais. Ao publicar suas análises, conta ter recebido e-mails com ameaças e até mesmo uma foto sua andando em um local de São Paulo.

Com as eleições se aproximando em 2018, Nemer entrou em quatro grupos de WhatsApp bolsonaristas para monitorá-los. Ele identificou na ocasião uma forma de agir hierarquizada. No topo da pirâmide estavam algumas poucas pessoas anônimas que ele classifica como influencers, responsáveis por criar desinformações e distribuí-las nesses grupos. No meio da pirâmide estavam o que chama de exército voluntário, isto é, bolsonaristas que ficavam responsáveis por espalhar esses conteúdos pelas redes e grupos família. Na base estavam os brasileiros comuns, pessoas que conheceram Bolsonaro e impulsionaram sua candidatura. “Eram pessoas que não tinham espaço para debater e eram bombardeadas com conteúdos. Pela repetição, não havia espaço para dúvidas”.

Com a eleição de Bolsonaro, muitos desses brasileiros e brasileiras comuns foram deixando os grupos, que acabaram desinflando. Permaneceram os mais radicais, que se dividiram nos subgrupos explicados acima. Hoje, Nemer monitora cerca de uma dezena de grupos de WhatsApp e já colheu relatos de pessoas que dizem ter recebido quantias de dinheiro para impulsionar conteúdo falso nas redes.  “É uma minoria, uma coisa menor do que era antes, mas é uma minoria extrema e radical. Temos que prestar atenção porque esses espaços obscuros, escondidos, promovem uma radicalização. A pessoa passa a não ter mais senso crítico”, explica. Essa minoria hoje trabalha a partir da política do medo, tentando criar um passado mítico, que não aconteceu, para motivar as pessoas a saírem para votar ou protestar, segundo explica. “A desinformação não quer só puxar uma agenda política. Ela aliena você da verdade e tira todo o seu pensamento crítico”, completa.

Transcrito do jornal El País - e Blog do Noblat VEJA -  - Ricardo Noblat, jornalista