O título deste artigo é
o subtítulo de um belo livro de ensaios do italiano Carlo Ginzburg (O Fio e os Traços), cativante
homenagem àqueles que “têm como ofício
alguma coisa que é parte da vida de todos: destrinchar o entrelaçamento do
verdadeiro, falso e fictício que é a trama de nosso estar no mundo”. O
excelente e oportuno artigo de André Lara Resende Corrupção e Capital Cívico (no Valor de 31/7) merece leitura e
reflexão por parte de todos os que estamos envolvidos pelo espesso nevoeiro de
uma crise que é, a um só tempo, política, econômica e de valores – a trama de nosso viver no Brasil e no mundo
de 2015. Mas a urdidura desta trama que nos trouxe ao nevoeiro atual não
surgiu de repente, como uma surpresa de origens exógenas. Pelo contrário, a
trama foi sendo construída aqui mesmo, por ações e omissões muito nossas,
brasileiras, ao longo de muitos anos. É verdade que é sempre possível (por vezes necessário) voltar no tempo
para identificar em distantes passados as origens maiores de nossos males e
atrasos. Ou para dar o devido valor a nossos avanços.
Mas também é
verdade que temos um mesmo governo há mais de 12 anos e sete meses, e este tem
responsabilidades, das quais não se pode eximir, pelas críticas situações econômica,
política e de valores em que nos encontramos. Pode ser doloroso o processo de
destrinchar o entrelaçamento a que se refere Ginzburg. O fato de uma situação ser muito difícil não
significa que não existam opções e escolhas, ainda que difíceis, a serem
feitas. E, por paradoxal que possa parecer, a crise poderia, talvez, estimular
a busca das convergências e das cooperações possíveis para a adoção de medidas
voltadas a uma necessária recuperação gradual da confiança ao longo dos
próximos meses e anos.
Parece haver um elusivo quase consenso sobre esta imperiosa necessidade
de maior confiança, mas uma miríade de visões sobre as maneiras mais eficazes
de alcançá-la. Não é que não se tenha ideia do que fazer. O que as pessoas
parecem não saber é como se pode viabilizar politicamente aquilo que precisa
ser feito. “O recurso mais escasso não é
dinheiro, mas coordenação”, disse um arquiteto chileno de passagem pelo
Brasil. Ele se referia especificamente a “intervenções
urbanas”. Mas os problemas de falta de coordenação valem para tudo: é
preciso coordenação na área política, coordenação na área econômica,
coordenação entre as duas áreas e coordenação entre o Executivo e o Legislativo. Estamos com carências em todas essas
dimensões – exatamente no momento em que mais são necessárias.
Vale lembrar que em seu discurso de posse, em janeiro de 2011, a presidente Dilma,
eleita para seu primeiro mandato, afirmou: “O
Brasil optou, ao longo de sua história, por construir um Estado provedor de
serviços básicos e de previdência social pública. Isso significa custos
elevados para toda a sociedade”. Preço a pagar, disse ela, pela “garantia do
alento da aposentadoria para todos, e de serviços de saúde e educação
universais”. No mesmo discurso, a
presidente deu a entender que não se recusaria a enfrentar nossas flagrantes
realidades e irrealidades fiscais, ao prometer fazer mais – e melhor – com os recursos existentes,
controlar a velocidade de crescimento dos gastos governamentais e mudar sua
composição em favor do investimento.
Quatro anos e meio
depois, seu novo ministro da Fazenda volta ao tema, agora com renovado
e apropriado sentido de urgência, em artigo publicado na Folha na última semana: “Manter estes mecanismos (de transferência
de recursos do Tesouro através da folha do setor público, da Previdência e de
inúmeros outros programas) exigirá avaliação permanente de sua sustentabilidade
e dos resultados obtidos. Dada a atual carga tributária, é urgente reforçar a
avaliação da qualidade do gasto, inclusive o obrigatório, cujo volume reduz a
latitude dos governos federal, estadual e municipal para investir na
infraestrutura”. Neste contexto, as
crescentes demandas por maiores gastos públicos para a promoção do
desenvolvimento econômico e social com frequência excedem a capacidade do
Estado em tributar e se endividar, para atendê-las. Desejos não configuram
políticas e nem tudo é possível porque desejável. E, como bem notou Rogoff anos
atrás, “nenhum fator de risco é mais
perigoso para uma moeda que a recusa de lideranças políticas em enfrentar
realidades fiscais”.
Este enfrentamento não se pode restringir à área fiscal ou mesmo à área
macroeconômica, em que a percepção de estabilidade e consistência intertemporal
é condição necessária, embora não suficiente para o crescimento econômico. Como
vem afirmando Mario Draghi desde que assumiu a presidência do Banco Central
Europeu, “é mais fácil manter a confiança
no curto prazo se há uma âncora no futuro”. O sequenciamento das ações de
curto, médio e longo prazo é facilitado pela existência de um claro e crível
objetivo futuro. A confiança, diz ele, “funciona
do futuro para o presente”.
Volto ao tema do brilhante artigo de André Lara Resende, esperando que o
significado da expressão “capital cívico”
possa assumir relevância crescente no debate sobre nossa situação – e nosso
futuro. Capital cívico é o estoque de crenças e valores que estimulam a
confiança e a propensão a cooperar e a coordenar as atividades entre as pessoas
de uma sociedade. Estas são traços culturais, forjadas ao longo da história,
reforçadas pela experiência de cooperação bem-sucedida. A forma como a
população avalia o Estado e suas instituições é uma boa aproximação do capital
cívico. Onde este é alto, o Estado é
visto como aliado confiável. Onde o capital cívico é baixo, o Estado é
percebido como um criador de dificuldades para todos e de vantagens para seus
ocupantes, funcionando como poderoso fator de erosão do capital cívico. As boas
instituições são imprescindíveis para sua preservação. Como o Brasil está aprendendo, ao tentar distinguir verdadeiro, falso e
fictício.
Fonte: O Estado de São Paulo
Pedro S. Malan – Economista, foi ministro da Fazenda no Governo
FHC