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sábado, 29 de novembro de 2014

Policial branco que tentou prender assaltante negro e teve que matá-lo, foi inocentado - nos Estados Unidos. Fosse no Brasil, o policial já seria condenado antes mesmo de disparar

Quando os fatos não têm vez

A sensação de que a polícia é injusta com os negros nos EUA ofusca o fato de que, no caso da morte de Michael Brown, não houve crime

Em seu poema Burnt Norton, o americano T.S. Eliot (1888-1965) escreveu que “a espécie humana não pode suportar tanta realidade”. Diante de fatos concretos que desafiam uma ideia preconcebida, a saída mais comum é alterá-los e reduzi-los, em vez de mudar de opinião. Foi essa a reação que predominou na semana passada depois do anúncio, na segunda-feira 24, de que o policial Darren Wilson, branco, não iria a julgamento por ter matado a tiros, em agosto, o jovem Michael Brown, negro, em Ferguson, na região metropolitana de Saint Louis — cidade natal de Eliot. O episódio foi visto como uma confirmação da percepção de que a polícia americana é racista e injusta e provocou protestos, em alguns casos violentos, em mais de 100 cidades americanas. Dezenas de carros policiais foram destruídos. Lojas foram saqueadas e incendiadas. Na Califórnia, mais de 130 pessoas foram presas. As multidões indignadas preferiram ignorar as 4799 páginas com provas materiais, depoimentos de testemunhas e o relato do policial divulgados pela promotoria e que serviram de base para a decisão de não levar Wilson a julgamento.
 EVIDÊNCIAS - À esquerda, o rosto inchado do policial após enfrentar Brown (à direita). Ao fundo, imagem de vídeo mostra Brown agredindo o dono da loja que ele roubou

Aos fatos: em 9 de agosto, Darren Wilson, de 28 anos, fazia a patrulha com sua viatura quando avistou dois homens caminhando no meio da rua. Pela janela do carro, pediu a eles que fossem para a calçada. Dorian Johnson, amigo de Michael Brown, respondeu que já estavam quase chegando em casa e continuaram no asfalto. Naquele momento, Wilson se deu conta de que o biotipo e as roupas dos jovens coincidiam com a descrição dos bandidos que haviam roubado uma loja de conveniência minutos antes. Ele chamou reforço pelo rádio, engatou a ré e atravessou o carro na pista, impedindo a passagem dos suspeitos. Ao tentar abrir a porta para sair do automóvel, Wilson foi impedido por Brown, que deu socos em seu corpo e em sua cabeça. A agressão foi confirmada por fotografias do rosto de Wilson feitas pela perícia. Em algum momento da refrega, Brown entregou ao amigo uma caixa de cigarrilhas, o que confirmou a suspeita de que eram eles os ladrões procurados. Em seguida, Brown, de 18 anos e 1,98 metro, a mesma altura de Wilson, debruçou-se para dentro do carro e tentou tirar a arma do policial. A pistola Sig Sauer P229 escorregou. Quando Wilson a alcançou, ele apertou o gatilho uma, duas vezes, e nada. Na terceira tentativa, a arma disparou. A bala atravessou a porta do carro e atingiu Brown. 

O sangue encontrado dentro do carro confirmou a versão. Após o tiro, Brown fugiu. Wilson foi atrás dele com a pistola em punho, dando ordem para que se deitasse no chão. Depois de tentar, sem sucesso, entrar em um automóvel cheio de passageiros, Brown deu meia-volta e caminhou — ou correu (as testemunhas deram versões diferentes sobre isso) na direção do policial. Wilson disparou sua arma dez vezes para tentar detê-lo, sem sucesso. A bala fatal entrou pela parte de cima do crânio de Brown. Embora algumas testemunhas tenham dito que ele levantou as mãos, implorando para que Wilson não atirasse, os rastros de sangue encontrados pelos técnicos forenses corroboram o relato do policial: não houve esboço de rendição

Outra versão que evaporou com a coleta de provas foi a narrada por Johnson. Ele disse que Wilson, ainda sentado no carro, levantou seu amigo pela gola. Brown pesava 131 quilos, 35 a mais que o oficial. Diante de tais evidências e de tantos testemunhos desencontrados, o grande júri, formado por cidadãos comuns, decidiu que não havia elementos para indiciar Wilson. A versão do policial, de que atirou porque se sentiu ameaçado por Brown, era crível.

As minúcias da investigação, porém, são irrelevantes para os manifestantes que tomaram as ruas americanas, porque a narrativa de tensão permanente entre a polícia, predominantemente branca, e a população negra, em geral mais pobre, já estava posta. Embora os negros constituam 63% da população de Ferguson, só há três deles entre os 53 policiais da região. “A verdade é que a maioria dos negros não quer trabalhar na segurança pública. Precisamos da ajuda deles para diminuir essa grande discrepância”, disse o prefeito da cidade, James Knowles. A questão é que, nos Estados Unidos, ainda que as leis raciais tenham desaparecido há cinco décadas, os cidadãos infligem a si mesmos uma segregação baseada na cor.

Pelas regras do mercado imobiliário americano, por exemplo, vizinhos podem vetar a chegada de um novo morador. Isso leva à formação de bairros só de negros, asiáticos, brancos ou latinos. A maioria dos crimes é intrarracial: 84% das vítimas brancas foram mortas por criminosos brancos e 93% dos negros foram assassinados por negros. Mas, como as escolas são financiadas pelos distritos, áreas mais pobres acabam tendo os piores professores, o que resulta num ciclo vicioso que preserva as desigualdades e deixa algumas comunidades mais expostas ao crime. Em Ferguson, os negros representam 86% das pessoas abordadas pelas viaturas e 92% dos que terminam na cadeia. Embora aviltantes, esses números são condizentes com a proporção dos crimes atribuídos a negros pelas próprias vítimas. Isso se reflete no estereótipo que os policiais têm dos criminosos e leva ao tratamento injusto de pessoas que não devem nada à lei. 

Uma pesquisa mostra que cerca de 70% dos negros dizem se sentir injustiçados, enquanto entre brancos esse desconforto só existe para 37%. O número é menor que o de 2009, quando 86% dos negros tinham essa percepção. “A concentração de negros nas áreas pobres, de alta criminalidade, é um problema maior do que o racismo na polícia”, diz o sociólogo John Logan, da Universidade Brown, na Califórnia. Ainda que Darren Wilson não seja um racista dedicado a matar negros apenas por serem negros, uma parcela da população americana já o condenou a esse papel simbólico. Trata-­se de uma manipulação dos fatos amparada em episódios reais, como o espancamento de Rodney King, um operário negro, por quatro policiais em Los Angeles, em 1992. Em Burnt Norton, T.S. Eliot escreveu: “O que poderia ter sido e o que foi / Convergem para um só fim, que é sempre presente”.

Com reportagem de Paula Pauli
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