O Estado Islâmico é um subproduto daquilo
que é programático em Al-Azhar. A universidade de Al-Azhar diz que deve haver
um califado e que é uma obrigação do mundo islâmico [criá-lo]".
Lewis Carroll colocou na boca de
sua mais famosa criação literária, Alice, um diálogo que ele próprio jamais poderia imaginar
que seria tão útil para explicar o conflito pelo qual passa a civilização
ocidental, mormente no século XX. Certa feita, em Alice no País das
Maravilhas, Alice está a conversar com a Rainha
Branca sobre a possibilidade de se pensar em coisas impossíveis.
A Rainha exorta a Alice que faça
isso, ao passo
que esta replica que isso já, por si mesmo, seria impossível; não satisfeita, a
Rainha diz que é uma besteira e conta que ela própria costumava pensar todos os
dias, por meia-hora, antes do café da manhã, sobre coisas impossíveis e com
esse exercício conseguia pensar em ao menos 6 delas por dia.
Somos
diariamente bombardeados com coisas impossíveis (com a
ressalva que não em forma de experimento mental, mas em forma de possibilidade
ontológica viável): nacional-socialismo que não é socialismo, socialismo
que não foi socialismo (!) e outras impossibilidades que muitos tentam
vender ao mundo civilizado e que pretendo cobrir nesse artigo e, ainda, estão longe de ser as meras platitudes que aparentam: o
Estado Islâmico que não é nem estado nem islâmico e a ideia que o islamismo é
uma religião da paz.
Vários pontos mostram o caráter impossível dessas
duas arraigadas farsas. A primeira que
quero apontar tem relação com a natureza mesma do islam. Ao contrário do cristianismo, essencialmente
ocupado do cultivo das almas como sementes que florescerão no paraíso pós-vida,
o islamismo apresenta um plano
completo de realização na terra: tem direito
próprio (a famigerada sharia), economia
própria (KUNG, p. 679-692), um extenso quadro de
recomendações sobre o trato com os “kafirs” (não-muçulmanos) – que é maior que o quadro com recomendações para a vida do
devoto islâmico, recomendações sobre a escovação dental (presentes nas “hadith” – os “ditos” do
profeta Maomé) e até sobre como bater em sua mulher de forma apropriada.
Tudo
isso, conforme quero reforçar, é
corolário da própria natureza do islam: o muçulmano
está completamente submisso a sua religião. Daí, entre outras
coisas, que a integração de imigrantes muçulmanos seja tão complexa em
sociedades seculares, cujas constituições laicas são soberanas (ou deveriam ser) frente às preferências islâmicas.
Desnecessário dizer que o argumento da minoria radical
versus maioria pacífica poderia ser invocado desde já; contudo, ao provar a relação umbilical do islam com as práticas dos
radicais (além da miserável falha
das “lideranças” islâmicas em condenar as radicalidades, tópico ao qual
retornarei), mostro invariavelmente que a “maioria” pacífica o é a despeito do
islam e não graças a ele.
É
evidente que, mais em alguns momentos históricos que outros, todas as grandes religiões se imiscuíram com o poder político. Contudo,
o judaísmo sempre fora um inimigo natural do Leviatã, desde o Egito Antigo e nos preceitos
mesmos do cristianismo está a máxima de que os poderes de César e os poderes de
Deus estão (e assim devem
permanecer) irremediavelmente separados
(Mateus 22:21). Ao passo que, como bem mostra Bernard Lewis (um dos maiores especialistas ocidentais em islamismo e autor
do clássico e profético artigo “The Roots of Muslim Rage”, de 1990) em seu “A
linguagem política do islão” (ed. Colibri, 2001): a doutrina política do islam é o próprio islam; no mundo
cristão há as figuras do sacerdotium e do regnum, da
igreja e do Estado, separados (que poderiam estar em harmonia, interferindo um
na esfera do outro, mas nunca deixando de existir como coisas diferentes), ao
passo que que no islam clássico “não
existe equivalente para o termo ‘laicidade’, uma expressão quase sem sentido no
contexto do islão” (p. 13 et seq.).
Isso porque a natureza mesma da
religião islâmica sequer concebe idealmente tal separação, tornando evidente que a ideia de
se estabelecer um “estado islâmico”,
um “califado universal”, tal como
propõe o ISIS, está de completo acordo com a ortodoxia islâmica. Mais uma vez:
se boa parte dos muçulmanos não deseja a instalação de um califado universal e
os imigrantes desejam se integrar nas sociedades para as quais imigram, isso se
deve mais a pontos de vista reformados, ou mesmo visões que ignoram a ortodoxia
textual islâmica, que a posições bem locadas dentro de sua hermenêutica.
Há ainda um segundo ponto a ser
estabelecido: as “autoridades” islâmicas falham ao tentar
(quando e se tentam) condenar seus jihadistas radicais. A ideia de
uma “autoridade islâmica” (me refiro aqui a autoridade religiosa e não acadêmica) é altamente problemática dentro do islam e
em tese qualquer um pode autoproclamar-se autoridade e qualquer
contra-autoridade que clame o contrário sobre a anterior não obteve o direito
de fazê-lo em nenhum lugar especial que o primeiro não tenha consultado.
Os
resultados disso não levam apenas a uma verdadeira
babel quando se faz necessário condenar os responsáveis pelo ataque à Charlie
Hebdo ou ao Estado Islâmico, mas a aberrações como
Anjem Choudary, figura desprezível que, conforme dito, se autoproclama “imam”, isto é, um líder religioso do
islam. Choudary notabilizou-se na mídia
internacional por diversas aparições em que defende o Estado Islâmico, a afirmar que a sharia
será implementada na América e defender a morte para o pecado da apostasia.
Quem tem autoridade para desautorizá-lo? Ninguém. Muitos outros muçulmanos o
desacreditam, mas lhes falta a autoridade para fazê-lo em definitivo.
O que
muitas autoridades islâmicas se limitam a fazer é condenar
os jihadistas do Estado Islâmico moralmente como terroristas, mas
jamais como hereges, pois compreendem perfeitamente bem o que mostrei no
primeiro momento do texto. Essa afirmação recai sobre
os ombros dos especialistas da universidade egípcia de Al-Azhar, que num debate decidiram que os
responsáveis pela morte de um piloto jordaniano queimado vivo foi um problema
apenas porque os jihadistas cometeram o pecado
da dessacralização de um corpo humano e por esse ato eles deveriam ser
crucificados (!); contudo, se
negaram a tratar esses mesmos terroristas como “não-islâmicos”, hereges ou
apóstatas, isto é, cujas ações estariam em desacordo com a ortodoxia
islâmica.
Como
consequência inevitável, apontada pelo também intelectual de direito islâmico
Sheik Mohammed Abdullah Nasr, o Estado Islâmico
nasce do seio da doutrina islâmica oficial tal como é ensinada pela
Universidade de Al-Azhar, é um
subproduto das ideias centrais do islamismo e não uma interpretação radical mas sim razoável da “religião da paz”. Nas palavras do
próprio Nasr:
Ela não pode [condenar o Estado islâmico
como não-islâmico]. O Estado Islâmico é um subproduto daquilo que é
programático em Al-Azhar. A universidade de Al-Azhar diz que deve haver um
califado e que é uma obrigação do mundo islâmico [criá-lo]. Al-Azhar ensina a
lei da apostasia e da morte por apostasia. Al-Azhar é hostil para com as
minorias religiosas e recomenda coisas como que não se construa igrejas etc.
Al-Azhar defende a instituição da jyzia [cobrança de tributos das minorias
religiosas]. Al-Azhar ensina o apedrejamento de pessoas. Poderia Al-Azhar
denunciar a si própria como não-islâmica?
Fica
evidente, portanto, que conceber o
islamismo como uma religião da paz é simplesmente impossível; contudo, o
exercício de sair por aí afirmando isso não faz parte do repertório de
experimentos mentais inofensivos do desjejum da Rainha Branca. Impossibilidades
como essa, propagandeadas em conjunto a “o
multiculturalismo é viável” (quem pode autorizar a ideia que a cultura barbárica que
produz o Estado Islâmico está em pé de igualdade com tantas outras?) ou “a imigração em massa é uma política
legítima e moral” (como crer que o escancaramento
das fronteiras do mundo civilizado não representa o convite à entrada de jihadistas?)
fazem parte do ferramental politicamente correto usado por nossos “especialistas” e imprensa em suas
tentativas histéricas de livrar o islamismo de sua responsabilidade e autoria
criadora do Estado Islâmico.
Das
impossibilidades mentais à realidade concreta, a verdade é que o islam é um sistema de pensamento completo, que
pretende abarcar todas as coisas, uma cosmovisão ou ainda um sistema integral (a palavra “jin” também é usada para descrever isso) cuja consequência inevitável no campo da ação é,
inexoravelmente, algo da natureza do Estado Islâmico.
Pequena bibliografia utilizada e recomendada:
KÜNG, Hans. Islão. Lisboa: ed. Edições 70, 2010.
[Este livro traz uma abordagem
histórica bastante completa do islam e trata, por exemplo, do empreendimento
turco de fazer uma sociedade islâmica, porém “secularizada” e “laica”, embora
isso tenha ocorrido, a Turquia segue apresentando índices consideráveis de
posturas “radicais” entre sua população].
LEWIS,
Bernard. A linguagem política do islão. Lisboa: ed. Colibri, 2001.
. Os assassinos: os primórdios do terrorismo no islã. Rio de Janeiro: ed. Jorge
Zahar, 2003.
Disponho numa nota de Facebook
algumas referências bibliográficas iniciais sobre o tema do totalitarismo
islâmico que podem ser úteis ao recém-chegado no assunto: https://goo.gl/feksrG.
André Assi Barreto é mestre em Filosofia, professor, tradutor e assessor editorial. Publica regularmente em www.andreassibarreto.org.
André Assi Barreto é mestre em Filosofia, professor, tradutor e assessor editorial. Publica regularmente em www.andreassibarreto.org.
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