Basta ver a situação do FGTS para se verificar que o Estado é justamente o mais incompetente para gerir essas contas
Acontecem
situações assim: os trabalhadores perdem horas no transporte público. A
empresa resolve oferecer o conhecido fretado. O trabalhador chega a
tempo e mais disposto.
Acontece em seguida: trabalhadores demitidos pedem nas indenizações as horas extras passadas nos fretados. Alegam que estão à disposição da empresa desde o momento em que apanham o ônibus, logo, é hora extra, dormindo.
Outra situação: a empresa resolve oferecer um café da manhã. Claro que o sujeito, para pegar o lanchão, tem que chegar meia hora antes de bater o ponto. É optativo, o funcionário pode comer em casa. Mas não. Em qualquer conflito, o trabalhador alega que a hora do lanche matinal é hora extra. A tese, claro, é invenção de advogados trabalhistas. É argumento jurídico, sustentam, mas, vamos falar francamente: é um truque que não resiste ao bom senso.
Mas o leitor já desconfia. Não raro, a tese vence na Justiça do Trabalho. E quando esse tipo de processo começa a prosperar, a empresa resolve cancelar o fretado e o café da manhã. Aí voltam os advogados para dizer que o benefício não pode mais ser retirado, porque já havia se incorporado aos vencimentos. Fica, pois, a empresa obrigada a oferecer o fretado e o lanche e a pagar horas extras nos dois casos.
Que os advogados formulem essas teses, vá lá, é da profissão, embora não pareça, digamos, ético. Mas por que muitos juízes concedem as vantagens? Aqui é mais ideologia. A seguinte: o papel do juiz não é interpretar e aplicar a lei, mas fazer justiça. E quem decide onde está a justiça? O juiz, claro. Mas se ele não precisa e não deve, alegam, observar a letra e o espírito da lei, a decisão torna-se subjetiva. Com critério: a decisão a favor do suposto mais fraco.
Quem é o mais fraco? O empregado, o segurado de um plano de saúde, o cidadão comum que demanda contra o banco ou qualquer grande empresa. Resumindo: qualquer demanda contra o capital é boa. Em debates, já dividi mesas com juízes que garantiam: “Toda vez que tenho um caso entre o segurado e o plano de saúde, eu decido a favor do segurado, não importa se o procedimento está ou não está previsto no contrato; a vida não tem preço”.
Ora, a vida tem preço: quanto custa uma sala de UTI? Médicos e enfermeiros não trabalham de graça. O remédio custa dinheiro, mesmo sendo fornecido pelo Estado. Neste caso, o juiz está apenas transferindo a conta para outras pessoas — outros segurados do plano, cujo preço sobe, ou os contribuintes, que pagam um pouco mais de imposto. Ou pacientes do SUS que ficam sem o seu medicamento porque o dinheiro foi aplicado em outros procedimentos mais caros, por decisão judicial.
Instala-se a confusão, e tudo funciona mal. Empresas não concedem benefícios porque estes podem gerar custos trabalhistas. A Justiça do Trabalho fica entupida com três milhões de processos por ano, gerando custos para o contribuinte (na forma de impostos para sustentar a instituição), para as empresas e para os trabalhadores. Por trás de tudo, há uma visão autoritária, pela qual o Estado tem que tomar conta e proteger o trabalhador, o cidadão comum, ambos considerados incapazes. Isso é cultural.
O caso da Justiça do Trabalho é o mais evidente. E ali está também a evidência do equívoco. Leis e contratos existem para que a justiça seja feita de modo tão objetivo quanto possível. Está suposto que o legislador escreve leis para regular e organizar as relações sociais e os direitos individuais. Sempre há situações em que o juiz tem que interpretar qual lei e como se aplica ali. Mas se o juiz entende que não precisa da lei para fazer justiça, instala-se a insegurança jurídica para todos — o que atrasa o país e trava negócios.
A ideia de que o trabalhador é incapaz de saber quais são seus direitos faz parte dessa visão autoritária. Assim como, por exemplo, a ideia de que o governo é que deve administrar a poupança do trabalhador, caso óbvio do FGTS. O dinheiro é da pessoa, mas quem dá a taxa de correção e decide sobre a aplicação são os tecnocratas e os políticos. Aliás, basta ver a situação do FGTS para se verificar que o Estado é justamente o mais incompetente para gerir essas contas. Para não dizer corrupto.
Também faz parte dessa visão autoritária a lei que proibia que comerciantes e fregueses negociassem. O preço deveria ser sempre o mesmo, quer o pagamento fosse em dinheiro ou cartão, à vista ou dez vezes. Uma estupidez. Mas tinha e ainda tem muita gente dizendo que isso protegia o consumidor. Obrigando um a pagar mais para aliviar a conta do outro? E quem mesmo o Estado estava protegendo, o consumidor ou a empresa de cartão de crédito? [Essa 'diferenciação' de preços, resultado de uma 'negociação', prejudica o consumidor, por favorecer a esperteza do comerciante.
Como assim? agora o total parcelado 'sem juros' passa a ser o preço oficial para quem paga à vista, considerando um inexistente desconto negociado para pagar à vista, e, quem paga parcelado arca com um preço maior em função do parcelamento.
A medida vai contra um fato: apenas uma minoria pode pagar à vista e 'usufruir' do novo preço 'negociado'.
O comerciante passa a ganhar por duas vias:
- ao vender à vista, pelo preço que já embutia juros por ser parcelado em várias vezes, sem juros, se tornou o preço para quem paga a vista - se for 'cash' melhor ainda;
A INsegurança Pública existente em todo o Brasil estimula em muito carregar dinheiro em espécie.
- e ao ter permissão para cobrar juros pelo parcelado = juros ocultos + juros declarados, assumidos. ]
Tudo considerado, está correta essa proposta de reforma trabalhista. Diz que trabalhadores e empresas podem resolver livremente diversas questões.
Também está correta essa MP que permite “a diferenciação” de preços e condições de pagamento. Até acharam um jeito de escapar do ridículo que seria uma lei dizendo: é permitida a negociação de preços.
Também foi uma boa ideia liberar uma parte do FGTS. Mas ainda falta: o titular da conta deveria ter o direito de dizer onde vai ser aplicada.
“A gente não somos inútil”.
Fonte: Carlos Alberto Sardenberg, jornalista
Acontece em seguida: trabalhadores demitidos pedem nas indenizações as horas extras passadas nos fretados. Alegam que estão à disposição da empresa desde o momento em que apanham o ônibus, logo, é hora extra, dormindo.
Outra situação: a empresa resolve oferecer um café da manhã. Claro que o sujeito, para pegar o lanchão, tem que chegar meia hora antes de bater o ponto. É optativo, o funcionário pode comer em casa. Mas não. Em qualquer conflito, o trabalhador alega que a hora do lanche matinal é hora extra. A tese, claro, é invenção de advogados trabalhistas. É argumento jurídico, sustentam, mas, vamos falar francamente: é um truque que não resiste ao bom senso.
Mas o leitor já desconfia. Não raro, a tese vence na Justiça do Trabalho. E quando esse tipo de processo começa a prosperar, a empresa resolve cancelar o fretado e o café da manhã. Aí voltam os advogados para dizer que o benefício não pode mais ser retirado, porque já havia se incorporado aos vencimentos. Fica, pois, a empresa obrigada a oferecer o fretado e o lanche e a pagar horas extras nos dois casos.
Que os advogados formulem essas teses, vá lá, é da profissão, embora não pareça, digamos, ético. Mas por que muitos juízes concedem as vantagens? Aqui é mais ideologia. A seguinte: o papel do juiz não é interpretar e aplicar a lei, mas fazer justiça. E quem decide onde está a justiça? O juiz, claro. Mas se ele não precisa e não deve, alegam, observar a letra e o espírito da lei, a decisão torna-se subjetiva. Com critério: a decisão a favor do suposto mais fraco.
Quem é o mais fraco? O empregado, o segurado de um plano de saúde, o cidadão comum que demanda contra o banco ou qualquer grande empresa. Resumindo: qualquer demanda contra o capital é boa. Em debates, já dividi mesas com juízes que garantiam: “Toda vez que tenho um caso entre o segurado e o plano de saúde, eu decido a favor do segurado, não importa se o procedimento está ou não está previsto no contrato; a vida não tem preço”.
Ora, a vida tem preço: quanto custa uma sala de UTI? Médicos e enfermeiros não trabalham de graça. O remédio custa dinheiro, mesmo sendo fornecido pelo Estado. Neste caso, o juiz está apenas transferindo a conta para outras pessoas — outros segurados do plano, cujo preço sobe, ou os contribuintes, que pagam um pouco mais de imposto. Ou pacientes do SUS que ficam sem o seu medicamento porque o dinheiro foi aplicado em outros procedimentos mais caros, por decisão judicial.
Instala-se a confusão, e tudo funciona mal. Empresas não concedem benefícios porque estes podem gerar custos trabalhistas. A Justiça do Trabalho fica entupida com três milhões de processos por ano, gerando custos para o contribuinte (na forma de impostos para sustentar a instituição), para as empresas e para os trabalhadores. Por trás de tudo, há uma visão autoritária, pela qual o Estado tem que tomar conta e proteger o trabalhador, o cidadão comum, ambos considerados incapazes. Isso é cultural.
O caso da Justiça do Trabalho é o mais evidente. E ali está também a evidência do equívoco. Leis e contratos existem para que a justiça seja feita de modo tão objetivo quanto possível. Está suposto que o legislador escreve leis para regular e organizar as relações sociais e os direitos individuais. Sempre há situações em que o juiz tem que interpretar qual lei e como se aplica ali. Mas se o juiz entende que não precisa da lei para fazer justiça, instala-se a insegurança jurídica para todos — o que atrasa o país e trava negócios.
A ideia de que o trabalhador é incapaz de saber quais são seus direitos faz parte dessa visão autoritária. Assim como, por exemplo, a ideia de que o governo é que deve administrar a poupança do trabalhador, caso óbvio do FGTS. O dinheiro é da pessoa, mas quem dá a taxa de correção e decide sobre a aplicação são os tecnocratas e os políticos. Aliás, basta ver a situação do FGTS para se verificar que o Estado é justamente o mais incompetente para gerir essas contas. Para não dizer corrupto.
Também faz parte dessa visão autoritária a lei que proibia que comerciantes e fregueses negociassem. O preço deveria ser sempre o mesmo, quer o pagamento fosse em dinheiro ou cartão, à vista ou dez vezes. Uma estupidez. Mas tinha e ainda tem muita gente dizendo que isso protegia o consumidor. Obrigando um a pagar mais para aliviar a conta do outro? E quem mesmo o Estado estava protegendo, o consumidor ou a empresa de cartão de crédito? [Essa 'diferenciação' de preços, resultado de uma 'negociação', prejudica o consumidor, por favorecer a esperteza do comerciante.
Como assim? agora o total parcelado 'sem juros' passa a ser o preço oficial para quem paga à vista, considerando um inexistente desconto negociado para pagar à vista, e, quem paga parcelado arca com um preço maior em função do parcelamento.
A medida vai contra um fato: apenas uma minoria pode pagar à vista e 'usufruir' do novo preço 'negociado'.
O comerciante passa a ganhar por duas vias:
- ao vender à vista, pelo preço que já embutia juros por ser parcelado em várias vezes, sem juros, se tornou o preço para quem paga a vista - se for 'cash' melhor ainda;
A INsegurança Pública existente em todo o Brasil estimula em muito carregar dinheiro em espécie.
- e ao ter permissão para cobrar juros pelo parcelado = juros ocultos + juros declarados, assumidos. ]
Tudo considerado, está correta essa proposta de reforma trabalhista. Diz que trabalhadores e empresas podem resolver livremente diversas questões.
Também está correta essa MP que permite “a diferenciação” de preços e condições de pagamento. Até acharam um jeito de escapar do ridículo que seria uma lei dizendo: é permitida a negociação de preços.
Também foi uma boa ideia liberar uma parte do FGTS. Mas ainda falta: o titular da conta deveria ter o direito de dizer onde vai ser aplicada.
“A gente não somos inútil”.
Fonte: Carlos Alberto Sardenberg, jornalista
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