E se nunca pudermos sair de 2016?
E
se nunca pudermos sair de 2016? Esta pergunta me impressionou, embora
fosse apenas uma piada. O ano foi tão intenso que parece um longo
pesadelo. Talvez tenha sido intenso para todos, mas aqui no Brasil, com a
profunda crise econômica e um toque de realismo fantástico, 2016 foi
mais assustador. Às vezes penso que toda essa intensidade não se deve
apenas ao ano que termina. Num mundo conectado, muitos de nós consultam a
internet de 15 em 15 minutos e ficam desapontados quando não acontece
nada.
Nossa demanda por fatos novos parece ter aumentado. O
Brasil tem sido generoso, embora os fatos sejam quase sempre negativos e
não nos levem, necessariamente, a lugar nenhum. Ferreira Gullar dizia
que a vida não basta, daí a importância da arte. Goethe, por sua vez,
dizia que a arte é um esforço dos vivos para criar um sistema de ilusões
que nos protege da realidade cruel. Dentro de um universo mais amplo, a
política também deveria ser um sistema de ilusões que nos ampara da
brutalidade do real. Carmem Lúcia, de uma certa maneira, expressou isto
quando disse ou democracia ou guerra, referindo-se a uma possível
falência do estado, o que nos jogaria numa batalha de todos contra
todos.
Navegamos em águas tempestuosas. O processo político que
era destinado a melhorar nossa convivência tornou-se, ele mesmo, uma
expressão da realidade mais tosca e brutal. Renan Calheiros foi para a
cama com sua amante e até hoje estamos tentando tirá-lo do cargo, não
por suas aventuras amorosas, mas por um enlace mais perigoso entre
empreiteiros e políticos.
Ele não cai por uma paixão proibida, mas sim
porque defende o vínculo com os financiadores das campanhas, riqueza
pessoal e até dos seus momentos românticos. Renan é um general da luta
contra a Lava-Jato, embora Lula reclame esse posto e ninguém lhe dê
muita atenção no momento. O papel histórico de Renan foi coordenar uma
reação às investigações, usando como pretexto a lei de abuso de
autoridade. Mesmo se um general cair, e nada mais sustenta Renan exceto
gente correndo da polícia, a batalha final entre um sistema de corrupção
estabelecido e as forças que querem destruí-lo ainda não chegará ao
final.
E é essa batalha, com a nitidez às vezes perturbada pelas
peripécias individuais, que está em jogo. Na verdade, ela está, nesse
momento, apontando para uma vitória popular. Quando digo vitória, digo
apenas tomada de consciência. O sistema de corrupção que a Lava-Jato
enfrenta, com apoio da sociedade, é muito antigo e poderoso. E essa
batalha vai lançar luz na antiguidade e no poder da corrupção no Brasil.
O próprio STF é um órgão do velho Brasil, organizado burocraticamente
para proteger os políticos envolvidos. Jornalistas que combateram o
governo petista agora hesitam diante da manifestação popular. “Vocês
estão fortalecendo o PT”, dizem eles.
Como se a ascensão de um
presidente do PT, um partido arrasado nas urnas, conseguisse deter um
projeto de recuperação econômica, já votado pela maioria. Se 60
senadores que votaram no primeiro turno não se impõem sobre Jorge Viana é
porque são uns bundões ineficazes e não mereciam estar onde estão.
Infelizmente, a coisa é mais complicada. Usaram de tudo para combater a
Lava-Jato. Agora dissociam a luta contra a corrupção da luta para
soerguer a economia. E dizem que uma prejudica a outra. Coisas do
Planalto. Não importa muito se Renan fica alguns dias, se Jorge Viana
vai enfrentar os senadores e a realidade nacional. O que importa mesmo é
o fato de que a sociedade está atenta, acompanha cada movimento, e não
se deixa mais enganar com facilidade.
Um personagem do realismo
fantástico, Roberto Requião, disse que os manifestantes deveriam comer
alfafa. Os que não gostam de ver povo na rua argumentam sempre com mais
cuidado. Requião foi ao ponto, pisando sem a elegância de um manga larga
ou um quarto de milha. As manifestações incomodam. Revelam uma
sociedade atenta, registrando cada detalhe das covardes traições dos
seus representantes. Ela teve força para derrubar uma presidente. Claro
que precisará de uma força maior para derrubar todo o sistema de
corrupção que move a política brasileira. Um sistema muito forte.
Um STF
encardido, incapaz de se sintonizar com o Brasil moderno; um tipo de
imprensa que atribui o desemprego e a crise econômica à Lava-Jato e não
aos equívocos e roubalheira do governo deposto; e, finalmente, os
guardiões de direitos humanos dos empreiteiros e senadores, incapazes de
se comover com a vida mesmo e as pessoas que são esmagadas pelas
autoridades.
Está tudo ficando cristalino e esta é uma das
grandes qualidades de crises profundas. Se o Congresso quiser marchar
contra a vontade popular, que marche. Se o Supremo continuar essa
enganação para proteger políticos, que continue. Importante é a
sociedade compreender isto com clareza. E convenhamos: se quiser tolerar
tudo, que tolere. A chance de dar uma virada e construir instituições
democráticas está ao alcance das mãos. Com um décimo da audácia dos
bandidos, as pessoas bem-intencionadas resolvem essa parada.
Fonte: Fernando Gabeira - O Globo
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