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quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Por que o STF não deve legislar - Revista Oeste

Loriane Comeli

 Segundo a Constituição, os ministros do Supremo Tribunal Federal não deveriam agir como se fossem parlamentares eleitos pelo voto popular

 

 Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/STF

A criação de leis no Brasil é atribuição do Poder Legislativo. E, no entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) legisla
E legisla sobre temas importantes e polêmicos. 
O aborto de fetos anencéfalos, o crime de homofobia e a união homoafetiva são algumas das “leis” criadas pela Corte nos últimos dez anos. Independentemente da opinião que se tenha sobre esses assuntos, sobressalta-se um fato: o STF não tem competência para legislar.

Apesar disso, o Supremo está em vias de criar uma nova “lei”: a que descriminaliza o porte de drogas para consumo pessoal. 
Hoje, a Lei Antidrogas não prevê prisão ao usuário, mas estabelece penas como advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade; e medidas educativas. 
Isso foi o que o Congresso decidiu em 2006, ao aprovar a Lei Federal nº 11.343.

Agora o Supremo pretende abolir essas punições. O ministro Alexandre de Moraes, o último dos quatro que já votaram pela descriminalização do porte de drogas, num voto proferido em 2 de agosto, propôs a tese de que será considerado usuário quem
“adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trazer consigo de 25 a 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas”. 
O Supremo está em vias de criar uma nova “lei”: a que descriminaliza o porte de drogas para consumo pessoal - Foto: Nelson Jr./SCO/STF

O ministro Luís Roberto Barroso acha que a descriminalização deve valer para até 25 gramas de maconha.  
Edson Fachin não estipulou quantidade, mas defende a regra apenas para quem for pego com a erva.  
Gilmar Mendes votou pela liberação geral do porte de qualquer droga para consumo pessoal.

No fim, a tese vencedora vai se tornar “lei”, ao arrepio do processo legislativo previsto na Constituição Federal. 
Esse ativismo judicial da Suprema Corte — que usurpa poderes não apenas do Legislativo, mas o fez com frequência em relação ao Executivo, no governo de Jair Bolsonaro — começou a se delinear há pouco mais de uma década.

A primeira intromissão
Uma das primeiras decisões que atropelaram o Congresso Nacional foi a liberação da união homoafetiva
, em maio de 2011.
Embora a Constituição mencionasse especificamente a relação entre homem e mulher para tratar da união estável, o STF reconheceu a união homoafetiva como um núcleo familiar igual a qualquer outro. [tudo foi 
consequência da ausência do advérbio apenas no artigo 226 da CF; no entender do supremo ministro se o legislador pretendesse restringir a união em discussão para homem e mulher,  teria redigido incluindo o advérbio: "...apenas entre homem e mulher...". A tese foi acolhida e liberou geral.]

Dois anos depois, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
[que pela CF não tem poderes para legislar, porém, mesmo assim,  revogou, por Resolução, o artigo 1.565 do Código Civil.] , também contrariando o artigo do Código Civil onde está previsto que “pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família”, proibiu, por resolução, os cartórios de se recusarem a fazer casamentos entre pessoas do mesmo sexo.

Em 5/5/2011, o STF deu um passo muito importante para a garantia de direitos das famílias formadas por pessoas do mesmo sexo. Ao julgar a ADI 4277 e a ADPF 132, a Corte reconheceu a união homoafetiva. As ações foram ajuizadas, respectivamente, pela PGR e pelo governo do RJ. ⤵️➕ pic.twitter.com/jIPlinkcP9— STF (@STF_oficial) May 5, 2021

No ano seguinte ao reconhecimento da união homoafetiva, o STF criou a “lei” do aborto dos bebês anencéfalos. 
O Código Penal prevê duas circunstâncias em que a interrupção da gravidez não é penalizada: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e se resulta de estupro. 
a “lei” criada pelo STF proveio do julgamento de uma Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), ajuizada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS).

Naquela ocasião, foram votos vencidos apenas os então ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso. Lewandowski, que se aposentou em abril deste ano, fundamentou a maior parte de seu voto com o argumento de que o tema é de competência do Legislativo, e não do STF. “Os parlamentares, legítimos representantes do povo, já tiveram tempo de legislar sobre o tema e não o fizeram”, disse Lewandowski. Além disso, a lei sobre o aborto era clara e, portanto, “não há espaço para interpretação”.

Peluso tentou convencer os colegas de que o aborto de feto anencéfalo é conduta vedada de forma frontal pela ordem jurídica e declarou que “não há malabarismo hermenêutico ou ginástica dialética” que possa permitir interpretação contrária. Prevaleceu o ativismo.
 
Homofobia, o crime criado por decisão judicial
Daí para a frente, os casos se multiplicaram. E a avidez do Supremo afrontou uma das regras mais básicas do Direito brasileiro e de todo o Ocidente:
não há crime sem lei anterior que o defina e não há pena sem prévia cominação legal
Ignorando solenemente o comando do artigo 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal, e do artigo 1º do Código Penal, os ministros criaram, em 2019, o crime de homofobia.

O malabarismo linguístico para explicar a aberração jurídica foi a omissão do Congresso Nacional por não editar lei que criminalize atos de homofobia e de transfobia. Com isso, analisando dois processos sob a relatoria do então ministro Celso de Mello e do ministro Edson Fachin, equiparam as agressões motivadas pela condição sexual ao crime de racismo.

Por maioria, o Plenário do @STF_oficial reconhece a omissão inconstitucional do Legislativo em não editar lei criminalizando a homofobia e enquadrou o crime na Lei de Racismo enquanto o Congresso Nacional não cria legislação específica para o tema.— STF (@STF_oficial) June 13, 2019

Lewandowski, Dias Toffoli e o então ministro Marco Aurélio Mello votaram contra a invasão de competência do Legislativo. “A normatização cumpre ao Congresso”, defendeu Lewandowski, o primeiro a votar contra a criação de crime por decisão judicial, naquela ocasião.

Durante a pandemia de covid-19, em evidente usurpação de competência do Executivo, o STF proibiu operações nas favelas do Rio e autorizou os governos dos Estados e dos municípios a decidirem sobre lockdowns e outras medidas para conter a doença. Também é dessa época uma decisão do ministro Luís Roberto Barroso, depois chancelada pelo plenário, que criou uma “lei” para exigir passaporte vacinal de pessoas que chegassem ao Brasil. Atendendo a pedido da Rede Sustentabilidade, os ministros afirmaram que o STF “tem obrigação constitucional de proteger os direitos fundamentais à vida e à saúde”.
 
O aborto e o ativismo
Com o aborto de bebês anencéfalos já estabelecido por decisão judicial há 11 anos
, o STF poderá, agora, ir “mais fundo” na questão, ignorando, mais uma vez, o Congresso. Tema sensível ao qual, assim como ocorre com as drogas, a maioria da população é contrária, o aborto pode deixar de ser crime no Brasil. A relatora do processo é a ministra Rosa Weber, que se aposentará em outubro, ao completar 75 anos.

Enquanto o governo se empenha nessas pautas identitárias, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem quase 60 mil pacientes esperando na fila de transplantes

A ação para descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação foi ajuizada pelo Psol, em 2017. 
Um dos que certamente votarão a favor é o ministro Luís Roberto Barroso. Em 2019, adentrando numa pauta progressista de gênero, ele declarou publicamente que, “se homens engravidassem, esse problema já estaria resolvido há muito tempo”.
 
O progressismo de Barroso
Com o viés “progressista” de Luís Roberto Barroso,
que em outubro assumirá a Presidência do STF, outros temas sensíveis podem ir para votação em breve
Um deles é um caso que trata de banheiros unissex em locais públicos. Sem discussão no Congresso, os ministros vão decidir se exigir que o transexual utilize banheiro do sexo oposto ao qual escolheu configura conduta ofensiva à dignidade da pessoa humana e aos direitos da personalidade.  
O caso, sob relatoria de Barroso, chegou ao Supremo em 2014 e está liberado para julgamento.

As pautas do STF vão exatamente ao encontro das políticas do governo Lula. Com a chancela do Ministério da Saúde e da ministra Nísia Trindade (que até hoje usa máscara contra a covid-19), o Conselho Nacional de Saúde aprovou, em julho, uma resolução estabelecendo como metas temas que não foram discutidos no Congresso. Entre as pautas, a liberação da maconha e do aborto. Além disso, outra meta é reduzir de 16 para 14 anos a idade mínima para que o adolescente possa iniciar tratamentos com hormônios para mudar de sexo. Enquanto o governo se empenha nessas pautas identitárias, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem quase 60 mil pacientes esperando na fila de transplantes.

Também pode ir em breve para votação do STF o marco temporal das terras indígenas, apesar de a Câmara ter aprovado um projeto de lei que fixa o dia da promulgação da Constituição como a data até a qual os indígenas podem reivindicar terras.  
O projeto aguarda votação no Senado. 
Outra intromissão do STF é no Marco Civil da Internet. 
Está explícito na lei que as plataformas somente respondem por eventuais danos se não retirarem conteúdo do ar depois de uma decisão judicial. Entretanto, o Supremo reconheceu a repercussão geral, e o processo pode entrar em pauta em breve.

A reação do Congresso
No Congresso, o avanço do STF nas competências do Legislativo foi alvo de críticas. A mais recente — e inesperada — veio do presidente do Senado. Rodrigo Pacheco (PSD-MG) disse que a descriminalização das drogas, como pretende fazer o STF, sem discussão no Congresso, é “invasão de competência do Poder Legislativo”. “Houve, a partir da concepção da Lei Antidrogas, uma opção política de se prever o crime de tráfico de drogas com a pena a ele cominada, e de prever também a criminalização do porte para uso de drogas.

(.....)

Rodrigo Pacheco acusa STF de invadir competência do Poder Legislativo ao descriminalizar porte de maconha para uso pessoal.

De quem se irá comprar a droga? De um traficante, que pratica um crime gravíssimo, equiparado a hediondo”, afirmou o presidente do Senado ao ressaltar que… pic.twitter.com/ClwU4nOiJQ— Metrópoles (@Metropoles) August 3, 2023

Em 2019, a deputada Bia Kicis (PL-DF) protocolou projeto semelhante ao de Cavalcante, que foi apensado à proposta do colega. O texto da parlamentar previa a abertura de processo de impeachment quando o ministro instituísse “mediante decisão, sentença, voto, acórdão ou interpretação analógica, norma geral e abstrata de competência do Congresso Nacional”.
 
 
 
 

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