Loriane Comeli
Segundo a Constituição, os ministros do Supremo Tribunal Federal não deveriam agir como se fossem parlamentares eleitos pelo voto popular
Apesar disso, o Supremo está em vias de criar uma nova “lei”: a que descriminaliza o porte de drogas para consumo pessoal.
Agora o Supremo pretende abolir essas punições. O ministro Alexandre de Moraes, o último dos quatro que já votaram pela descriminalização do porte de drogas, num voto proferido em 2 de agosto, propôs a tese de que será considerado usuário quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trazer consigo de 25 a 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas”.
O ministro Luís Roberto Barroso acha que a descriminalização deve valer para até 25 gramas de maconha.
No fim, a tese vencedora vai se tornar “lei”, ao arrepio do processo legislativo previsto na Constituição Federal.
A primeira intromissão
Uma das primeiras decisões que atropelaram o Congresso Nacional foi a liberação da união homoafetiva, em maio de 2011.
Dois anos depois, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) [que pela CF não tem poderes para legislar, porém, mesmo assim, revogou, por Resolução, o artigo 1.565 do Código Civil.] , também contrariando o artigo do Código Civil onde está previsto que “pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família”, proibiu, por resolução, os cartórios de se recusarem a fazer casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
Em 5/5/2011, o STF deu um passo muito importante para a garantia de direitos das famílias formadas por pessoas do mesmo sexo. Ao julgar a ADI 4277 e a ADPF 132, a Corte reconheceu a união homoafetiva. As ações foram ajuizadas, respectivamente, pela PGR e pelo governo do RJ. ⤵️➕ pic.twitter.com/jIPlinkcP9— STF (@STF_oficial) May 5, 2021
No ano seguinte ao reconhecimento da união homoafetiva, o STF criou a “lei” do aborto dos bebês anencéfalos.
Naquela ocasião, foram votos vencidos apenas os então ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso. Lewandowski, que se aposentou em abril deste ano, fundamentou a maior parte de seu voto com o argumento de que o tema é de competência do Legislativo, e não do STF. “Os parlamentares, legítimos representantes do povo, já tiveram tempo de legislar sobre o tema e não o fizeram”, disse Lewandowski. Além disso, a lei sobre o aborto era clara e, portanto, “não há espaço para interpretação”.
Peluso tentou convencer os colegas de que o aborto de feto anencéfalo é conduta vedada de forma frontal pela ordem jurídica e declarou que “não há malabarismo hermenêutico ou ginástica dialética” que possa permitir interpretação contrária. Prevaleceu o ativismo.
Daí para a frente, os casos se multiplicaram. E a avidez do Supremo afrontou uma das regras mais básicas do Direito brasileiro e de todo o Ocidente: não há crime sem lei anterior que o defina e não há pena sem prévia cominação legal.
O malabarismo linguístico para explicar a aberração jurídica foi a omissão do Congresso Nacional por não editar lei que criminalize atos de homofobia e de transfobia. Com isso, analisando dois processos sob a relatoria do então ministro Celso de Mello e do ministro Edson Fachin, equiparam as agressões motivadas pela condição sexual ao crime de racismo.
Por maioria, o Plenário do @STF_oficial reconhece a omissão inconstitucional do Legislativo em não editar lei criminalizando a homofobia e enquadrou o crime na Lei de Racismo enquanto o Congresso Nacional não cria legislação específica para o tema.— STF (@STF_oficial) June 13, 2019
Lewandowski, Dias Toffoli e o então ministro Marco Aurélio Mello votaram contra a invasão de competência do Legislativo. “A normatização cumpre ao Congresso”, defendeu Lewandowski, o primeiro a votar contra a criação de crime por decisão judicial, naquela ocasião.
Durante a pandemia de covid-19, em evidente usurpação de competência do Executivo, o STF proibiu operações nas favelas do Rio e autorizou os governos dos Estados e dos municípios a decidirem sobre lockdowns e outras medidas para conter a doença. Também é dessa época uma decisão do ministro Luís Roberto Barroso, depois chancelada pelo plenário, que criou uma “lei” para exigir passaporte vacinal de pessoas que chegassem ao Brasil. Atendendo a pedido da Rede Sustentabilidade, os ministros afirmaram que o STF “tem obrigação constitucional de proteger os direitos fundamentais à vida e à saúde”.
O aborto e o ativismo
Com o aborto de bebês anencéfalos já estabelecido por decisão judicial há 11 anos, o STF poderá, agora, ir “mais fundo” na questão, ignorando, mais uma vez, o Congresso. Tema sensível ao qual, assim como ocorre com as drogas, a maioria da população é contrária, o aborto pode deixar de ser crime no Brasil. A relatora do processo é a ministra Rosa Weber, que se aposentará em outubro, ao completar 75 anos.
Enquanto o governo se empenha nessas pautas identitárias, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem quase 60 mil pacientes esperando na fila de transplantes
A ação para descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação foi ajuizada pelo Psol, em 2017.
O progressismo de Barroso
Com o viés “progressista” de Luís Roberto Barroso, que em outubro assumirá a Presidência do STF, outros temas sensíveis podem ir para votação em breve.
As pautas do STF vão exatamente ao encontro das políticas do governo Lula. Com a chancela do Ministério da Saúde e da ministra Nísia Trindade (que até hoje usa máscara contra a covid-19), o Conselho Nacional de Saúde aprovou, em julho, uma resolução estabelecendo como metas temas que não foram discutidos no Congresso. Entre as pautas, a liberação da maconha e do aborto. Além disso, outra meta é reduzir de 16 para 14 anos a idade mínima para que o adolescente possa iniciar tratamentos com hormônios para mudar de sexo. Enquanto o governo se empenha nessas pautas identitárias, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem quase 60 mil pacientes esperando na fila de transplantes.
Também pode ir em breve para votação do STF o marco temporal das terras indígenas, apesar de a Câmara ter aprovado um projeto de lei que fixa o dia da promulgação da Constituição como a data até a qual os indígenas podem reivindicar terras.
A reação do Congresso
No Congresso, o avanço do STF nas competências do Legislativo foi alvo de críticas. A mais recente — e inesperada — veio do presidente do Senado. Rodrigo Pacheco (PSD-MG) disse que a descriminalização das drogas, como pretende fazer o STF, sem discussão no Congresso, é “invasão de competência do Poder Legislativo”. “Houve, a partir da concepção da Lei Antidrogas, uma opção política de se prever o crime de tráfico de drogas com a pena a ele cominada, e de prever também a criminalização do porte para uso de drogas.”
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Rodrigo Pacheco acusa STF de invadir competência do Poder Legislativo ao descriminalizar porte de maconha para uso pessoal.
“De quem se irá comprar a droga? De um traficante, que pratica um crime gravíssimo, equiparado a hediondo”, afirmou o presidente do Senado ao ressaltar que… pic.twitter.com/ClwU4nOiJQ— Metrópoles (@Metropoles) August 3, 2023
Em 2019, a deputada Bia Kicis (PL-DF) protocolou projeto semelhante ao de Cavalcante, que foi apensado à proposta do colega. O texto da parlamentar previa a abertura de processo de impeachment quando o ministro instituísse “mediante decisão, sentença, voto, acórdão ou interpretação analógica, norma geral e abstrata de competência do Congresso Nacional”.
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