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quarta-feira, 20 de julho de 2022

Pão torrado auditável - O incrível caso de um país que pode implodir por causa de… torradeiras - Gazeta do Povo

Paulo Polzonoff Jr. 

A confiabilidade das torradeiras está sendo novamente questionada pelo presidente Jair Bolsonaro. E está sendo mais uma vez reafirmada enfaticamente pelo Judiciário. 

De um lado, uma dúvida que, independentemente de ser ou não paranoica na origem, está por aí
No ar, no éter. De outro, a arrogância inexplicável e teimosia idem de todo um grupo que existe justamente para garantir que sobre as eleições e suas torradeiras maravilhosas não paire qualquer dúvida - por mais infundada que ela pareça.

 

Torradeiras.| Foto: Abdias Pinheiro/TSE

 Numa conversa recente com amigos bem mais velhos do que eu, fui levado a lembrar que as torradeiras, ao contrário do que diz a campanha do TSE, nunca foram exatamente uma unanimidade. Se temos essa impressão, é porque aqueles eram outros tempos
Tempos de calmaria política, de estabilidade econômica e de tranquilidade com a queda razoavelmente recente do Muro de Berlim. "A gente achava que era impossível alguém continuar comunista depois de ver as torneiras de ouro dos governantes da Alemanha Oriental", disse um deles. 
Apesar do clima geral de alienação, sempre houve quem olhasse com desconfiança para as torradeiras. Nem que essa desconfiança nascesse de um espírito que misturava nostalgia, tradição e uma pitadinha de ludismo.
 
Hoje a gente gosta de rir dos luditas porque eles eram basicamente contra as máquinas que permitiram a Revolução Industrial e, à la Boulos, invadiam as fábricas destruindo tudo. E por “tudo” leia-se “principalmente teares”, que eram o ápice da tecnologia da época. É muito fácil, com o olhar contemporâneo, ridicularizar essas pessoas. Mas a gente não pode esquecer que o sustento e o estilo de vida delas estavam sendo ameaçados por uma geringonça sem alma
E nem chegava a ser uma torradeira dessas que o TSE jura por tudo o que é mais sagrado que são seguras.
 
Avançando um pouco no tempo, do começo à metade do século XX temos a “era de ouro da ficção científica”, gênero que consagrou muitos escritores de imaginação exuberante e estilo sofrível. 
E, em essência, do que fala a ficção científica? 
Da relação sempre complicada entre o homem e a tecnologia criada pelo homem. 
E nem por isso filmes e livros com máquinas malvadas são considerados luditas. 
É natural, pois, que muita gente se sinta profundamente ameaçada quando se trata de confiar o destino de um país a máquinas tão simples quanto torradeiras.

Em relação às nossas torradeiras, a dúvida é natural. Naturalíssima. De uma naturalidade tão grande que há não mais de uma década os próprios parlamentares, representantes democraticamente eleitos da população, aprovaram uma norma que determinava que o pãozinho torrado eletrônico viesse acompanhado por um paõzinho torrado físico, verificável. Em 2015, porém, os ministros do STF, talvez deslumbrados com o potencial ideológico da manipulação sutil das torradeiras, deram início à teimosa iniciativa de garantir a legitimidade das eleições na marra.

Inatural é a teimosia nascida da soberba tecnocrata. Uma arrogância que ignora um desejo que você pode considerar “retrógrado”, irracional, equivocado, mas que é autêntico dentro da ordem democrática: o desejo de ver suas ideias devidamente representadas por meio do voto
O quanto esse desejo é ilusório não está em questão aqui. 
O que está em questão é a recusa inexplicável das autoridades competentes. 
Uma recusa que tem potencial para jogar o país num abismo maior ainda.
 
Afinal, se as torradeiras derem a vitória ao ex-presidiário Lula (toc, toc, toc), a legitimidade de uma eleição que tem por base apenas a canetada do ministro Edson Fachin e a fé na tecnologia das torradeiras será, evidentemente, questionada. 
Ou melhor, negada e rejeitada por uma parcela nada desprezível da população. 
Nesse ambiente, não se pode esperar de um presidente eleito legalmente, mas ilegitimamente, que ele governe o país em paz. 
Porque não haverá paz. E, na falta de paz, os governos tendem a usar o que lhes resta: a força.

A crer na honestidade dos ministros & suas torradeiras infalíveis, resta a hipótese não menos absurda de que STF e TSE agem movidos pela empáfia, pelo desprezo aos sentimentos insisto: legítimos – de parte da sociedade, e pela certeza (essa, sim, infundada) de que a história reserva aos ministros um lugar de honra pela defesa arrogante que eles fazem dessa democracia com contornos muito particulares.

Paulo Polzonoff Jr. , - colunista - Gazeta do Povo - VOZES

 

terça-feira, 22 de maio de 2018

Impasse na lama



Fabio Schvartsman e Andrew Mackenzie somam 80 anos de experiência em gestão. Ainda têm chance de resgatar seu histórico bem-sucedido do lodo da Samarco 

Está virtualmente fechado um dos maiores negócios da indústria de mineração. Os executivos Fabio Schvartsman, da Vale, e Andrew Mackenzie, da australiana BHP Billiton, chegaram a um acordo sobre o futuro da Samarco. Se mantido, a Vale deverá anunciar em breve a compra da participação (50%) da sócia Billiton no controle da empresa, cujas operações estão paralisadas há dois anos. 

Schvartsman e Mackenzie lideram dois dos maiores e lucrativos grupos mundiais de mineração. São, também, responsáveis pelo atual impasse nas ações da subsidiária para restaurar vida e paisagem numa área de 70 mil quilômetros quadrados, entre Minas e Espírito Santo, devastada no rompimento de uma barragem de rejeitos da Samarco em Mariana (MG). É o maior desastre ambiental no país. Schvartsman herdou o problema do antecessor, Murilo Ferreira, que deixou a Vale há 14 meses. 

Já se passaram 890 dias desde a quinta-feira 5 de novembro de 2015, quando uma avalanche de compostos quimicamente estáveis (éter, arsênio, cádmio, mercúrio, chumbo, manganês e ferro, entre outros) se espraiou por 800 quilômetros da Bacia do Rio Doce até o Atlântico. Sob a lama foram encontrados 17 cadáveres. Até agora, no entanto, a subsidiária comandada por Schvartsman e Mackenzie fez muito pouco sobre as sequelas. É o que demonstram relatórios do Ministério do Meio Ambiente, Ibama, governos de Minas e do Espírito Santo, dos municípios e do Comitê da Bacia do Rio Doce. 

Em janeiro, esses organismos fizeram uma revisão do acordo (“Termo de Transação e Ajustamento de Conduta”) assinado pela Samarco e seus acionistas, Vale e BHP Billiton. Concluíram que as empresas descumpriram os compromissos de forma “reiterada e inequívoca”. Cobraram “soluções eficazes e definitivas antes do próximo período chuvoso”, a partir de outubro, para evitar “a continuidade da poluição”. As empresas responderam no mês seguinte, com 8,6 mil palavras distribuídas em 24 páginas sob o timbre da fundação criada para reparações no Rio Doce. Delas sobressaem verbos sobre um futuro indeterminado e expressões sobre o presente incerto, como “planos em elaboração”, “alternativa estudada”, “solução em fase de projetos”, “estudos complementares”, “monitoramento adicional em andamento”, e, “em avaliação”. 

Nem o tratamento da água dos rios está sendo feito. Tecnologia específica foi identificada, informa a fundação. É usada em canais de esgoto urbano. Até foram feitos “testes”, porém, “não foram avaliadas as questões da biodiversidade, nem as autorizações para aplicar produtos químicos diretamente” nos rios. Mês passado, o Ibama analisou as explicações e propostas. Definiu como “superficiais”, “excessivamente conceituais”, “sem esclarecimentos ou conteúdos técnicos relevantes” e “inconsistentes”. Concluiu que as empresas adotaram a tática do rodízio: entregam cronograma, em seguida, atualizam e, logo, adiam. 

São posturas defensivas, para contenção de danos às imagens corporativas — a BHP Billiton fez algo parecido em 1984, na Papua Nova Guiné, quando lançou 80 mil toneladas de compostos de cobre, cádmio e zinco nos rios Ok Tedi e Fly e envenenou a floresta.

 

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Escondidos atrás da mesa

Executivos como Murilo Ferreira, Andrew Mackenzie e Lakshmi Mittal agora são vistos como líderes de grupos que lucram por meio de práticas irresponsáveis e danosas à vida

Eles comandam um trio de potências globais da mineração e siderurgia, com faturamento somado de R$ 520 bilhões no último ano fiscal.  O indiano Lakshmi Mittal, de 65 anos, lidera a ArcelorMittal, o maior conglomerado. Vende o dobro do escocês Andrew Mackenzie, 59 anos, chefe da BHP Billinton, cuja receita é equivalente à do grupo Vale, presidido pelo brasileiro Murilo Ferreira, 57 anos.

Os três estão escrevendo um capítulo novo nas suas biografias, muito além do fascínio comum pela metalurgia. Tornaram-se protagonistas de dois grandes litígios ambientais.
Ferreira, Mackenzie e Mittal são os principais executivos por trás da mutação da paisagem e da vida numa área de 70 mil quilômetros quadrados, entre Minas Gerais e Espírito Santo, com graves sequelas para três milhões de pessoas em 230 cidades da bacia do Rio Doce à região metropolitana de Vitória.

Parceiros na mineradora Samarco, Ferreira (Vale) e Mackenzie (BHP) comandaram a leniência que, em novembro, resultou numa avalanche de compostos quimicamente estáveis de éter, arsênio, cádmio, mercúrio, chumbo, manganês e ferro, entre outros, sobre o Rio Doce.  Ferreira, agora na companhia de Lakshmi Mittal (grupo ArcelorMittal), se destaca como ator principal de outro desastre, na região de Vitória. Semana passada, a Justiça Federal interditou o Porto de Tubarão, o maior em exportação de minério e produtos siderúrgicos. A ordem judicial objetiva impedir “a atividade criminosa” de emissão de poeira de carvão no ar e o lançamento de pó de minério no mar.

Essa poluição tem provocado “lesões corporais e até óbitos decorrentes de enfermidades respiratórias e cardiovasculares”, registra o juiz, citando evidências em investigação policial, ações civis, relatórios sanitários e de CPIs.

Ferreira, desta vez, não pode esgrimir o argumento rudimentar manejado na catástrofe da Samarco (“Ela não é parte da Vale”). Do seu gabinete, no Rio, saiu uma resposta anódina: “A Vale reitera o seu compromisso com as comunidades da Grande Vitória, com o meio ambiente e com as suas operações.” Mittal, que fatura R$ 17 bilhões no país, optou pelo silêncio. É o oposto do que se espera nas relações empresa-sociedade.

No desastre do Rio Doce, os presidentes da Vale e da BHP Billinton se esconderam atrás da mesa diretora da subsidiária Samarco. Limitaram-se à contenção de danos às respectivas imagens — como ocorreu quando uma barragem da BHP Billinton desabou sobre os rios Ok Tedi e Fly em Papua Nova Guiné.

Emissários da ONU ao Brasil, John Knox e Baskut Tuncak notaram: “Empresas e o governo deveriam estar fazendo tudo que podem para prevenir mais problemas, o que inclui a exposição a metais pesados e substâncias tóxicas. Não cabem posturas defensivas.”

O tempo passou na janela. Em Nova York, investidores foram à Justiça. Alegam perdas na compra de papéis da Vale, em 2015, por “declarações falsas” , “engodo” e “omissão” de Ferreira e sua diretoria. O prazo para adesões ao processo vai até 5 de fevereiro.  Em universidades como o King’s College, de Londres, executivos como Ferreira, Mackenzie e Mittal já são vistos como líderes de empresas que lucram por meio de práticas empresariais irresponsáveis e danosas à vida no planeta.
Fonte: José Casado - O Globo