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quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Estranhas ações e misteriosas omissões - Percival Puggina

 

A ordem para entregar todas as pessoas presentes no acampamento instalado junto ao QG do Exército foi emitida por alguém que deixou no armário o senso de humanidade. 
Lá se foram embarcadas pessoas idosas, pessoas enfermas, crianças e suas mães. 
Você não precisa pensar muito para perceber que isso está errado. 
Não creio que algo assim já tenha sido feito em cracolândias, para apreensão de drogas e traficantes.

Era inevitável que a multidão detida evocasse a imagem nefasta de um “campo de concentração”. O erro, que desencadeou uma série de problemas operacionais – e humanos – foi considerar criminoso o simples fato de estar alguém acampado diante de uma instalação militar em protesto contra a sequência de ações cujo produto final foi a eleição de Lula.

É excesso de autoestima e perda do senso de medida indignar-se e reagir de modo punitivo a essa prolongada irresignação inativa. Por que, raios, vociferar tanto contra a visibilidade proporcionada pela simples presença passiva, semana após semana?

Vê-los me fazia lembrar de Mahatma Ghandi ou Martin Luther King, que estão longe de ser maus exemplos. Indignar-se e reagir a eles é desprezar a autonomia do ser humano. Quem assim procede tem excesso de estima por si mesmo e escassa estima pela humanidade.

As pessoas devem ser livres para protestar pacifica e eternamente, se quiserem. É o que fizeram, sempre sob repressão do Estado, as Mães da Praça de Maio na Argentina durante 30 anos entre 1976 e 2006 e há 20 anos fazem as Damas de Branco em Cuba, enquanto marcham, juntas, silenciosas, para a missa. Há exemplos para a esquerda e para a direita.[curiosamente penso mais em estar o 'alguém' mencionado na primeira fase deste POST, mais ligado à Cuba do que à Argentina.]

É inútil colocar uma rolha e selar com o lacre da autoridade as opiniões divergentes. Ao peso e custo de sanções, perguntas sem resposta podem não ser verbalizadas, mas persistirão nas mentes e ecoarão na história. Vale o mesmo para as perguntas que hoje são feitas sobre as misteriosas omissões das autoridades na proteção da Esplanada dos Ministérios.   

Percival Puggina (78), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.


segunda-feira, 17 de setembro de 2018

O agora é muito delicado - Ninguém responde ao general




Não acho que valha a pena agora uma discussão sobre 1964 ou a Guerra do Paraguai.


De novo na estrada, no centro de Minas, a 700 quilômetros do Rio. Deixei um clima político bastante polarizado. A série de entrevistas com candidatos mostrou como o mesmo trabalho pode parecer contrário ou a favor do entrevistado, dependendo do ângulo do espectador.  Eu mesmo fui criticado por não ter respondido ao general Mourão sobre heróis e tortura. As pessoas talvez desconheçam a fronteira entre uma entrevista e um debate.
Como jornalista, ouço as pessoas, registro no meu caderno ou gravo as opiniões colhidas. Às vezes, refaço a pergunta, apenas para obter mais transparência nas ideias e projetos. 

Quando a entrevista é em conjunto, trata-se de um ritual coletivo que tem como objetivo oferecer uma visão mais completa do personagem, dentro de um determinado prazo.
Se alguém diz “heróis matam”, não posso contestá-lo. E se o fizesse, diria apenas que heróis também matam, a julgar pela História, inclusive da esquerda e das lutas anticoloniais.  Heróis morrem pela liberdade, ora lutando pelos irmãos de cor, como Martin Luther King, ora pela paz, como Mahatma Ghandi. Herói apenas salvam vidas, como a professora Helley Abreu, na escola incendiada em Janaúba.  Às vezes, heróis não matam nem morrem. Simplesmente dedicam-se a ajudar os outros. Conheci Noel Nutels no aeroporto de Belém, e ele me contou como cuidava dos índios, sobretudo de seu pulmão. Fiquei impressionado com ele até hoje. Isso tem mais de meio século.

Não conheci Nise da Silveira pessoalmente. Mas quando vi o que fez pelos doentes mentais, livrando-os do choque elétrico e despertando sua visão estética, compreendi que sua vida também teve um grande propósito.  Quanto à tortura, sou bastante tranquilo ao condená-la. Hoje, o Brasil subscreve acordos internacionais que a varrem de nossas práticas cotidianas. Não significa que cessaram: apenas são ilegais.  Ao defender a tortura em nome de grandes ideais, a direita cai na mesmo equívoco da esquerda. Adota o lema: os fins justificam os meios.  Na minha cabeça, essas coisas são claras. Como tenho a possibilidade de me expressar por artigos e uma longa existência por trás de cada opinião, estou à vontade percorrendo o Brasil, ouvindo as pessoas.

Não me importam se racionais, sensatas, delirantes ou alucinadas: gosto de ouvi-las. O alívio de voltar a elas se deve à sua leveza e complexidade. Uma leveza que não atrai torcidas contra ou a favor, como um candidato. E uma complexidade que não nos seria possível antever, se Shakespeare fosse um escritor com viseiras ideológicas.
Não acho que valha a pena agora uma discussão sobre 1964 ou sobre a Guerra do Paraguai. O agora é muito delicado.  Esta semana tentei usar a França para formular uma hipótese. Lá, depois de um período de barricadas de esquerda, sobrevém um governo de ordem. De Gaulle venceu as eleições depois do Maio de 68. A tendência no Brasil foi a do fortalecimento de uma visão que deseja ordem e seriedade na condução do governo.
Minha dúvida ainda se apoia nessa referência à França. De Gaulle representava um tipo de autoridade. Le Pen e sua filha Marine, da extrema direita, apenas chegaram ao segundo turno das eleições. A ascensão de seu movimento não foi suficiente para ganhar o governo.

Sei como é precário comparar um país com outro. Mas o que posso fazer, senão usar também algumas memórias? Ninguém sabe do futuro. É possivel usar como exemplo a vitória de Trump. Mas ele tinha uma condição especial: milionário, apoiado por uma rede de TV, integrado, com um pouco de desconforto, num grande partido. O que restou dessa passagem mais longa pelo Rio, respirando o clima eleitoral, candidatos, equipes, planos, sai um pouco apreensivo.  O clima de radicalização está levando as pessoas a lerem apenas notícias com as quais concordam. Cerca da metade das intervenções na rede negava a facada em Bolsonaro. Se continuarmos assim, abrigados em tribos, acreditando apenas no que queremos acreditar, será cada vez mais difícil a vida de quem não habita os extremos.

Para os intelectuais, é um perigo de morte. Se você acha que sabe tudo, que tem a correta visão do mundo, não precisa ler os outros, confrontar argumentos, corrigir erros, a tendência é a fossilizacão. E nem para os fósseis a vida está fácil no Brasil, Luzia que o diga.