Não sei se Bolsonaro estudou as ferramentas de
convencimento do presidente americano, ou se é por intuição que lhe reproduz os
métodos. Com sucesso até aqui
Só muito
raramente escrevo sobre livros que edito. Esta é uma exceção. Impõe-se. O
motivo é simples: a obra ajuda a empreitada daqueles que tentam — a sério, sem
lhe subestimar a inteligência — compreender Jair Bolsonaro; ou melhor, oferece
instrumentos aos que lhe querem decodificar o discurso. Refiro-me a Ganhar de
lavada, trabalho em que Scott Adams disseca as técnicas de persuasão por meio
das quais Donald Trump não apenas venceu a eleição presidencial americana, mas
também reinventou o Partido Republicano, dinamitou o Democrata e minou, como
sem precedentes, a credibilidade da imprensa tradicional.
Não se
iluda, leitor: Trump ganhou — fez tudo isso — no discurso. Ele identificou os
anseios fundamentais do público para o qual poderia falar, aquele que o queria
ouvir e que lhe bastaria para vencer, e investiu todas as fichas na percepção
de que as pessoas não tomam decisões com base em fatos, e que estão facilmente
propensas a ignorar detalhes se atraídas por uma palavra hábil capaz de
corresponder a suas prioridades e a seu estado emocional. Mais do que querer as
mesmas coisas que o eleitor que cortejava, Trump era — tornou-se — as coisas
que o eleitor que cortejava queria; e operou essa complexa justaposição de
existências exclusivamente graças à sua apreensão da realidade e ao modo como
se comportou a partir dessa leitura. [Trump centrou, da mesma forma que qualquer candidato (o que inclui Jair Bolsonaro), no que o eleitor deseja que é na maior parte das vezes o que o eleitor precisa;
seria uma ignorância absurda, da qual só coisas como Dilma e Lula podem ser capazes, se preocupar que o que o eleitor não deseja = não precisa.]
Não sei
se Bolsonaro conhece Adams, se estudou as ferramentas de convencimento do
presidente americano, ou se é por intuição que lhe reproduz os métodos. Com
sucesso até aqui. Todos se lembram do “muro de Trump”, o paredão que, eleito,
ergueria para separar os EUA do México. Trata-se da hipérbole exemplar, a
âncora a partir da qual o então candidato cravou para si — com ódio de um lado
tanto quanto paixão de outro — uma bandeira objetiva capaz de mobilizar milhões
de eleitores e transformá-lo em protagonista, em pauteiro-mor, da campanha. Não há
moralidade quando se emprega tal nível de persuasão. Somente eficácia. Quando
Trump afirmava, espetacular e radicalmente, que deportaria milhões de
imigrantes, inclusive legais, outra coisa não fazia do que se inscrever — na
mente das pessoas — como o único que se preocupava com a porosidade das
fronteiras nacionais e com a imigração ilegal, e o único que faria algo prático
a respeito, daí o muro. Pormenores sobre como implementar o que prometia? Ora,
ele se aprofundaria nas formas de execução quando empossado, com o auxílio de
especialistas. Impossível não pensar em Paulo Guedes, no caso bolsonarista,
como emblema tranquilizador dessa mensagem postergadora.
Bolsonaro
joga esse jogo. Mapeou as duas principais sensibilidades do brasileiro médio —
o desprezo pelo establishment político (vide o modo como tentou capitalizar a
mobilização de caminhoneiros) e a demanda por segurança pública — e, sobretudo
no caso da segurança, estabeleceu-se como o senhor do assunto, o único que
verdadeiramente se sensibiliza com o problema, e o único que o enfrenta com a
prioridade exigida pela população. Ele também ergueu seu muro. E aqui falamos
de ferramentas de convencimento, pouco importando a violência da proposta,
segundo seus detratores, tanto quanto sua realização impraticável, segundo o
mundo real. A amarra mental de Bolsonaro — o gatilho de choque por meio do qual
se eleva como dono da pauta da segurança — é a ideia, afirmada e reafirmada, de
armar a população; o tom dessa pregação se intensificará daqui até outubro. [a população com direito à possuir e portar armas com certeza vai reduzir a vantagem dos bandidos - atualmente em 99% os bandidos levam vantagem, exatamente por atacarem cidadãos desarmados (pelo famigerado 'estatuto do desarmamento', ainda vigente, só policiais e bandidos podem portar armas.)
Com Bolsonaro o cidadão de bem também poderá possuir e portar armas estando em condições de reagir - a praxe das autoridades de segurança, nos dias atuais, é aconselhar a não reação, mas, há vários casos de reação em que comprovadamente o bandido morre = o cidadão de bem triunfa - o que torna o jogo menos desigual e deixe o bandido em dúvidas sobre se haverá reação, reduzindo seu ânimo.]
Quem já o
viu falar sobre segurança pública certamente se espantou com a superficialidade
de seus comentários a respeito. Puro método, no entanto. O deputado pode passar
horas tratando da questão sem mencionar, nem sequer de passagem, seu cerne, a
fragilidade das fronteiras por meio das quais drogas e armas entram no país, e
ainda assim convencer multidões de que é o único consistentemente preocupado
com a insegurança do brasileiro. Uma arma na mão e uma defesa na cabeça. Aí
está. Abordagem genérica com solução micro: eis o discurso de Bolsonaro.
Funciona. Comove. Arrebanha. Persuade. É chamamento individual; convite à
participação de sujeitos historicamente excluídos; solução compartilhada — não
interessa se estúpida. Bolsonaro, a rigor, não fala de outra coisa senão de
proteção à propriedade privada. E acerta.
Não
adianta, portanto, cobrar-lhe que se aprofunde, que apresente um programa,
tampouco supor que o simplismo exagerado de sua fala sobre segurança seja
falho. Não é. Não para efeito eleitoral. Bolsonaro não é um parvo no lugar e no
momento certos. Há ciência em sua generalidade. Ele é objetivo. Descarta
pormenores próprios à política porque estica seu verbo no sentimento, o da
moda, que repele tudo quanto derive da política como atividade. Ele foge da
minúcia porque constrói seu discurso numa camada narrativa que prescinde da
razão para comunicar e seduzir – uma faixa, legítima, que é essencialmente
emocional, e para a qual nuance é blá-blá-blá. Como
Trump, Bolsonaro trabalha para se converter numa ideia, num valor. Ao contrário
de Trump, porém, não vencerá. Como Trump, contudo, já ganhou.
Carlos
Andreazza, editor de livros - O Globo