modus operandi j
Tendo fracassado na tática do medo para esvaziar as ruas, os demofóbicos partiram para as desqualificações de sempre
“Não temais ímpias falanges/Que apresentam face hostil/
Vossos peitos, vossos braços/São muralhas do Brasil.”
D. Pedro I e Evaristo da Veiga, Hino da Independência do Brasil
“A elite política do patrimonialismo é o estamento,
estrato social com efetivo comando político,
numa ordem de conteúdo aristocrático.”
Raymundo Faoro, Os Donos do Poder
Dando prosseguimento à série de textos que exploram similaridades entre a Primeira República Francesa — produto sociopolítico da ideologia iluminista — e a assim chamada Nova República brasileira — criatura sociopolítica da intelligentsia de esquerda (socialista e social-democrata) culturalmente hegemônica no pós-regime militar —, gostaria de lembrar uma das características mais marcantes do Iluminismo de matriz francesa, raramente mencionada pelos apologistas e pelos saudosistas do movimento. Refiro-me ao elitismo, não raro manifesto numa autêntica demofobia, um sentimento de horror pelo povo concreto, em carne e osso.
De fato, pensadores como Voltaire e Diderot jamais o esconderam. Quando o primeiro dizia, por exemplo, que cabia a “todo homem sensato e honrado” nutrir horror pelo catolicismo, não tinha em mente o homem comum do povo, cuja ignorância, aos olhos de Voltaire, o impedia terminantemente de desenvolver tanto a sensatez quanto a honra. Também Diderot deixava claro que a massa de pessoas comuns não faria parte da nova era científica e racional anunciada pelos philosophes. “A massa genérica de homens não foi feita para promover, nem sequer compreender, essa marcha progressiva do espírito humano”, escreveu em O Sobrinho de Rameau (1805). E foi ainda mais explícito no verbete “Multidão” da Enciclopédia: “Desconfie do julgamento da multidão em matéria de raciocínio e filosofia; sua voz é a da malícia, da tolice, da desumanidade, da irracionalidade e do preconceito (…) A multidão é ignorante e confusa (…) Desconfie de sua moral; ela não é capaz de produzir ações fortes e generosas”.
Para Diderot, Voltaire e seus confrades das “sociedades de pensamento”, a população comum era “imbecil” (imbécile) em termos de religião. Enquanto, entre os espíritos superiores, a superstição nacional (i.e., a fé católica) parecia recuar, esse progresso dificilmente chegaria até “o populacho” (la canaille). O povo era demasiado “idiota, bestial, miserável e ocupado” para iluminar a si próprio. “A quantidade de canaille mantém-se sempre mais ou menos estável.”
A celebração da democracia
Para qualquer pessoa moral e intelectualmente honesta, o 7 de Setembro de 2022 foi um dia histórico, uma celebração da democracia. Nessa data, milhões de brasileiros foram pacífica e ordeiramente às ruas manifestar o seu patriotismo.
Assim é que os milhões de brasileiros, que não cometeram um ato sequer de violência ou depredação — ao contrário do que invariavelmente ocorre nos protestos da esquerda —, continuaram sendo estigmatizados como golpistas, fascistas e nazistas. Sobre eles, tuitou um radical de esquerda fantasiado de jornalista: “As imagens dessa gente doentia nas ruas nesse 7 de Setembro irão perseguir seus filhos e netos como as fotos de apoiadores do nazismo alemão, do fascismo italiano ou dos supremacistas americanos”. E o candidato do Foro de São Paulo à Presidência do Brasil — o ex-presidiário Luiz Inácio Lula da Silva — cometeu contra os patriotas a ofensa mais grave que se poderia imaginar, equiparando-os a integrantes da Ku Klux Klan (ou “Cuscuz Crã”, na pronúncia peculiar do comandante do Petrolão).
Com raros momentos de exceção, assim tem sido a organização sociopolítica brasileira ao longo da história, sempre de cima para baixo
Desde, ao menos, a Proclamação da República, o Brasil tem se notabilizado pela ausência de participação popular na vida política nacional. Sobre os eventos do 15 de novembro de 1889, Aristides Lobo publicou no Diário Popular: “Por ora, a cor do Governo é puramente militar, e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula”. E o jornalista entusiasta da República arrematava sua carta com a célebre observação: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada”. Na mesma época, o médico francês Louis Couty, amigo pessoal de D. Pedro II, resumiu numa sentença lapidar a nossa situação: “O Brasil não tem povo”.
Com raros momentos de exceção, assim tem sido a organização sociopolítica brasileira ao longo da história, sempre de cima para baixo. E assim também o foi durante toda a Nova República, período em que as forças da esquerda, culturalmente vitoriosas sobre o regime militar que as derrotara política e militarmente (no caso da luta armada), fabricaram um povo fictício — uma abstração talhada à imagem e semelhança da intelligentsia progressista nacional — e, portanto, uma democracia de fachada, formalmente consagrada numa constituição eivada de idealismo, mas substancialmente elitista e demofóbica.
De fato, da perspectiva histórica cultural, o período é, em larga medida, um produto da imaginação dos intelectuais esquerdistas da geração 1960. A Nova República pode ser compreendida como uma “comunidade imaginada” (no sentido de Benedict Anderson), cuja fundação mitopoética foi toda elaborada em oposição ao período anterior, o regime militar, o sombrio “Antigo Regime” identificado como grande obstáculo aos novos tempos que, enfim, chegavam com sua esplendorosa luminosidade.
Intelligentsia esquerdistaO efeito social desse predomínio aristocrático da intelligentsia esquerdista foi que, durante muito tempo, os valores tradicionais, os gostos e a sensibilidade do povo brasileiro, majoritariamente conservador, não dispunham de representação mínima nas instâncias formadoras da opinião pública. Bem ao contrário, silenciados e estigmatizados por uma elite cultural, econômica e política ultraprogressista e revolucionária, os integrantes das camadas médias e populares, alheios às radicais utopias da esquerda, passaram a testemunhar, igualmente bestializados, a demonização de alguns de seus hábitos mais comezinhos e — supunha-se — até então inocentes.
Tudo se passou como se os bem-pensantes progressistas, de forma mais ou menos consciente, tivessem manifestado o desejo de se vingar não apenas dos militares e da direita civil, mas também de um povo que, mantendo-se alheio e algo indiferente aos eventos dos assim chamados “anos de chumbo”, os abandonou no auge de seus sonhos revolucionários. Assim, quando veio a abertura política, aqueles que “lutaram contra a ditadura” (segundo a mitologia heroica e autobeatificante por eles recontada) viram a chance de extravasar uma revolta encruada e tomar o país para si. “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia” — eis o verso de Chico Buarque que simboliza bem o grito reprimido, carregado de um ressentimento lírico, de uma gente que, tendo enfim a oportunidade, não cessou desde então de lançá-lo, em forma de cobrança, às gerações seguintes.
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Flávio Gordon, colunista - Revista Oeste