Acusar a polícia de idiotice não trará de volta compradores de nossa carne no exterior
Na sexta-feira, o Brasil recebeu a chocante notícia de que muitos
frigoríficos nacionais – entre os quais, os maiores – protagonizavam um
escândalo que atingia ao mesmo tempo o bolso e o estômago dos
brasileiros: a maquiagem de carne podre com ácido ascórbico e a mistura
de papelão e outros ingredientes indesejados nos embutidos nossos de
cada dia. O País é o maior exportador mundial de carne. Et pour cause,
a venda de alimentos contaminados com o beneplácito da fiscalização
federal, além de nociva à saúde do consumidor interno, prejudica as
receitas de exportação num momento de penúria causada pela maior crise
econômica da História.
Numa reação inédita, o presidente Michel Temer, que até hoje
não se dignou a visitar os presídios conflagrados no início do ano em
Manaus, Boa Vista e Nísia Floresta, na Grande Natal, chefiou uma série
de reuniões para anunciar medidas como compor uma força-tarefa para
reforçar a fiscalização da pecuária. [Temer agiu corretamente ao não visita presídios e optar por priorizar a defesa dos interesses comerciais do Brasil, especialmente a exportação, que passaram a correr grande risco em função da malfadada 'operação carne fraca'; inadmissível seria Temer perder tempo indo visitar presídios.
Presídio é assunto da Justiça e da Polícia.]
Além disso, o episódio provocou uma
reação indignada do ministro da Agricultura, Blairo Maggi, que, em
defesa de seus parceiros da agroindústria, condenou a investigação
policial. Numa entrevista em que esquartejou a pobre língua portuguesa
com uma sequência atroz de barbarismos inaceitáveis num aluno de grupo
escolar, reclamou da ausência dos investigados na avaliação técnica da
investigação. E classificou de “idiotice” insana a interpretação do uso
de papelão na carne, atribuindo-o à embalagem e esquecendo-se de
informar desde quando frigoríficos exportadores embalam carne com o dito
material.
O presidente Michel Temer defendeu a Polícia Federal (PF),
que, num desvario dos desesperados ante os efeitos maléficos da
divulgação da investigação, foi comparada aos responsáveis por um dos
maiores erros policiais, com cumplicidade dos meios de comunicação, da
História: o caso da Escola Base, em São Paulo. Nenhum dos acusadores,
contudo, se lembrou de apontar uma causa lógica para tamanha
irresponsabilidade da PF.
Nervoso e confuso, Temer adotou a desculpa usada pelos
pecuaristas, que também participaram da reunião dele com a imprensa e 40
diplomatas das embaixadas de 27 países compradores: das 4.837 unidades
sujeitas à inspeção federal, apenas 21 foram acusadas de
irregularidades. “E dessas 21, seis exportaram nos últimos 60 dias.”
Para provar sua convicção, o presidente convidou os presentes no
encontro para comer carne de boi, postando em seu Twitter: “Todas as
carnes servidas ao presidente Temer e embaixadores na churrascaria Steak
Bull eram de origem brasileira”. Mas a Coluna do Estadão foi informada pelo gerente, Rodrigo Carvalho, que tinham corte europeu, uruguaio e australiano. Um papelão!
Vexames do tipo poderiam ser evitados se o governo tratasse o
escândalo com a transparência sugerida pelo ministro Maggi, “rei da
soja”, citado nas delações premiadas da Odebrecht e tido como
responsável por metade da devastação ambiental brasileira entre 2003 e
2004, segundo o Greenpeace. Não será com truques de malandro campainha
(que se anuncia antes de assaltar) que os governantes e pecuaristas
brasileiros manterão seus mercados, invejados por outros grandes e
poderosos produtores de carne. De Genebra, Jamil Chade relatou que, se o
Brasil não retirar essas companhias da lista de exportação, a União
Europeia vai bloquear a entrada dos produtos. E China, Hong Kong e Chile
informaram oficialmente ao Ministério da Agricultura a suspensão de
importação de nossa carne.
Não é desprezível a afirmação do delegado Maurício Moscardi
Filho de que a propina que a PF diz ter sido paga a fiscais irrigava
contas do PMDB e do PP. Esses partidos – antes aliados de Dilma e agora,
de Temer – ocupam a pasta há 18 anos. Maggi trocou o PR pelo PP para
assumi-la na atual gestão. E esse não é o primeiro dano provocado pelo
loteamento do governo federal.
Não faltará quem lembre que se compram fiscais nestes
trágicos trópicos desde o desembarque de Cabral em Porto Seguro. Já há
também quem lembre que corrupção na política não é uma exclusividade
brasileira, uma jabuticaba, como se usa correntemente. Pois sim! E não
disse Otto Eduard Leopold von Bismarck-Schönhausen, duque de Lauenburg,
unificador da Alemanha sob o punho da Prússia, morto antes da chegada do
século 20, que “os cidadãos não dormiriam tranquilos se soubessem como
são feitas as salsichas e as leis”? Pois então…
A sábia sentença vale como nunca no Brasil destes nossos
idos de março, nos quais não faltam também trágicos avisos, como o que o
general romano Júlio César ouviu, nas ruas de sua Roma, de um vidente
anônimo sobre os punhais que o esperavam na escadaria do Senado. A não
ser que a PF tenha cometido barbaridade similar à da Escola Base, em que
um casal de educadores perdeu tudo pela acusação cruel de uma criança
que viralizou na imprensa, a onda de lodo que se abateu sobre toda a
República não terá poupado a galinha de ovos de ouro da economia
nacional: nossa produtiva, próspera e moderna agroindústria. Se a
polícia exagerou, o caso merece punição pesada.
Mas se a polícia contou, como parece lógico, a verdade, não
dá para cair na lorota do empreiteiro Emílio Odebrecht, que desonrou a
memória do pai, Norberto, que construiu e deu nome à maior empreiteira
do Brasil, pretendendo conquistar o perdão para o filho, Marcelo, e seus
comparsas. E, para tanto, adotou o mantra sórdido de Tavares, o canalha
cínico encarnado por Chico Anysio: “Eu sou, mas quem não é?”. Ou seja,
“não foi?”. A Operação Carne Fraca, que deveria chamar-se Carne Podre ou
Carniça, precisa abrir a caixa-preta onde se guardam mistérios como o
milagre da multiplicação das picanhas, em que uma família de pequenos
açougueiros de Anápolis hoje controla a empresa campeã na produção de
proteína animal neste mundão todo.
Fonte: Estadão - Blog do José Nêumanne