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sexta-feira, 23 de setembro de 2022

A Revolução Permanente e o ativismo judicial - Revista Oeste

 Roberto Motta

Ao contrário do que pensa e prega essa elite, a noção de direitos humanos não começou na Revolução Francesa, apresentada como o ápice do desenvolvimento político e moral da humanidade 

Uma elite urbana de alta renda controla hoje o poder governamental, o poder corporativo e o discurso público na maior parte do planeta. Essa elite vive embriagada pelas piores partes do radicalismo da Revolução Francesa de 1789, e esqueceu, ou nunca conheceu, a Revolução Gloriosa de 1688 e a Revolução Americana de 1766.

Quadro que retrata a Revolução Gloriosa (1688), de Jan Hoynck van Papendrecht  | Foto: Wikimedia Commons

 Quadro que retrata a Revolução Gloriosa (1688), de Jan Hoynck van Papendrecht | Foto: Wikimedia Commons

Ao contrário do que pensa e prega essa elite, a noção de direitos humanos não começou na Revolução Francesa. As origens do conceito de direitos civis se perdem na história, e já estavam claramente presentes na tradição judaico-cristã.

A Magna Carta, apresentada pelos barões feudais ingleses ao rei João Sem Terra, em 1210, foi, na era moderna, provavelmente o primeiro documento a impor limites ao poder dos soberanos.

Os direitos dos cidadãos ingleses foram depois estabelecidos na Declaração de Direitos (Bill of Rights) escrita em 1689, durante a Revolução Gloriosa, que consolidou o poder do Parlamento. O documento, baseado nas ideias do filósofo John Locke, estabeleceu direitos civis básicos, confirmou os limites ao poder monárquico, garantiu eleições livres e liberdade de expressão.

Isso aconteceu em 1689 — exatos cem anos antes da Revolução Francesa. A Declaração de Direitos inglesa foi o modelo usado para redigir a Declaração de Direitos dos Estados Unidos de 1789 e a Declaração de Direitos Humanos da ONU de 1948. Mas o mundo parece que esqueceu.

A maioria de nós não aprendeu isso na escola. Nas aulas de história o foco é colocado, invariavelmente, na Revolução Francesa, apresentada como o ápice, ou a origem, do desenvolvimento filosófico, político e moral da humanidade. Na verdade, como disse a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, a revolução da França se pareceu mais com “uma sequência de expurgos, assassinatos em massa e guerra, tudo feito em nome de ideias abstratas formuladas por intelectuais vaidosos”.

Em vez de um evento único e homogêneo, a Revolução Francesa foi, na verdade, uma série de eventos nos quais grupos rivais — principalmente liberais e radicais — disputaram o controle do Estado francês, com diferentes vencedores em momentos diferentes, e onde os perdedores acabaram exilados ou até presos e mortos. A Revolução Francesa cortou a cabeça de milhares dos seus próprios criadores, e terminou na ditadura militar do general e imperador Napoleão Bonaparte — e, depois, vexame dos vexames, na restauração da monarquia.

Esses são os fatos. Apesar deles, ainda reina hegemônico o pensamento dos radicais revolucionários franceses, transfigurado pelo marxismo. Esse pensamento estabelece a primazia de uma suposta “igualdade” sobre todos os outros direitos, inclusive os direitos à vida, à liberdade e à propriedade. Igualdade supostae entre aspas —, porque é apenas uma construção teórica revolucionária, ausente, na prática, de todos os projetos socialistas e comunistas da história, sem uma única exceção.

Há quem diga que são duas as ideias essenciais da Revolução Francesa, inspiradoras dos modernos projetos políticos totalitários. A primeira é o conceito de igualdade absoluta entre indivíduos, a ser imposta a ferro e fogo (e a guilhotina, fuzilamento e campos de concentração, se necessário).

A segunda herança da Revolução Francesa seria o estabelecimento do papel do Estado como regulador racional do comportamento, do pensamento e do discurso público. A vida privada desaparece dentro do Estado. É preciso lembrar que os revolucionários franceses mudaram os nomes dos meses e dos dias da semana, e estabeleceram até o Culto do Ser Supremo, uma nova religião estatal que deveria substituir o Cristianismo. Maximillien Robespierre, o líder dos jacobinos, a facção mais radical da revolução, foi nomeado como Sumo Sacerdote do culto. Um mês depois ele era guilhotinado.

Execução de Robespierre e seus apoiadores, em 1794 - 
 Foto: Domínio Público

Uma série de marcos históricos conecta a Revolução Francesa ao mundo moderno. O primeiro pode ser a Comuna” de Paris de 1871, quando, logo após a derrota da França na guerra contra a Prússia, um governo socialista radical tomou o controle da cidade e governou por três meses. Foi mais uma revolução para empilhar cadáveres e jogar cidadãos contra cidadãos. A Guarda Nacional enfrentou o Exército francês nas ruas da cidade, e a experiência serviu de inspiração para radicais de todo o mundo — incluindo um certo Vladimir Lenin.

Lenin lideraria a Revolução Russa de 1917. Em 1948 seria a vez de Mao liderar a Revolução Chinesa. Duas das maiores nações da Terra caíam sob regimes comunistas. Mas o comunismo, na prática, se revelou bem diferente do que pregara Marx. Em 1956, as denúncias do premiê soviético Nikita Kruschev sobre as atrocidades cometidas por Stalin desnudaram o caráter totalitário e criminoso do regime soviético, chocando militantes comunistas em todo o planeta.

Desse choque resultaria uma mudança de estratégia: abandona-se o projeto de revolução pelas armas em favor da ideia da revolução cultural, nascida do trabalho de Antônio Gramsci e promovida pela Escola de Frankfurt. Nas décadas seguintes, outros ativistas e ideólogos ampliam e disseminam a doutrina que ficaria conhecida como Gamscismo.

Saul Alinksy, nos Estados Unidos, ensinou aos militantes de esquerda suas Regras Para Radicais, explicando que “a questão nunca é a questão; a questão é sempre o poder”. Luigi Ferrajoli, na Itália, criou o garantismo penal, doutrina de desconstrução da justiça criminal através da dialética marxista que apresenta o criminoso como vítima da opressão capitalista que não merece que não pode — ser punido. Paulo Freire, no Brasil, inverte a lógica do sistema de ensino com a sua pedagogia do oprimido, que abandona o aprendizado em nome da mobilização para a revolução.

Consolida-se uma progressiva hegemonia da esquerda em áreas-chave da sociedade e do Estado, como a literatura, o teatro, as artes plásticas, a música, o cinema, a TV, as escolas públicas e privadas, as universidades e a justiça, especialmente a justiça criminal. Quase todo o discurso público passa a ser produzido ou controlado por um ecossistema político-midiático-cultural-acadêmico de orientação marxista.

Como explicou Olavo de Carvalho (a citação não é literal): a dominação é tão completa que se dissolve no ar e passa a ser imperceptível. É o novo normal: é o marxismo estrutural, parafraseando o grande Gustavo Maultasch.

O marxismo aplicado às questões étnicas virou a teoria crítica da raça“.  
O marxismo aplicado ao Direito virou o garantismo penal de Ferrajoli.  
O marxismo aplicado à sexualidade virou a ideologia de gênero. 
O marxismo aplicado à mídia virou o “combate à desinformação”. 
O marxismo aplicado à religião virou a teologia da libertação. 
O marxismo aplicado à educação virou a “pedagogia do oprimido” de Paulo Freire.
 
É assim que estávamos no início do século 21 vivendo sob uma hegemonia marxista estrutural, total e já quase imperceptível —, quando três fenômenos quase simultâneos começaram a ocorrer. 
O primeiro foi tecnológico: a difusão da internet e o surgimento das redes sociais, catapultado pela popularização dos telefones celulares. 
De repente, todo mundo tinha opinião e todo mundo divulgava essa opinião para o restante do mundo
Uma tia do zap do interior de Goiás podia ter mais leitores em um post do que o alcance do editorial de um grande jornal.
 
O segundo fenômeno foi social: a retomada das ruas brasileiras pela população de bem, pelo cidadão comum, por famílias, idosos e crianças. Enquanto no restante da América Latina as ruas são vermelhas, dominadas por movimentos de extrema esquerda, as ruas no Brasil são verde-amarelas. 
Enquanto no Chile os manifestantes queimam igrejas e ônibus, no Brasil — desde 2014 — eles cantam o Hino Nacional, enrolam-se na bandeira e não jogam lixo no chão.
povo na rua - Sete de Setembro
Vista aérea da Avenida Paulista, em São Paulo, 
no 7 de Setembro de 2022 | Foto: ChoiceImages/Revista Oeste
O terceiro fenômeno, entrelaçado com esses dois, foi o renascimento da direita no Brasil. 
Esse renascimento começou timidamente, com a reorganização do liberalismo nacional, impulsionada por entidades como o Instituto Mises Brasil, o Instituto Liberal, o Instituto Millenium e o Instituto de Formação de Líderes, e editoras como LVM, Avis Rara e Vide Editorial. 
Em seguida, foi a vez de o conservadorismo brasileiro ressurgir com a criação de inúmeros grupos, como o Movimento Brasil Conservador, o Instituto Brasileiro Conservador e mais recentemente o Instituto Conserva Rio, e editoras como Opção C, Editora E.D.A e BKCC, entre muitas outras.

Liberais e conservadores perderam a vergonha de assumir sua posição política. A direita brasileira saiu do armário. Esses três fenômenos, juntos, tiveram várias consequências. A primeira foi um inédito desafio ao poder vigente, que perdeu o monopólio do discurso e da comunicação de massa

É difícil imaginar essa operação acontecendo em um mundo onde o acesso à informação é controlado e o sentimento da sociedade não pode ser percebido instantaneamente

A Operação Lava Jato foi outra consequência. É difícil imaginar essa operação acontecendo em um mundo onde o acesso à informação é controlado e o sentimento da sociedade não pode ser percebido instantaneamente. 
Isso, inclusive, explica o que foi chamado por alguns críticos de “espetacularização” das investigações — na verdade o que se viu, talvez pela primeira vez na história brasileira, foi uma preocupação das autoridades em dar satisfações à sociedade sobre o seu trabalho. Nada mais natural e republicano do que tentar corresponder aos anseios dos cidadãos.

O impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e a prisão e as condenações de Luiz Inácio foram consequências diretas da mobilização da sociedade, organizada nas redes e expressa em manifestações de rua cada vez maiores, coordenadas pelas redes sociais e pelo WhatsApp. Outra consequência foi a popularização da política: hoje é mais provável que o brasileiro saiba a composição do STF do que a escalação da Seleção de futebol — um fenômeno inimaginável há poucos anos.

Por último, a consequência mais impressionante e de maior impacto: a decadência, em praça pública, da grande mídia, que entrou em uma espiral mortal de perda de credibilidade, audiência e receita. O lugar vazio foi preenchido pela ascensão de uma mídia “alternativa”, liderada tanto por jornalistas de renome quanto por cidadãos comuns, que descobriram em si o interesse e a capacidade para o trabalho jornalístico.

Esses cidadãos comuns — chamados pejorativamente de blogueiros — somos todos nós. Pela primeira vez na história podemos nos comunicar diretamente, sem a mediação obrigatória de veículos de imprensa ou de autoridades acadêmicas. Tudo isso gerou uma forte reação do sistema — ou establishment, mecanismo, estamento burocrático ou globalistas —, chame como quiser. Essa reação tomou diversas formas.

A censura foi ressuscitada, agora de banho tomado, fofa e perfumada, sob os nomes politicamente corretos de “checagem de fatos” e “combate à desinformação”. Qualquer publicação que não tenha sido feita por um veículo da grande mídiapor uma mídia de esquerda, para ser mais preciso corre o risco de ser classificada como “fake news”.

Políticos de oposição mandaram os escrúpulos às favas e mergulharam na exploração da pandemia para ganhos político-eleitorais. Bom senso e responsabilidade cederam lugar a uma busca desesperada por “protagonismo vacinal”, e pelo primeiro lugar em uma competição nacional para descobrir quem cometeria a violação mais grave dos direitos civis da população: transportes públicos foram cancelados, portas de lojas foram soldadas, pessoas foram presas e agredidas apenas por andar na rua, frequentar praças ou, no Rio de Janeiro — isso eu mesmo testemunhei — pelo crime de dar um mergulho no mar.

Um inédito “consórcio de veículos de imprensa” foi formado para garantir o monopólio midiático em torno de uma mesma narrativa de terror sanitário. 
Ativistas políticos disfarçados de jornalistas — filhos do casamento ideológico de Paulo Freire com Stalin — iniciaram uma guerra pela disseminação de verdades “científicas” que dispensavam a ciência e demonizavam qualquer contraditório. Sou pela vidavirou o grito de guerra dos jacobinos mascarados.
A mistura tóxica de ideologia, desespero eleitoral e corrupção intelectual levou ao “fique em casa” totalitário, repaginado agora, em 2022, como “fique em casa, se puder”. 
Os ideólogos que operam dentro do sistema de justiça criminal usaram a oportunidade para soltar mais de 60 mil criminosos que estavam presos em todo o país, para preservá-los da pandemia — e ainda conseguiram uma decisão do Supremo Tribunal Federal determinando a suspensão de operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro — supostamente para não atrapalhar as medidas sanitárias. A suspensão vigora até hoje.

E o absurdo maior de todos, para o qual, um dia, haverá de ser instalado um tribunal especial de crimes contra a humanidade: o fechamento das escolas. Um ato insensato, anticientífico e ideológico que significou, para várias gerações de crianças e adolescentes, a condenação a uma vida de ignorância, pobreza, vício, crime e dependência do Estado.

Ao mesmo tempo em que tudo isso ocorria, o sistema colocava em ação outra estratégia: o ativismo judicial. Não é necessário detalhar a trajetória recente do ativismo judicial no Brasil
Isso já foi explicado em livros espetaculares, como:
-   O Inquérito do Fim do MundoSereis Como Deuses: o STF e a Subversão da Justiça, Suprema Desordem: Juristocracia e Estado de Exceção no Brasil e Guerra à Polícia: Reflexões Sobre a ADPF 635, todos da excelente Editora E.D.A.

Como alertou o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux em seu discurso de posse:

“…alguns grupos de poder que não desejam arcar com as consequências de suas próprias decisões acabam por permitir a transferência voluntária e prematura de conflitos de natureza política para o Poder Judiciário, instando os juízes a plasmarem provimentos judiciais sobre temas que demandam debate em outras arenas.

Essa prática tem exposto o Poder Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, a um protagonismo deletério, corroendo a credibilidade dos tribunais quando decidem questões permeadas por desacordos morais que deveriam ter sido decididas no Parlamento”.

Os tribunais passaram a receber demandas que não envolvem interpretação jurídica, mas apenas decisões políticas. Decisões políticas são o domínio de políticos; o domínio dos tribunais é a aplicação das leis em nome da justiça. [domínio que não inclui, nem fundamenta, a intromissão do Poder Judiciário nos demais poderes, incluindo pretensões legislativa via 'interpretações criativas'.]

O ativismo judicial é uma violação da autonomia e da independência dos Poderes republicanos
Ele é parte da reação de um sistema acostumado durante muito tempo ao poder quase absoluto. 
Esse sistema se recusa a aceitar uma forma de expressão e organização política que dispense a mediação da diminuta elite urbana.

Uma elite que dá mais valor às opiniões de alguns servidores do Judiciário do que aos votos de 58 milhões de pessoas e que se embriaga de radicalismo chique, esquecendo-se de um detalhe importante: depois de toda a embriaguez, vem a ressaca.

Leia também “Uma coleção de apetites”

Roberto Motta, colunista - Revista Oeste

domingo, 29 de setembro de 2019

As leis de Beccaria - Nas entrelinhas

Estamos assistindo a uma grande colisão entre a alta magistratura brasileira, representada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato


O milanês Cesare Beccaria, marquês de Beccaria, é considerado o pai do moderno direito penal. Educado por jesuítas, estudou literatura e matemática em Paris, em meados do século XVIII, e sofreu a influência dos pensadores enciclopedistas, principalmente Voltaire, Rosseau e Montesquieu. De volta a Paris, fundou uma sociedade literária de caráter iluminista e passou a escrever para o jornal Il Café, que circulou nos anos de 1764 e 1765. Na época, vigorava a tese de que as penas constituíam uma espécie de vingança coletiva, o que levava a aplicação de punições com consequências piores do que os males produzidos: torturas, penas de morte, prisões desumanas, banimentos, na maioria das vezes, com base em acusações secretas.

Beccaria se insurgiu contra isso e escreveu uma obra seminal, que todo estudante de Direito conhece: Dei Delliti e dele Pene (Dos delitos e das penas), fruto de suas discussões com os amigos, entre os quais os irmãos Pietro e Alessandro Verri. Para evitar perseguições, o livro foi impresso em Livorno, em 1764, anonimamente, com o cuidado de usar expressões vagas e imprecisas sobre assuntos que contrariavam magistrados e clérigos.

O tratado Dos Delitos e das Penas invoca a razão e o sentimento. Até os dias de hoje, é um libelo contra os julgamentos secretos, o juramento imposto aos acusados, a tortura, a confiscação, as penas infamantes, a desigualdade ante o castigo, a atrocidade dos suplícios. Separou a justiça divina e a justiça humana, os pecados e os delitos, condenou o direito de vingança e tomou por base a utilidade social para estabelecer o direito de punir. Classificou como inútil a pena de morte, assim como defendeu a separação do poder judiciário e do poder legislativo.

Aclamado em Paris, sobretudo pelos filósofos franceses, Beccaria foi acusado de heresia e sofreu forte perseguição em Milão. Entretanto, sua influência se espalhou pela Europa. A imperatriz Maria Teresa da Áustria, aboliu a tortura em 1776. Voltaire classificou seu livro como um verdadeiro código de humanidade. Catarina II ordenou a inclusão dos conceitos do livro no Código Criminal Russo de 1776. Em 1786, Leopoldo de Toscana adotou as reformas defendidas por Beccaria. Na Prússia, Frederico, o Grande, abraçou muitos de seus princípios.

O julgamento
No momento, estamos assistindo a uma grande colisão entre a alta magistratura brasileira, representada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato, cujos métodos heterodoxos de atuação foram desnudados na troca de mensagens entre eles e o ex-juiz federal Sérgio Moro, atual ministro da Justiça, e pela espantosa entrevista do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot à revista Veja e ao jornal Estadão, nas quais revelou que planejou matar o ministro do STF Gilmar Mendes. É uma crise sem precedentes, na qual a opinião pública a favor da Operação Lava-Jato se insurge contra decisões do Supremo amparadas pelo amplo direito de defesa, mas que não eliminam a materialidade dos crimes praticados pelos condenados.


Entre as questões mais polêmicas, o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do habeas corpus do ex-gerente da Petrobras Márcio de Almeida, que pede anulação de sua condenação porque sua defesa não pôde fazer as alegações finais depois das dos réus que fizeram delação premiada. O Supremo interrompeu o julgamento quando estava 6 a 3 a favor do habeas corpus, mas ainda não votaram o presidente da Corte, Dias Toffoli, e o ministro Marco Aurélio.

O julgamento será retomado na quarta-feira, sob forte tensão, porque é preciso definir o alcance da decisão, que pode anular um total de até 32 sentenças, beneficiando 134 réus. Toffoli anunciou que votará a favor do habeas corpus, mas pretende modular o alcance da decisão. É nesse contexto que os princípios de Beccaria nos ajudam a compreender o que está acontecendo. Na essência, quatro são atualíssimos:
1. Inevitabilidade da punição: objetivo de convencer o ofensor em potencial que a punição sempre seguiria um ato criminal, sendo assim, um impeditivo. O perdão aos crimes equivale ao estímulo da impunidade.
2. Consistência: garante que um mesmo crime sempre será seguido por punição de mesma natureza e gravidade. Vetava, portanto, a arbitrariedade dos juízes.
3. Proporcionalidade: a gravidade das punições deveria refletir a gravidade da própria ofensa e dano causados. Assim, a medida do crime está no prejuízo causado à sociedade: todas as penas que ultrapassem a necessidade de proteger o vínculo social são injustas por natureza.
4. Celeridade: a rapidez da punição é essencial frente ao intuito de impedimento a que a própria punição se propunha a realizar. O legislador deveria fixar um prazo razoável para a defesa e a produção de provas sem prejudicar o esclarecimento do delito.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - Correio Braziliense

 

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Se nossa renda por habitante crescer 1,5% este ano e essa taxa se mantiver, levaremos 47 anos para dobrá-la e alcançar o nível que Portugal já hoje desfruta

Duvido que algum país tenha um número de irresponsáveis por metro quadrado comparável ao nosso. Baseando o cálculo só no circuito institucional sediado em Brasília, excluindo o resto do País, nossa vantagem sobre o resto do mundo nesse quesito deve ser acachapante.  Para bem aquilatarmos a extensão da coisa, tanto faz começarmos pelo lado grotesco – lagostas, vinhos de qualidade, auxílio-paletó, auxílio-moradia – ou pelo lado teratológico, quero dizer, pelo contingente de 26 milhões de pessoas sem trabalho, por nosso sistema educacional, horroroso nos três níveis, pela corrupção de proporções amazônicas, pela taxa de homicídios subindo de patamar e agora, para nosso infinito espanto, pelo rompimento de barragens causando danos irreparáveis a algumas de nossas mais importantes bacias hídricas. 

Culpa de Deus? Não, culpa da ignorância técnica, da falta de fiscalização e do desprezo pela natureza e pela vida das coletividades que vivem nas proximidades. A verdade é uma só: a desigualdade social e o desmazelo generalizado estão nos tornando um país estúpido, violento e cruel.  Se nossa renda por habitante crescer 1,5% este ano (o que não é trivial) e essa taxa se mantiver por um longo período, levaremos 47 anos para dobrá-la e alcançar o nível que Portugal já hoje desfruta. Repito: 47 anos. Essa projeção macabra deveria ser suficiente para mudar as atitudes e padrões éticos dos donos do poder. Deveria ser uma espada de Dâmocles obrigando os três Poderes a se levarem mais a sério e a tratar com respeito os 207 milhões de habitantes deste país “abençoado por natureza”. O que vemos acontecer diuturnamente em Brasília dista anos-luz desse mandamento elementar.

Só consigo compreender a lerdeza (pirraça, fisiologismo, falta de vergonha…) com que a reforma da Previdência é tratada por grande parcela do Congresso a partir da ignorância de muitos a respeito do futuro que nos aguarda. A referida parcela simplesmente não compreende que essa reforma é apenas o primeiro passo numa dura série de mudanças que teremos que fazer, de um jeito ou de outro. De reformas muito mais drásticas do que essa que temos sobre a mesa poderá depender, quem sabe, até nossa sobrevivência como entidade nacional integrada.

Não me deterei nos prós e contras do governo Bolsonaro, assunto martelado diariamente na imprensa e nas redes sociais. Não sei se ele adotará ou não um estilo consentâneo com a magistratura a que foi alçado e com a gravidade da crise em que os governos anteriores nos meteram. Quero apenas lembrar que a eleição já passou, que os palanques já foram ou deveriam ter sido desmontados e que a presente hora tem de ser de distensão e pacificação, não de mais acirramento.

A História do Brasil não é o oito ou oitenta que tantos se comprazem em trombetear. Erramos muito, mas também acertamos bastante. Tivemos muito azar em algumas ocasiões, mas outras houve em que Deus deu realmente a impressão de ser brasileiro. Veja-se a preservação da integridade territorial, que nos proporcionou esse que talvez seja o maior dos nossos ativos: nossa dimensão continental. É certo que, em nosso caso, a unidade não foi suficiente para alicerçar um mercado interno robusto; seria demais esperar isso no nível de pobreza prevalecente quando nos livramos do regime colonial. De 1930 a 1980, nossa economia cresceu vigorosamente. Naquele período poderíamos ter constituído um mercado interno respeitável e não o fizemos, agora, sim, por uma imperdoável sequência de erros, a começar pelo modelo de crescimento concentrado no Estado, trampolim para a obscena consolidação de uma casta patrimonialista no topo da pirâmide política, reforçada pela trincheira geográfica que Brasília passou a proporcionar-lhe.

Parece-me, pois, que o alfa e o ômega da irresponsabilidade política brasileira é essa incapacidade infantil de perceber o inferno a que inexoravelmente chegaremos se reformas drásticas não forem efetivadas. Um ponto de partida conveniente para quem tiver ânimo e coragem para abrir os olhos é relembrar o que aconteceu nas três últimas décadas do século 19 nos três casos clássicos de “industrialização tardia” – ou seja, na Alemanha, no Japão e nos Estados Unidos. Firmar a unidade territorial e construir um poder central digno de respeito foram a condição sine qua non para constituir o mercado interno, base do crescimento industrial acelerado que esses três países conheceram. A Alemanha, além de uma reforma administrativa admirável, iniciada no começo do século 19, levou a cabo a unificação em 1870. Sob a égide da Prússia e a liderança de Bismarck, os 40 principados então existentes se uniram no que viria a ser uma formidável potência industrial. No Japão, a restauração da dinastia Meiji levou ao poder uma nova elite que rapidamente quebrou o sistema feudal, desarmou a corporação dos samurais, padronizou o sistema educacional em nível nacional e abriu rapidamente o país para o exterior, em busca de tecnologia. Não menos impressionante, nos Estados Unidos a drástica reorientação do sistema educacional no sentido tecnológico, por meio dos land-grant colleges, e a sangrentíssima guerra de 1861-1865 contra o sul escravocrata fincaram os pilares do espetacular crescimento econômico na quarta parte do século.

No Brasil, a dificuldade é escolher qual o melhor exemplo de infantilidade e irresponsabilidade. Minha inclinação é a organização partidária. A proliferação desabrida não seria tão grave se o resultado dela fosse apenas nominal, mas não é o caso: analisada como um número de partidos efetivos, nossa estrutura partidária é, nada mais e nada menos, a mais fragmentada do planeta.
Vinte e seis milhões de pessoas sem trabalho ficam sem saber se é para rir ou para chorar.

Bolívar Laumonier - O Estado de S. Paulo


quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

A lição do barão Anton von Magnus



Uma diplomacia que se preza age sempre pensando no dia seguinte; Maduro está frito, e depois?


O barão Anton von Magnus era o embaixador da Prússia no México em 1867. As tropas do presidente Benito Juárez haviam aprisionado e condenado à morte o príncipe austríaco Maximiliano de Habsburgo, que se intitulara Imperador do México. Todo mundo pedia pela vida do monarca deposto, do papa aos reis da Europa. O barão era o depositário de todas as esperanças de uma negociação com Juárez, reuniu-se com ele e transmitiu os apelos. Para horror da mulher de um general, quando Von Magnus voltou à cidade onde Maximiliano estava preso, trouxe consigo um embalsamador.

O barão era um diplomata. Devia pensar na vida do príncipe, mas também cuidava do dia seguinte, o do embarque de seus restos mortais para Viena. (Se ele fez algo errado foi contratar um mau embalsamador, pois o corpo de Maximiliano chegou em péssimo estado.)  Nicolás Maduro come todo dia e engordou na Presidência, mas está frito. A questão venezuelana depende do dia seguinte. O oposicionista Juan Guaidó pediu aos chanceleres do Grupo de Lima que considerassem "todos os cenários internacionais possíveis". Depois, esclareceu que no seu "todos" não incluía a hipótese de uma intervenção militar estrangeira. Já o vice-presidente americano, Mike Pence, lembrou as palavras de Trump, para quem "todas as opções estão sobre a mesa". A intervenção militar seria uma aventura que faria o gosto do governo americano. Felizmente, o governo de Jair Bolsonaro dissociou-se dessa possibilidade, juntando-se ao Chile, Peru, México e à União Europeia.

Hoje, as coisas parecem claras: Maduro é um ditador e Guaidó encarna a democracia. Há 51 anos, quando o general Marcos Pérez Jiménez foi posto para fora e fugiu do país, os militares que o derrubaram permitiram a reconstrução democrática do país. Ele havia sido um déspota corrupto fantasiado de inimigo da política tradicional. Passou o tempo e o coronel paraquedista Hugo Chávez chegou ao poder depois de um golpe fracassado e de uma eleição vitoriosa. Ele foi outro inimigo do sistema partidário e reabilitou o déspota, dizendo que Pérez Jiménez foi o melhor presidente da Venezuela: "Odiavam-no porque era militar". O general viveu no desterro durante 35 anos e morreu em 2001 na sua luxuosa casa de Madri.

Por mais que os Estados Unidos deixem no ar o caminho da intervenção militar, é improvável que Trump esteja disposto a entrar nessa aventura sozinho. Para ele, o ideal seria repetir a experiência de 1965 na República Dominicana. Tropas dos Estados Unidos invadiram a capital e um mês depois a OEA (Organização dos Estados Americanos) chancelou a intervenção enviando uma força multinacional. No ano passado o general Hamilton Mourão acreditava que isso poderia acontecer, mas mudou de ideia. Hoje essa carta parece ter saído do baralho e para isso contribuiu o próprio Mourão.

Na crise venezuelana muita gente está se comportando como o barão Von Magnus. Por mais que Guaidó flerte com uma intervenção militar, representantes de seu governo já se encontraram com diplomatas chineses em Washington para tranquilizá-los em relação aos seus investimentos no país. Diplomatas russos reconheceram que têm conversado extraoficialmente com agentes de Guaidó. Só o tempo dirá que carga Maduro embarcou num jato russo que pousou em Caracas há três semanas.  Numa trapaça da história, no 60º aniversário da entrada de Fidel Castro em Havana, um pedaço da esquerda latino-americana associou-se a uma ditadura que fechou a fronteira para impedir que uma parte de sua população deixe o país e que entrem caminhões com alimentos e remédios para quem não os têm.

Elio Gaspari, jornalista - Folha de S. Paulo 

 

quinta-feira, 19 de abril de 2018

O abuso do 'politicamente correto' faz ver intenções que sequer foram pensadas

Marca é acusada de apologia ao nazismo em coleção de roupas

Lança Perfume lançou catálogo com elementos militares do Terceiro Reich

A marca de roupas femininas Lança Perfume, de Criciúma, no Sul do país, foi acusada por internautas de fazer referência ao nazismo em sua nova coleção, chamada "Uma noite em Berlim". Algumas peças da marca fazem alusão a uniformes militares e foram estampadas com a Cruz de Ferro, um símbolo que, embora não tenha sido criado pelos nazistas, acabou sendo apropriado pelo regime. A marca, por sua vez, nega que as roupas façam apologia ao nazismo. [existe diferença entre a CRUZ DE FERRO e a SUÁSTICA;

A CRUZ DE FERRO ainda hoje é utilizada no Exército alemão.

 - Pergunta: qual a razão da 'foice e do martelo' símbolos da opressão comunista, serem aceito sem restrições?

O comunismo matou mais de 100.000.000 de pessoas e ninguém condena seus símbolos.]

Após publicar as fotos do catálogo de inverno 2018 no Facebook, a marca recebeu uma enxurrada de comentários condenando a escolha das estampas. "Isso é péssimo, independentemente da explicação que queiram dar. Tirem essa coleção do catálogo! Tudo o que a gente NÃO precisa neste momento é alusão, ainda que imaginária, ao nazismo!", afirmou um internauta na área de comentários na página da marca.



Modelo com roupa da nova coleção da Lança Perfume: uso da cruz de ferro foi atrelado ao nazismo - Reprodução da internet

Em meio à polêmica diante da nova coleção, a Lança Perfume, inicialmente, respondeu aos comentários na afirmando que as peças são divididas em subtemas como Militarismo; Cenas de Berlim; Noir (universo de Marlene Dietrich, nos cabarés da República de Weimar nos anos 30) e Muro de Berlim.
"A Cruz de Ferro foi instituída pelo Rei da Prússia ainda no século XVIII para homenagear os soldados prussianos que se destacassem por bravura no campo de batalha. Já em 1871, quando a Alemanha foi formada, ela passou a ser adotada pelo exército alemão, e assim o é até hoje. Não é um elemento nazista, portanto", informou a marca em resposta a um dos comentários.

Apesar da explicação, a Cruz de Ferro foi a mais alta condecoração do Terceiro Reich. "A cruz, que originalmente foi o símbolo dos cavaleiros teutônicos, atualmente é usada nas forças armadas da Alemanha Em nota, a marca Lança Perfume afirmou que "repudia o nazismo e o fascismo em todas suas dimensões."

[A Cruz de Ferro (Eisernes Kreuz)  foi instituída pelo rei Frederico Guilherme III e concedida pela primeira vez em 10 de março de 1813 em Breslau.
Adolf Hitler nasceu em 20 de abril de 1889 e a Cruz de Ferro já existia há 76 anos.
A Cruz de Ferro com a suástica (hakenkreuz) é que foi proibida ao final da Segunda Guerra por ser considerado simbolo nazista.]  

O Globo

quinta-feira, 23 de março de 2017

Sempre foi assim mesmo. E daí?

Acusar a polícia de idiotice não trará de volta compradores de nossa carne no exterior

Na sexta-feira, o Brasil recebeu a chocante notícia de que muitos frigoríficos nacionais – entre os quais, os maiores protagonizavam um escândalo que atingia ao mesmo tempo o bolso e o estômago dos brasileiros: a maquiagem de carne podre com ácido ascórbico e a mistura de papelão e outros ingredientes indesejados nos embutidos nossos de cada dia. O País é o maior exportador mundial de carne. Et pour cause, a venda de alimentos contaminados com o beneplácito da fiscalização federal, além de nociva à saúde do consumidor interno, prejudica as receitas de exportação num momento de penúria causada pela maior crise econômica da História.

Numa reação inédita, o presidente Michel Temer, que até hoje não se dignou a visitar os presídios conflagrados no início do ano em Manaus, Boa Vista e Nísia Floresta, na Grande Natal, chefiou uma série de reuniões para anunciar medidas como compor uma força-tarefa para reforçar a fiscalização da pecuária. [Temer agiu corretamente ao não visita presídios e optar por priorizar a defesa dos interesses comerciais do Brasil, especialmente a exportação,  que passaram a correr grande risco em função da malfadada 'operação carne fraca'; inadmissível seria Temer perder tempo indo visitar presídios.
Presídio é assunto da Justiça e da Polícia.]  

Além disso, o episódio provocou uma reação indignada do ministro da Agricultura, Blairo Maggi, que, em defesa de seus parceiros da agroindústria, condenou a investigação policial. Numa entrevista em que esquartejou a pobre língua portuguesa com uma sequência atroz de barbarismos inaceitáveis num aluno de grupo escolar, reclamou da ausência dos investigados na avaliação técnica da investigação. E classificou de “idiotice” insana a interpretação do uso de papelão na carne, atribuindo-o à embalagem e esquecendo-se de informar desde quando frigoríficos exportadores embalam carne com o dito material.

O presidente Michel Temer defendeu a Polícia Federal (PF), que, num desvario dos desesperados ante os efeitos maléficos da divulgação da investigação, foi comparada aos responsáveis por um dos maiores erros policiais, com cumplicidade dos meios de comunicação, da História: o caso da Escola Base, em São Paulo. Nenhum dos acusadores, contudo, se lembrou de apontar uma causa lógica para tamanha irresponsabilidade da PF.

Nervoso e confuso, Temer adotou a desculpa usada pelos pecuaristas, que também participaram da reunião dele com a imprensa e 40 diplomatas das embaixadas de 27 países compradores: das 4.837 unidades sujeitas à inspeção federal, apenas 21 foram acusadas de irregularidades.E dessas 21, seis exportaram nos últimos 60 dias.” Para provar sua convicção, o presidente convidou os presentes no encontro para comer carne de boi, postando em seu Twitter: “Todas as carnes servidas ao presidente Temer e embaixadores na churrascaria Steak Bull eram de origem brasileira”. Mas a Coluna do Estadão foi informada pelo gerente, Rodrigo Carvalho, que tinham corte europeu, uruguaio e australiano. Um papelão!

Vexames do tipo poderiam ser evitados se o governo tratasse o escândalo com a transparência sugerida pelo ministro Maggi, “rei da soja”, citado nas delações premiadas da Odebrecht e tido como responsável por metade da devastação ambiental brasileira entre 2003 e 2004, segundo o Greenpeace. Não será com truques de malandro campainha (que se anuncia antes de assaltar) que os governantes e pecuaristas brasileiros manterão seus mercados, invejados por outros grandes e poderosos produtores de carne. De Genebra, Jamil Chade relatou que, se o Brasil não retirar essas companhias da lista de exportação, a União Europeia vai bloquear a entrada dos produtos. E China, Hong Kong e Chile informaram oficialmente ao Ministério da Agricultura a suspensão de importação de nossa carne.

Não é desprezível a afirmação do delegado Maurício Moscardi Filho de que a propina que a PF diz ter sido paga a fiscais irrigava contas do PMDB e do PP. Esses partidos – antes aliados de Dilma e agora, de Temer – ocupam a pasta há 18 anos. Maggi trocou o PR pelo PP para assumi-la na atual gestão. E esse não é o primeiro dano provocado pelo loteamento do governo federal.

Não faltará quem lembre que se compram fiscais nestes trágicos trópicos desde o desembarque de Cabral em Porto Seguro. Já há também quem lembre que corrupção na política não é uma exclusividade brasileira, uma jabuticaba, como se usa correntemente. Pois sim! E não disse Otto Eduard Leopold von Bismarck-Schönhausen, duque de Lauenburg, unificador da Alemanha sob o punho da Prússia, morto antes da chegada do século 20, que “os cidadãos não dormiriam tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis”? Pois então…

A sábia sentença vale como nunca no Brasil destes nossos idos de março, nos quais não faltam também trágicos avisos, como o que o general romano Júlio César ouviu, nas ruas de sua Roma, de um vidente anônimo sobre os punhais que o esperavam na escadaria do Senado. A não ser que a PF tenha cometido barbaridade similar à da Escola Base, em que um casal de educadores perdeu tudo pela acusação cruel de uma criança que viralizou na imprensa, a onda de lodo que se abateu sobre toda a República não terá poupado a galinha de ovos de ouro da economia nacional: nossa produtiva, próspera e moderna agroindústria. Se a polícia exagerou, o caso merece punição pesada.

Mas se a polícia contou, como parece lógico, a verdade, não dá para cair na lorota do empreiteiro Emílio Odebrecht, que desonrou a memória do pai, Norberto, que construiu e deu nome à maior empreiteira do Brasil, pretendendo conquistar o perdão para o filho, Marcelo, e seus comparsas. E, para tanto, adotou o mantra sórdido de Tavares, o canalha cínico encarnado por Chico Anysio: “Eu sou, mas quem não é?”. Ou seja, “não foi?”.  A Operação Carne Fraca, que deveria chamar-se Carne Podre ou Carniça, precisa abrir a caixa-preta onde se guardam mistérios como o milagre da multiplicação das picanhas, em que uma família de pequenos açougueiros de Anápolis hoje controla a empresa campeã na produção de proteína animal neste mundão todo.

Fonte: Estadão - Blog do José Nêumanne