A soltura do traficante André Oliveira Macedo, mais
conhecido por André do Rap, um dos chefes de uma facção criminosa, criou
um mal-estar dentro do Supremo Tribunal Federal (STF), e o ministro
Marco Aurélio Mello, que expediu o habeas corpus que permitiu a
libertação do criminoso, teceu duras críticas ao presidente da Corte,
Luiz Fux, que determinou a suspensão da decisão e o imediato retorno de
André do Rap à prisão. De acordo com Marco Aurélio, o presidente do STF
pratica “uma autofagia que só descredita o Supremo” e parece estar
“dando circo ao público, que quer vísceras”.
“Ele (Fux) adentrou o campo da hipocrisia, jogando para
a turba e dando circo a quem quer circo. A decisão é péssima e um
horror. É lamentável e gera uma insegurança enorme, além de acabar por
confirmar a máxima ‘cada cabeça, uma sentença’. Ele não é superior a
quem quer que seja. Superior é o colegiado. Essa autofagia leva ao
descrédito”, reclamou Marco Aurélio, em entrevista ao Correio.
O ministro ponderou que a atitude de Fux é ilegal e que
ele não teria esse poder. Segundo ele, a decisão do presidente do
Supremo não respeita a ordem jurídica, mas, sim, “vinga a hipocrisia e o
que atende mais a população no rigor da busca por justiça”. “Pelo
público, nós condenaríamos e estabeleceríamos pena de morte”, lamentou
Marco Aurélio, que ainda opinou que Fux não pode agir como um “censor”
dos ministros da Suprema Corte. “O presidente é um coordenador de
iguais”, ressaltou.
Marco Aurélio concedeu o habeas corpus em favor de
André do Rap, depois de a defesa do criminoso entrar com um recurso no
Supremo pedindo a soltura do traficante. Os advogados dele recorreram ao
artigo 316 do Código de Processo Penal, que diz que as prisões
preventivas precisam ser revisadas a cada 90 dias pela autoridade
judiciária responsável pelo processo. Ao fim
desse prazo, o juiz tem de decidir se renova o período de detenção ou se
liberta o preso. De acordo com a legislação, caso nenhuma ação seja
tomada, a prisão é considerada ilegal e o réu pode ser solto. A decisão
de Marco Aurélio de soltar um dos chefes de uma das maiores facções
criminosas do Brasil foi alvo de muitas críticas nas redes sociais e
ficou durante todo o fim de semana entre os termos mais comentados do
Twitter.
Preso em setembro de 2019, André do Rap foi condenado
em dois processos e responde por crimes como organização criminosa,
tráfico de drogas e associação ao tráfico. Somadas, as penas dele chegam
a 25 anos de reclusão. Os processos do criminoso, contudo, foram
julgados apenas até a segunda instância. Como o STF decidiu no ano
passado que é ilegal que um réu inicie o cumprimento da pena antes que
todos os recursos sejam esgotados, pela lei, o traficante não poderia
ficar preso sem uma sentença condenatória definitiva.
Dessa forma, enquanto os processos não transitavam em
julgado, André do Rap vinha sendo mantido preso de forma preventiva. A
última vez em que a sua detenção tinha sido renovada foi em 25 de junho.
Portanto, há mais de 90 dias. No entendimento de Marco Aurélio, o
traficante não poderia continuar preso devido a esse motivo. “Eu
apliquei a lei. O processo não tem capa, e sim, conteúdo. Eu não posso
partir para o subjetivismo. Eu não crio o critério de plantão, sou um
guarda da Constituição. Se há culpado, é aquele que não renovou a
custódia. Abomino o jeitinho brasileiro”, afirmou o magistrado.
Decisão provisória
A liminar que possibilitou a soltura de André do Rap
era provisória e valeria até o julgamento do habeas corpus na 1ª Turma
do Supremo, composta por Rosa Weber, Dias Tofolli, Luís Roberto Barroso,
Alexandre de Moraes e Marco Aurélio. Apesar disso, Luiz Fux determinou a
sua suspensão por se tratar de uma “medida excepcionalíssima”, que,
segundo ele, “é admissível quando demonstrado grave comprometimento à
ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”.
A reportagem tentou contato com o presidente do STF,
mas não obteve resposta. Na decisão que suspendeu o habeas corpus, Fux
atendeu a um pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) e defendeu
que o artigo 316 do Código de Processo Penal não deveria ser aplicado no
caso de André do Rap porque “sequer foi apreciado pelas instâncias
antecedentes”. Além disso, ele destacou que, desde a última prisão
preventiva decretada contra o traficante, “nenhum fato novo alterou,
relativizou ou afastou os motivos concretos que fundamentaram o decreto
de custódia cautelar”. Fux também alertou que, se a decisão de soltura
do criminoso fosse mantida, ela teria “o condão de violar gravemente a
ordem pública, à medida em que o paciente é apontado líder de
organização criminosa de tráfico transnacional de drogas”.
Foragido
No momento, André do Rap é considerado foragido. Apesar
de Marco Aurélio ter determinado no seu habeas corpus que o traficante
deveria cumprir prisão domiciliar e não poderia mudar de residência, o
criminoso não voltou para o endereço da casa no Guarujá (SP) informado à
Justiça. Depois de deixar a penitenciária de segurança máxima de
Presidente Venceslau II, no interior de São Paulo, na manhã de sábado, o
traficante seguiu de carro até Maringá (PR). Lá, ele teria pegado um
avião particular até o Paraguai. As informações foram publicadas pelo
portal UOL.
Nas redes sociais, o governador de São Paulo, João
Doria (PSDB), informou que a Polícia Civil do estado montou uma operação
para localizar e prender o criminoso. Ele reclamou da decisão de Marco
Aurélio, em especial porque foi a polícia de São Paulo que prendeu André
do Rap em 2019, depois de ele ter ficado quase cinco anos foragido. “O
ato foi um desrespeito ao trabalho da polícia de São Paulo e uma
condescendência inaceitável com criminosos. Determinei força-tarefa da
polícia de São Paulo para colocar esse bandido novamente atrás das
grades. Lugar de bandido é na cadeia”, escreveu.
Opiniões divididas sobre o caso
O argumento utilizado pelo ministro
Marco Aurélio para conceder o habeas corpus a André do Rap rendeu
críticas ao magistrado. Para o presidente do Instituto Não Aceito Corrupção,
Roberto Livianu, a decisão de Marco Aurélio não tem “nem razoabilidade e
nem bom senso”. “Essa decisão é absurda e desrespeitosa aos princípios
elementares do direito. Ele (André do Rap) já estava condenado. Essas
condenações foram confirmadas em segundo grau. Não é justo e
compreensível que a Justiça mande este sujeito para a rua”, opinou.
Por outro lado, o criminalista Conrado Gontijo, doutor
em direito penal pela Universidade de São Paulo (USP), disse que a
liminar de Marco Aurélio não tem nenhum indício de ilegalidade. Segundo
ele, os “errados” da história são as autoridades judiciais responsáveis
pelo processo de André do Rap, que não estenderam a prisão do criminoso,
e Luiz Fux, que desprezou o artigo 316 do Código de Processo Penal. “Na minha visão, a decisão do ministro Luiz Fux é
absolutamente ilegal. É fruto de um ativismo judicial que só traz
insegurança e que não é compatível nem com a lei nem com o Estado
democrático de direito. Os impactos disso são muito ruins, pois revelam
que o direito no Brasil é aquilo que o juiz quer que seja, e não aquilo
que a lei prevê”, observou.
O criminalista Fernando Castelo Branco, mestre em
direito processual penal pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), também defendeu a decisão de Marco Aurélio. Segundo ele,
a demora do sistema judiciário em estabelecer uma sentença condenatória
definitiva a André do Rap propiciou que a defesa do criminoso pedisse a
sua soltura. "A culpa é de um sistema judiciário falível, que demora
um tempo excessivo para julgar casos que deveriam ser julgados de uma
forma mais célere. Nos casos em que o risco de uma liberdade pode ser
detectável de maneira muito maior, o Judiciário tem que agir de forma
mais atenta e menos irresponsável. O Marco Aurélio soltou porque a lei
diz que não se pode manter alguém preso alguém nessas circunstâncias.
Pouco importa se é um líder de facção criminosa ou um cidadão primário e
de bons antecedentes. A lei não faz distinção”, explicou. (AF)