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sábado, 18 de dezembro de 2021

Darwin e a apoteose vacinal - Guilherme Fiuza

Revista Oeste

“Tá aqui o meu cartão. Quinta dose, totalmente imunizado. Pode checar.” 

Bom dia.

– Olá.

– Seja bem-vindo.

– Obrigado.

– Identificação, por favor.

– Tá aqui.

– Deixa eu ver.

– Pois não.

Hum… Não vou poder liberar o seu acesso.

– Por quê? Esse é o meu cartão de vacinação. Sou eu mesmo aí. Olha aqui minha identidade, CPF…

– Imagina. Claro que é você. Em nenhum momento desconfiei, longe de mim…

– Então qual é o problema?

Está incompleto.

– Incompleto por quê? Falta eu fazer alguma coisa?

– Falta.

– Viva o SUS!

– Não é isso. Falta uma etapa de imunização.

– De jeito nenhum. Deve haver um engano. Está aqui, ó: duas doses mais o reforço.

Perfeitamente. É que já estamos na segunda dose do reforço.

– Hein? Quarta dose?

– Exatamente.

– Poxa, não sabia. Desculpe, devo ter me distraído.

– Sem problemas.

Vou me imunizar e volto amanhã, ok?

– Positivo.

– Bom dia, voltei. Aqui está o meu cartão com a segunda dose de reforço, tudo certinho.

– Deixa eu ver.

– À vontade.

– Hum… Está incompleto.

– Como assim?! Olha aqui a comprovação! Está insinuando que eu forjei a quarta dose?

– Jamais faria isso. Nem seria possível. O sistema é totalmente confiável.

– Então qual é o problema?

– Influenza.

– Hein? Está dizendo que eu estou doente? Estou ótimo, pode medir a minha temperatura se quiser. Pode me auscultar, meu pulmão tá novo em folha. Me viu espirrando por acaso?

– Desculpe, jamais insinuaria que você está doente. Aliás, isso nem importa para nós. O que importa é a vacina.

– Como assim?

Estamos exigindo a vacina de influenza também.

– Ah, é?

– É. Resolvemos aproveitar a onda de empatia para higienizar tudo.

– Faz sentido. Eu sou pró-vacina.

– Que bom.

– Bem, vou me imunizar e volto quanto antes.

Positivo.

– Olá, voltei. Desculpe a demora. As filas estavam muito grandes. O importante é que consegui. Tá aqui meu cartão. Completinho agora.

– Ok. Deixa eu ver.

– Pois não.

– Hum… Não vai dar.

– O que foi dessa vez?

– A vacina que você tomou não protege contra a variante Darwin, que acabou de chegar.

– O quê?! Me deram uma vacina velha?

– Não é bem isso. Os vírus é que estão se atualizando com muita rapidez. O que é novo fica velho rápido. Que nem software e iPhone.

– Ah, entendi. É verdade, está tudo se renovando com muita rapidez.

– Felizmente a ciência também está muito veloz. Tenho certeza de que você logo vai conseguir a vacina Darwin.

Mas será que eu posso tomar assim uma em cima da outra?

– Problema nenhum. Quanto mais vacina, melhor.

– Que bom. Então vou lá correr atrás da minha imunização.

– Boa sorte.

– Obrigado pela sua paciência.

– Imagina.

– Não vai desistir de mim, hein? Sou lento, mas sou limpinho ahaha.

– Positivo. Higiene é tudo.

– Então, até breve.

– Até.

“Como você queira chamar. Usamos “reforço” para reforçar a ideia de imunização reforçada”

– Oi, voltei. Já tomei a vacina Darwin! Levou uns dias, mas encontrei. Foi emocionante, quer ver a foto que o enfermeiro fez?

– Não precisa. Basta o cartão.

– Ok. Tá aqui.

– Hum… Está incompleto.

– O quê?! Que brincadeira é essa, companheiro? Tá me achando com cara de palhaço?

– Estou, mas não é esse o ponto. No seu cartão está faltando uma etapa de imunização.

– Impossível! Cumpri todas as exigências que você me apresentou! Tá tudo aqui.

– Infelizmente não está. Depois da sua última vinda, houve um avanço da Ômicron, e já estamos na terceira dose de reforço.

– Jura? Quinta dose?

– Como você queira chamar. Usamos “reforço” para reforçar a ideia de imunização reforçada.

– Faz sentido. Comunicação é tudo.

– Ciência.

– Isso. Foi o que eu quis dizer.

– Ok.

Bem, então vou lá correr atrás da minha imunização reforçada.

– Positivo.

– Oi, voltei de novo. Você não aguenta mais ver a minha cara, né?

– Quem vê cara não vê veia. Aqui estamos estritamente preocupados com o seu cartão de imunização.

– Falar em imunização, rapaz… Desculpe a intimidade rsrs. Segura essa: testei positivo pra covid. Acredita?

– Essa não é minha área.

– Claro. Foi só um comentário de amigo. Tá aqui o meu cartão. Quinta dose, totalmente imunizado. Pode checar.

– Ok. Agora está completo. Acesso liberado.

– Uau! Obrigado! Esse cartão é sensacional mesmo. Agora me sinto um cidadão de verdade. Bom trabalho aí.

– Obrigado. Melhoras.

– Atchim!

Leia também O “passaporte” saiu do armário 

Guilherme Fiuza, colunista - Revista Oeste


quinta-feira, 24 de junho de 2021

Crachá de cobaia - Revista Oeste

Edição de arte Oeste | Ilustrações: Shutterstock
E aí, já vacinou?

– Vacinei quem?

– Você?

– Ah, tá perguntando se eu ME vacinei.

– Isso.

– Não, porque você perguntou “já vacinou”, achei que fosse pra saber se eu estava vacinando alguém.

– Só se você fosse enfermeiro.

– Pois é, não sou.

– Então: já vacinou?

– Não vacinei ninguém.

– Não tô perguntando isso.

– Vou te ajudar: já SE vacinou?

– Já! Quer ver a foto?

– Não, obrigado.

– Mas vou te mostrar. Olha aqui: nem chorei.

– Parabéns.

– A enfermeira disse que eu suportei bem. Ela era bonitinha, acho que pintou até um clima.

– Acha?

– É, não tenho certeza. Mas vou voltar lá.

– Pra pedir o telefone dela?

– Não, pra tomar a outra vacina. Aquela de Primeiro Mundo.

– Vai tomar outra?!

– É, acho melhor. Porque depois de vacinar acabei pegando covid. Então quero tomar logo essa poderosa aí pra não me preocupar mais.

– Sei.

– Chato é esse negócio da miocardite.

– Que negócio?

– Nos Estados Unidos e em Israel eles estão estudando inflamação cardíaca em vacinados. Não sabem ainda o porcentual.

– Aí complica.

– Não acho. Você não ouviu todo mundo dizer que as vacinas são boas e seguras?

– É, tenho ouvido.

– Então? Quando todo mundo diz é porque é.

– Todo mundo é muita gente.

– Muita. Aí ficam esses negacionistas falando em coágulo. Que mané coágulo?!

– Pois é, de fato descobriram que vacina contra covid pode provocar coagulação e trombose. Mas não tem estatística.

– Eu sou a favor da ciência. Quem fica duvidando de vacina é contra a ciência.

– É tudo muito confuso.

– Não tem nada confuso. Confuso é ficar fazendo pergunta no meio de uma pandemia. Eu sou iluminista. Vacina e fim de papo. O resto é coisa de seita.

– Tá parecendo seita mesmo esse negócio de não deixar ninguém falar.

– Não tem que deixar mesmo não. Pra falar contra a ciência é melhor calar a boca.

– Você sabe quantos…

– Cala a boca.

– Por quê? Só ia perguntar se você sabe quantos dias faltam pra Olimpíada do Japão.

Não sei e não quero saber. Bando de negacionista.

– Os japoneses?

– Completamente irresponsáveis. E não querem se vacinar! É um dos países menos vacinados do mundo.

– E ainda assim parece que o número de óbitos lá é bem baixo.

– Se tivessem vacinado direito seria zero!


– Será?

– Cala a boca.

– Por quê?

– Porque eu quero.

– Posso falar só mais uma coisa?

– Se for contra a ciência, não.

– Não é contra a ciência.

– Tá bom. Fala.

– Esse passaporte da vacina…

– Que que tem?

– Pra poder ter acesso aos lugares, circular livremente…

– Eu sei o que é, porra. Fala logo.

– Não, só ia te perguntar se você não acha que obrigar as pessoas a tomarem vacinas que ainda estão sendo estudadas pode dar cadeia pra quem obriga.

– Vou fingir que não ouvi esse absurdo. Senão o preso seria você.

– Obrigado por não me ouvir.

Leia também “A tirania dos passaportes de vacina”

Guilherme Fiuza, colunista - Revista Época