O Executivo estaria sequestrando Legislativo e Judiciário para atender a seus propósitos
Nas democracias, o pacto entre os Poderes se estabelece na Constituição. Desculpo-me se, ao fazer tal afirmação, chovo no molhado e no clichê,
mas não resta alternativa quando o conhecimento firmado mais comezinho
sobre política é ignorado em favor de uma fantasia. Até porque me pergunto como se daria o "troço" —ocorreram-me
substantivos menos decorosos. A "coisa" —mais uma concessão à
delicadeza— só seria possível se cada Poder abrisse mão de suas
respectivas prerrogativas para abraçar as que aos outros dois pertencem
ou se os três adotassem estranhezas impróprias a cada um. Nesse caso,
não seria pacto, mas bagunça.
Estamos obviamente diante de um entendimento prejudicado do que é o
regime democrático e do que significa a independência entre os três
Poderes. "Ah, isso é o mundo ideal...". É, sim! Na vida pública, convém
perseguir o ideal para que o real não se abastarde. A ética da
responsabilidade modula a da convicção. Se aquela mata esta, o horizonte
é o pragmatismo obscurantista. Avance-se um tanto mais. O Executivo e o Legislativo são os Poderes que
traduzem as vontades conflitantes da sociedade. O Judiciário é, por
excelência, o Poder do Estado. Os dois primeiros estão sujeitos às vagas
de opinião, refletem a temperatura dos embates públicos, carregam as
marcas e cicatrizes das nossas dissensões e divergências.
O Judiciário traz consigo a vocação de Poder Moderador. Embora nenhum
Poder possa ser soberano na democracia —em que soberana é a
Constituição—, sobrou aos senhores e senhoras do antes chamado "Pretório
Excelso" desempenhar o papel, em várias circunstâncias, de "Poder dos
Poderes". A pergunta é obrigatória, e a resposta, evidente: "Quando a última palavra não está escrita, a quem pertence a última palavra?"
O Judiciário não atravessa a praça para somar forças com o Executivo e o
Legislativo. Se o fizer, fatalmente acabará disputando o protagonismo.
Será massa negativa —aquela que, na soma, diminui. Os outros dois
Poderes é que fazem o movimento contrário quando, diante de uma
dissensão insanável, buscam a Justiça. Aí, então, atua o Moderador. Ora, como é possível que o Poder Irrecorrível se meta em porfias
políticas —e isso fatalmente aconteceria— para, mais tarde, atuar como o
juiz isento do que escapou, então, ao chamado "pacto"? É mentira que só
exista jabuticaba no Brasil. Mas certas bobagens são endêmicas de
nossas vastas solidões também teóricas.
Se querem saber, nem mesmo vejo caminhos por onde se operasse a
aposentadoria compulsória de Montesquieu, o formulador original do molde
moderno da tripartição de Poderes. A conversa nada traz de útil e só
gera "balbúrdia", como diria aquele... Há, ademais, de inconveniente o fato de que esse tal pacto foi
ressuscitado como derivação necessária do "protesto a favor de
Bolsonaro" a que se assistiu no domingo (26). Assim o noticiou parte
considerável da imprensa, e se ouviu essa avaliação na boca de figuras
coroadas do governo.
Sendo isso verdade, então não se trata de um pacto, mas de um rapto, na
primeira acepção do termo. O Executivo estaria sequestrando o
Legislativo e o Judiciário para atender a seus propósitos —sejam eles
quais forem: reforma disso ou daquilo ou outros quaisquer.
A propósito: o Supremo passaria a atuar como consultor do Executivo ou
eventualmente do Legislativo? Substituiríamos o controle de
constitucionalidade pelo juízo prévio de constitucionalidade? "Olhem, é
melhor não ir por aí porque isso não passaria por aqui." Não me parece
que seja possível. Nem prudente. Também prefiro, a exemplo de Clóvis Rossi, nesta Folha, o presidente que
fala de pacto ao que fica no Twitter a espancar a língua, a lógica, o
bom senso e as conquistas mais comezinhas da civilização.
Melhor o que fala de entendimento do que aquele que se diz mais poderoso
do que Rodrigo Maia porque tem a caneta dos decretos, que, segundo
sugeriu, podem mudar leis. Que Dias Toffoli lhe conte que não podem.
Bem, sempre haverá um Bolsonaro pior do que o outro. Noto, para encerrar, que essa conversa se deu na terça-feira (28). No
domingo e na segunda, 55 presos foram assassinados em quatro presídios
no Amazonas.
Há 70 partidos do crime a operar no sistema prisional do país, e seus
braços, além dos muros, disputam mercado com as milícias. Sobre isso,
fez-se o pior de todos os pactos, muito típico das elites políticas
brasileiras: o do silêncio. E o pacto do silêncio eloquente torna especialmente indecente o pacto do barulho vazio.
Reinaldo Azevedo, Coluna na Folha de S. Paulo