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domingo, 10 de outubro de 2021

Filhos da liberdade - Ana Paula Henkel

Revista Oeste

Numa época em que o pedágio ideológico é um imposto quase obrigatório, a voz de um atleta levantou um movimento inesperado em uma das reviravoltas mais notáveis na pandemia

Um dos eventos mais marcantes da história política norte-americana foi a crise dos mísseis cubanos (retratada no brilhante filme Treze Dias que Abalaram o Mundo). Foi quando os líderes dos Estados Unidos e da União Soviética se envolveram em um tenso impasse político e militar em outubro de 1962 sobre a instalação de mísseis soviéticos com armas nucleares em Cuba, a pouco mais de 140 quilômetros da costa dos EUA.

Em um discurso na TV em 22 de outubro de 1962, o presidente John F. Kennedy notificou os americanos sobre a presença dos mísseis, explicou sua decisão de decretar um bloqueio naval em torno de Cuba e deixou claro que os EUA estavam preparados para usar força militar, se necessário, para neutralizar qualquer ameaça à segurança nacional. Depois dessa notícia, muitas pessoas temeram que o mundo estivesse à beira de uma guerra nuclear. No entanto, o desastre foi evitado quando os Estados Unidos concordaram com a oferta do líder soviético Nikita Khrushchev de remover os mísseis cubanos em troca da promessa dos americanos de não invadir Cuba e de retirarem seus mísseis da Turquia

 Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock


Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

O que muitos não sabem é a história por trás desse episódio, agora retratada em The Courier, outro excelente filme produzido no ano passado. O Espião Inglês, como foi lançado no Brasil, conta a história real de Greville Wynne, um empresário britânico que ajudou o MI6, a agência britânica de Inteligência, a penetrar no programa nuclear soviético durante a Guerra Fria. Wynne e sua fonte no governo soviético, Oleg Penkovsky, forneceram aos americanos informações cruciais que encerraram exatamente a crise dos mísseis cubanos na administração de JFK na Casa Branca.

Sem maiores spoilers, há uma cena em que Wynne e Penkovsky conversam sobre a excepcionalidade do que estão dispostos a fazer, avisar os americanos sobre os detalhes de todo o esquema dos mísseis soviéticos em Cuba. Sentados à mesa em um falso almoço de negócios, eles conversam sobre os grandes riscos do trabalho de espionagem e a esperança de evitar uma possível tragédia nuclear, quando Penkovsky diz ao britânico: “Talvez sejamos apenas duas pessoas. Mas é assim que as coisas mudam”.

A cena imediatamente veio à minha mente diante do fato esportivo que chamou minha atenção nesta semana. Numa época em que o pagamento de pedágio ideológico é um imposto quase obrigatório para atletas e celebridades, e questionar virou sinônimo de “ameaça à democracia”, uma voz levantou um movimento totalmente inesperado em uma das reviravoltas mais notáveis na pandemia. Jonathan Isaac, jogador do Orlando Magic, emergiu como um convincente defensor dos sagrados princípios da liberdade, do bom senso e da decência cívica tão presentes no DNA da América. Isaac se posicionou contra o passaporte vacinal obrigatório, como uma voz da razão contra a mídia e o establishment que desprezam e rotulam os não vacinados como anticientíficos. Na verdade, as entrevistas de Isaac ressaltam quão anticientífico o discurso sobre a covid se tornou: “Todos devem ser livres para tomar decisões por si próprios”, disse ele, acrescentando que acredita que o governo “está estabelecendo um precedente em que, à luz de qualquer emergência, sua autonomia pessoal, sua liberdade religiosa e, honestamente, sua liberdade como um todo tornam-se negociáveis”.

A revista Rolling Stone logo tratou de publicar uma entrevista com Isaac tentando retratá-lo como “mais um contra as vacinas”. Apesar de ter apenas 24 anos, Isaac tem se mostrado extremamente maduro e preparado, e, logo após a publicação da revista, rebateu: “Não sou antivacina”. “Não sou antimedicamento. Não sou anticiência. Não cheguei ao meu estado atual de vacinação estudando a história dos negros ou assistindo às coletivas de imprensa de Donald Trump. Tenho o máximo respeito por todos os profissionais de saúde e pessoas que trabalharam incansavelmente para nos manter seguros. Minha mãe trabalha na área de saúde há muito tempo. Sou grato por viver em uma sociedade em que as vacinas são possíveis e temos os meios para nos proteger. Mas, dito isso, minha convicção é que o status de vacinação de cada pessoa deve ser sua própria escolha, sem intimidação, sem ser pressionado ou coagido a fazê-lo. Não tenho vergonha de dizer que não estou confortável em tomar a vacina nesse momento. Acho que somos todos diferentes. Todos nós viemos de lugares diferentes, tivemos experiências diferentes e nos preocupamos com diferentes crenças. E o que você faz com o seu corpo quando se trata de colocar medicamentos nele deve ser uma escolha pessoal, livre do ridículo e da opinião dos outros.”

Não pense que Jonathan Isaac parou por aí. Ele foi muito além e trouxe o que muitos, inclusive milhares de médicos lobistas das big pharmas, tentam esconder — a imunidade de quem passou pela doença: “Já tive covid no passado, e, portanto, nossa compreensão dos anticorpos, da imunidade natural mudou muito desde o início da pandemia e ainda está evoluindo”, afirmou. “Entendo que a vacina poderia ajudar a ter menos sintomas se você contrair o vírus. Mas, tendo passado e tendo anticorpos, com a minha faixa etária e nível de aptidão física, uma reinfecção não é necessariamente um medo que tenho. Tomar a vacina, como eu disse, diminuiria minhas chances de ter uma reação grave, mas me abre para a possibilidade de ter uma reação adversa à própria vacina. Você ainda pode pegar covid com ou sem a vacina. Eu diria honestamente que a loucura de tudo está em não sermos capazes de dizer que isso deveria ser uma escolha justa de cada um, sem ser rebaixado ou considerado maluco. Há algumas das razões pelas quais estou hesitante em tomar a vacina nesse momento. Mas, no fim, não acho que há motivo para alguém dizer ‘É por isso’ ou ‘Não é por isso’ para que alguém tome ou não. Isso deve ser apenas uma decisão de cada um. E amar o próximo não é apenas amar aqueles que concordam com você, se parecem com você ou agem da mesma maneira que você.”

Jonathan Isaac mostra que está em uma posição totalmente razoável para ser assumida, e que é abandonada por muitos por medo, bullying ou simplesmente pela prostituição intelectual. Ele está na casa dos 20 anos, tem imunidade natural e está fisicamente mais saudável do que qualquer pessoa de sua idade. Na verdade, durante todo o curso da pandemia, o número total de pessoas entre 15 e 24 anos (faixa etária de Isaac) que morreram de covid nos EUA, um país com 330 milhões de pessoas, é de 1.372: menos do que o número de mortes por pneumonia não associada à covid para o mesmo grupo etário.

E como muitos exemplos de coragem na história, Jonathan Isaac quebrou o canto da atual sereia dos burocratas que, de suas salas em algum prédio com o metro quadrado mais caro de Washington, Berlim ou Bruxelas, decidem a sua vida por você, sem que você possa apresentar nenhum questionamento. Tome a vacina e cale a boca, fascista. Isaac provocou um efeito dominó sem precedentes na espiral de silêncio da NBA. Draymond Green, do Golden State Warriors, e Kyrie Irving, do Brooklyn Nets, também decidiram levantar a voz, com calma, razão e tolerância em meio a um pânico moral sobre as vacinas contra a covid, empurradas implacavelmente pela mídia corporativa, por lobistas e políticos.

Green falou em nome de milhões pelo mundo durante uma coletiva de imprensa na semana passada, quando disse que o debate sobre a picada contra a covid “se transformou em uma guerra política” e que, com decisões médicas como tomar a vacina, “você tem de honrar os sentimentos das pessoas e suas próprias crenças pessoais. Forçar as pessoas a tomar a vacina vai contra tudo o que a América defende”. Draymond Green, assim como a maioria dos jogadores da NBA, optou por tomar a vacina contra a covid, mas Green entende o que muitos jornalistas aparentemente fazem questão de não entender, que receber ou não a vacina deve ser um assunto privado, assim como qualquer outra decisão médica, e que ninguém deve ser coagido a isso.

Jonathan Isaac tem o espírito de homens corajosos, tão raros hoje em dia

Outro atleta da NBA que decidiu se pronunciar foi Bradley Beal, do Washington Wizards. Beal também parece ter uma compreensão mais firme da liberdade de consciência e expressão do que toda a imprensa que o atacou repetidamente por sua hesitação em se vacinar por motivos pessoais. “Uma coisa que quero deixar clara é que não estou aqui defendendo ou fazendo campanha ‘Não, você não deveria tomar essa vacina’”, disse Beal, depois de lhe perguntarem sobre a eficácia das vacinas. “Não estou dizendo que são ruins. Não estou aqui dizendo que você não deveria tomá-las, mas que é uma decisão pessoal de cada indivíduo. Tenho o direito de manter essa decisão comigo ou com minha família e gostaria que todos respeitassem isso.”

Em 2020, quando jogadores negros famosos e milionários da NBA, vestidos com camisas do grupo Black Lives Matter, se ajoelharam durante o hino norte-americano contra o “racismo sistêmico” na América, Jonathan Isaac, negro, permaneceu de pé e disse que “ajoelhar ou vestir uma camiseta não era resposta para nada”, que “as vidas dos negros e todas as vidas eram sustentadas pelo Evangelho” e que apenas com a união de todos muitos problemas seriam confrontados, não apenas o racismo. O atual efeito cascata de vozes que se levantam para a defesa inviolável da verdade e da liberdade médica, iniciado pela bravura de Jonathan Isaac, parece que não vai parar. Atletas da NFL — a liga profissional de futebol americano — começaram a se portar publicamente contra o passaporte sanitário e a obrigatoriedade da vacina.

Jonathan Isaac permanece de pé durante hino norte-americano - 
Foto: Reprodução

Jonathan Isaac tem o espírito de homens corajosos, tão raros hoje em dia. Homens com princípios basilares que viveram através de séculos por causa de seus legados. Princípios que podem transcender gerações, porque eles são maiores que elas. São a sobrevivência da civilização ocidental. Princípios que vencem regimes totalitários e seus ditadores, que derrubam muros e evitam crises nucleares.

Jonathan Isaac não é nenhum espião treinado para combater forças ocultas dos inimigos de seu país, mas seu espírito simboliza o significado do hino de sua nação — ainda pilar da liberdade no mundo —, sustentada por homens de valores inegociáveis: Land of the free because of the brave. Às vezes, não são necessárias nem duas pessoas para que algo mude. Uma apenas basta. Criem seus filhos para serem como Jonathan Isaac.

Leia também “Ciência, ciência e silêncio”

Ana Paula Henkel, colunista -  Revista Oeste

 [Nota do Blog Prontidão Total: em respeito ao direito à informação aos nossos dois leitores transcrevemos a excelente matéria da colunista Ana Paula Henkel, ao tempo que expressamos nossa posição favorável às vacinas - seja os imunizantes contra a COVID-19 ou os mais antigos, tradicionais.]


quarta-feira, 8 de abril de 2020

Sobre o Poder - Merval Pereira

O Globo

Elogiar ministro é um perigo

O livro “A cadeira da águia”, do escritor mexicano Carlos Fuentes, tem uma ótima citação de Stálin que serve como uma luva na disputa em curso entre o presidente Bolsonaro e seu ministro da Saúde Mandetta. Digo “em curso” porque não acredito que o presidente Bolsonaro se recolha diante da impossibilidade de impor sua vontade. Tentará novamente.

Na década de 30 do século passado, relata Carlos Fuentes, um assessor  do líder soviético gritou ao ser elogiado por seu trabalho: “Por favor, não me elogiem! Não me mandem para a Sibéria”. A insegurança de líderes autoritários, sejam de esquerda ou de direita, é recorrente na história da civilização, e estamos vendo uma repetição dessa eterna disputa de poder, real ou imaginária.

Muitos ministros de Bolsonaro se incomodam com os elogios, pois sabem que podem ter problemas com o capitão. Para compensar, alguns começam a elogiar Bolsonaro e a concordar com ele pelas redes sociais, que é onde o registro vale de verdade para o presidente e seus acólitos.
Esse temperamento inseguro do presidente tem rendido comentários e memes nas mesmas redes sociais, tão valorizadas pelo próprio presidente, que revelam a percepção das angústias de Bolsonaro. O que mais esteve presente nas redes durante essa crise foram brincadeiras sobre os ministros mais criticados de seu governo, como o da Educação Abraham Weintraub, o chanceler Ernesto Araújo ou o do Meio Ambiente Ricardo Salles. 
“Se começarmos a elogiar o Weintraub, será que ele cai?”, é um exemplo do humor cáustico das redes sobre o comportamento nada errático do presidente, que protege os que são “perseguidos” pelos “jornalistas esquerdistas”, e coloca na sua mira os ministros que são elogiados. Se seus “inimigos” gostam deles, é porque não são confiáveis. 

O caso do ministro do Turismo Marcelo Álvaro Antonio é o mais enigmático de todos os que Bolsonaro protege. Acusado de crime eleitoral como coordenador de um esquema de candidaturas “laranjas”, ele jamais foi incomodado por Bolsonaro, que se jacta de não aceitar corrupção em seu governo. O fato de a acusação se referir à período anterior ao seu mandato presidencial não explica essa leniência, pois quando escolhido o ministro já respondia a esses questionamentos. O fato é que o presidente Bolsonaro lida diariamente com essas angústias que lhe comem as entranhas, situação exacerbada depois que  levou a facada durante a campanha eleitoral. Na ocasião, seu filho Carlos já tuitara dizendo que havia gente no entorno de seu pai que queria sua morte com objetivos políticos, referindo-se claramente ao vice Hamilton Mourão.

Essa paranóia alimentada pela mente tumultuada de Carlos e seus dois irmãos persegue o presidente, e é impossível imaginar que possa ser tutelável. O general Vilas Boas, que uma vez me disse que o candidato Bolsonaro era “incontrolável”, recentemente foi mais cerimonioso numa entrevista e disse que “ninguém tutela o presidente”. De fato, não é bom um presidente tutelado por militares. Mas também não é bom ter um presidente que coloca em risco a população que governa com decisões sem bases legais ou jurídicas. Não se elege um ditador, mas um chefe de Estado que aceita as regras do jogo democrático. Nela, os poderes se contrapõem e se controlam mutuamente.

Não aceitar essa premissa, e tentar mudar as regras do jogo que o colocaram no poder através de manipulação da opinião pública, coloca o presidente eleito em uma rota de ilegalidade que em algum momento vai cobrar consequências.  Um artigo importante, assinado por um grupo de juristas no Globo Online de ontem, define bem os limites presidenciais numa democracia: “Um presidente da República está limitado pela ciência — porque está limitado pela realidade. Não pode decretar que o sol nasça no poente e se ponha no nascente. Não pode negar evidências científicas seguras, tampouco orientar que sua administração assim o faça”.

Isso quer dizer que o presidente Bolsonaro não pode nem decretar que a  terra é plana, embora possa acreditar nisso, nem dar fim à quarentena sem apoio de bases cientificas. [nenhuma das medidas foi adotada, ou tentada, pelo Presidente da República, JAIR BOLSONARO.] Uma frase atribuída ao chefe do gabinete  Civil do governo Geisel, Golbery do Couto e Silva, define bem a situação: “Há três tipos de poder, o que você acha que tem, o que os outros acham que você tem, e o que realmente você tem.”

Merval Pereira, jornalista - O Globo