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domingo, 1 de março de 2020

É nós ou eles (os micróbios) - O Globo

Dorrit Harazim 

Com seu poder de disseminação planetária em redes sociais, o medo encontra neste novo milênio um hospedeiro frondoso

Nada a ver com o nosso medo natural e real que convida à ação e começa com a luta do embrião por oxigênio. Trata-se aqui do medo do invisível e do desconhecido, onde expectativas ansiosas e interpretações agourentas favorecem crendices. É esse tipo de medo que induz à paralisia ou a comportamentos irracionais.

Coube ao financista americano Bernard Baruch escrever o prefácio para a reedição de 1932 do clássico sobre nossos desvarios coletivos. Não por acaso. A nova edição chegou às livrarias americanas em 1932, com a Bolsa de Nova York ainda em pandarecos, e Baruch fora um dos grandes especuladores que escapara ileso da histórica hecatombe financeira. Ele atribuía o fato de ter economizado milhões à leitura do inventário de maluquices humanas feito por Mackay no século anterior. Baruch concluiu que boa parte das ruínas do crash de 1929 poderia ter sido evitada se os bípedes da época tivessem continuado a repetir que 2+2 são apenas e sempre 4.

Não é de hoje nem de ontem que nações sensatas, tidas como evoluídas, se agarram a um desvario e nele arrastam milhões de seguidores. Afinal, foi na Idade de Ouro da Holanda do século 17 que ocorreu a famosa “tulipamania”— o desejo insano e insaciável de todo um povo por uma flor de origem turca, forma de turbante (daí seu nome) e cotação nas Bolsas da época. Especuladores ofereciam valores extravagantes, além de propriedades, charretes, cavalos ou pratarias por um único bulbo da raríssima Semper Augustus, enquanto cidadãos comuns vendiam o que tinham ou se endividavam por espécies menos nobres. Ao final do surto, houve fartura de donos com tulipas que não valiam mais nada por falta de comprador. Coube à Câmara de Amsterdã decidir pela anulação dos contratos de compra e venda originais, para que os holandeses voltassem a olhar para uma tulipa pelo que ela é: uma tulipa.

Agora, para quem quiser mergulhar fundo e sem medo nos desafios que a natureza coloca na marcha humana sob forma de doenças infecciosas, recomenda-se o monumental “A próxima peste”, da jornalista americana Laurie Garrett, especializada em ciências e saúde pública. O livro não lida com medos irreais. É um trabalho de jornalismo investigativo científico apaixonante, que mergulha nos micróbios que nos cercam e deixa lições duradouras sobre a vasta gama de pragas com que aprendemos a conviver. Ou a morrer. A obra não é recente, data de 1995, mas ajuda a compreender como chegamos ao coronavírus. 

A autora conclui as mais de 600 páginas com uma constatação: do ponto de vista dos micróbios, nosso planeta de seis bilhões de humanos majoritariamente carentes se parece com a Roma do século 5 a.C. Enquanto a raça humana lutar intestinamente, brigando por espaço cada vez mais abarrotado de gente e carente de recursos, a vantagem continuará no campo dos micróbios. Eles são nossos predadores e sairão vitoriosos se não aprendermos a viver numa aldeia global racional que deixa poucas chances ao inimigo. Ou é isto ou devemos nos preparar para a próxima praga.

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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Vocabulário da crise - Fernando Gabeira

10.02.2020 Em Blog
 
Ao chegar ao Rio, fui a um restaurante e na hora do café senti um gosto estranho. Era geosmina, palavra grega. Lembrei-me de que o arroz também já não era mais o mesmo. A geosmina não se limitava a transformar a água de banho. Agora seria um novo componente do próprio corpo. Andando pelas ruas de Ipanema, vejo que a chuva alagou as ruas; o esgoto, em alguns pontos, está de novo a céu aberto.

Ocorre-me uma outra palavra nova. Foi criada pelo escritor americano Glenn Albrecht: solastalgia. É uma combinação em inglês que une duas palavras, solace, consolo, com nostalgia do conforto, sentimento de desolação diante da perda de uma paisagem familiar por incêndio, inundação ou outro desastre. No caso do Rio, a corrupção endêmica.

No meio da semana, escrevi um artigo sobre coronavírus, afirmando que vivemos um novo tempo. Os negacionistas vão dizer sempre que nada mudou, houve pestes no passado, falta de água no Rio; o mundo para eles é apenas uma repetição mecânica. Refleti um pouco sobre o grande livro de Albert Camus, “A peste”. Ele volta à agenda de discussões porque é uma alegoria da ocupação nazista de Paris, uma referência à guerra. No livro, Camus, através de um personagem, afirma que o bacilo da peste nunca morre, ele adormece nas gavetas, nas nossas roupas, esperando o momento para ressurgir.

Quem se concentra apenas na interpretação política poderá entender que o bacilo do nazifascismo pode sempre despertar. Basta ver o discurso de Roberto Alvim ressuscitando as ideias de Goebbels.   entanto, há uma transformação que poderia também alcançar a releitura de “A peste”. De Camus para nossos dias, os perigos biológicos aumentaram muito. Bill Gates tem se dedicado a demonstrar que as pandemias podem matar muito mais que as guerras.  Quando me atenho a uma leitura biológica do texto de Camus, constato de fato que os bacilos a que se refere, de uma certa forma, nunca morrem. A febre amarela, por exemplo, deu as caras de novo no Brasil; da mesma forma, o sarampo. Estavam apenas adormecidos.
O texto de Camus é muito mais do que uma alegoria política ou mesmo uma reflexão sobre riscos biológicos. Ele trata de relações humanas nessas crises que nos levam ao limite.

Certamente, numa Wuhan semideserta muitos dramas e conflitos éticos estão em curso. Aqui mesmo no Rio, a leitura mais produtiva da crise da água não passa pela geosmina nem pelos milhões de litros de esgoto que chegam às estações do Guandu.
Como em “A peste” de Camus, os primeiros sinais aparecem com os ratos mortos. No Rio, foram os indícios de corrupção e incompetência que surgiram lá atrás, pouco notados antes do fim do governo Cabral. No caso da água, chegamos a uma situação difícil de superar. Não somente os milhões de litros de esgoto, mas as estações de tratamento paralisadas na Baixada Fluminense, tudo isso demanda recursos.

Há uma longa discussão sobre privatizar ou não. Defensores da presença do estado argumentam que a Cedae dá lucros. Mas lucros para nós talvez não sejam a questão essencial.  O problema central é a eficácia; há cidades que privatizaram o serviço e se deram bem. Outras se dão bem com o modelo estatal. Os ratos começam a aparecer mortos quando questões que demandam competência e seriedade são entregues ao apetite político partidário.  Essa é a historia antiga que precisa ser mudada. Resolvê-la pela privatização ou pela seriedade administrativa é uma tarefa que deveria apaixonar os dois lados da discussão. No entanto, as saídas demandam muito dinheiro, parte dele consumido nas farras de Cabral, nas fortunas enviadas para o exterior, nas migalhas distribuídas entre os cúmplices.

Bacilos, micróbios, vírus e bactérias — tudo isso assombra num mundo moderno e interligado. Mas é no personagem de um bispo que se fecha com provisões para enfrentar a crise e abandona seu povo que Camus mostra a importância da miséria humana nas tragédias coletivas.  Ele escreveu no Pós-Guerra. De lá para cá, cresceram os perigos biológicos, e nada indica que a humanidade tenha ampliado seu impulso solidário.
A geosmina e a solastalgia são a herança dos sobreviventes.


Blog do Gabeira - Fernando Gabeira, jornalista

 
Artigo publicado no jornal O Globo em 10/02/2020