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quarta-feira, 8 de abril de 2020

Hamburgo, 1892 - No século 19, negacionismo dos notáveis de Hamburgo durou pouco, até elite ser vítima da doença - Elio Gaspari

Folha de S. Paulo - O Globo

O andar de cima sabia mais, e assim a cólera matou 10.000 pessoas na última epidemia do bacilo na Europa


No século 19, negacionismo dos notáveis de Hamburgo durou pouco, até elite ser vítima da doença     

Há os conservadores e há os atrasados, mas os comerciantes e banqueiros de Hamburgo achavam que eram conservadores iluminados, mas eram também atrasados. Em agosto de 1892, a cidade era administrada pela plutocracia local. Tinha o maior porto da Alemanha e macaqueava os ingleses. Morreu gente nos bairros pobres, mas não podia ser cólera, pois essa peste já teria sido controlada na Europa. 

A cidade tinha lindos prédios, mas não havia começado a obra para tratar sua água. Em 1871 seus notáveis haviam recusado a obrigatoriedade da vacina contra a varíola, porque ofenderia o direito das pessoas. (33 anos depois, Rui Barbosa usou o mesmo argumento, estimulando a rebelião de alguns militares e a maior revolta popular do Rio de Janeiro.) Tudo em nome dos princípios do liberalismo político e econômico que administrava a cidade.

Os plutocratas de Hamburgo acreditavam que a cólera disseminava-se por miasmas do ambiente, mais perigosos nos bairros de gente pobre e suja. Nove anos antes, o médico Robert Koch havia demonstrado que a cólera era transmitida por um bacilo e circulava com a água. Como eles acreditavam nos vapores, recusaram-se até a endossar a obrigatoriedade de fervê-la. (Em 1904, quando Oswaldo Cruz fumegava as casas do Rio para matar o mosquito da febre amarela, vários médicos ilustres insistiam na teoria do miasma.)

Até o verão de 1892 os plutocratas de Hamburgo entendiam que tudo dependia da higiene individual. O negacionismo dos notáveis durou pouco, até que começou a morrer gente no andar de cima. A imprensa havia evitado o assunto e a imediata instituição de uma quarentena foi descartada, pois prejudicaria os negócios. Quando as ruas estavam tomadas por cadáveres, o governo de Berlim mandou Robert Koch a Hamburgo e ele contou: “Senhores, eu esqueci que estava na Europa”. Oito anos antes, Nápoles, velha cidade insalubre com seu porto, havia derrubado a cólera com uma quarentena.

Uma médica americana que estava em Hamburgo escreveria: “Treze epidemias leves não haviam conseguido mostrar aos governantes da cidade que deveriam botar a casa em ordem.” A história dessa epidemia, com dez mil mortos, foi contada pelo historiador inglês Richard Evans (“Death in Hamburg: Society and Politics in the Cholera Years, 1830–1910.” De 1988, infelizmente só existe em papel.)

Sir Richard evitou atribuir o desastre a um mero interesse econômico. Ele foi mais fundo, mostrando que as opiniões dos médicos não são autônomas, mas têm raízes e funções sociais. Os donos das teorias do miasma eram médicos, como o doutor Osmar Terra. Aos 72 anos, numa entrevista ao repórter Isaac Chotiner, Evans rebarbou a teoria segundo a qual ditaduras e democracias lidam com epidemias de maneiras diferentes.

“[Epidemias] exigem grandes intervenções dos governos. Seja qual for a sua forma, seja qual for o tipo do Estado ou o partido que está no poder. De certa maneira, é a epidemia quem dá as cartas.”  Hoje, na praça em frente à Bolsa e à prefeitura de Hamburgo, um monumento lembra os mortos da epidemia de cólera. Ele foi esculpido em 1896. Oito anos depois, no Brasil, ainda se falava em miasma. O presidente Rodrigues Alves e o médico Oswaldo Cruz tiveram que enfrentar uma revolta contra a vacina obrigatória. Grande presidente, esse Rodrigues Alves.

Folha de S. Paulo - O Globo - Elio Gaspari, jornalista


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Vocabulário da crise - Fernando Gabeira

10.02.2020 Em Blog
 
Ao chegar ao Rio, fui a um restaurante e na hora do café senti um gosto estranho. Era geosmina, palavra grega. Lembrei-me de que o arroz também já não era mais o mesmo. A geosmina não se limitava a transformar a água de banho. Agora seria um novo componente do próprio corpo. Andando pelas ruas de Ipanema, vejo que a chuva alagou as ruas; o esgoto, em alguns pontos, está de novo a céu aberto.

Ocorre-me uma outra palavra nova. Foi criada pelo escritor americano Glenn Albrecht: solastalgia. É uma combinação em inglês que une duas palavras, solace, consolo, com nostalgia do conforto, sentimento de desolação diante da perda de uma paisagem familiar por incêndio, inundação ou outro desastre. No caso do Rio, a corrupção endêmica.

No meio da semana, escrevi um artigo sobre coronavírus, afirmando que vivemos um novo tempo. Os negacionistas vão dizer sempre que nada mudou, houve pestes no passado, falta de água no Rio; o mundo para eles é apenas uma repetição mecânica. Refleti um pouco sobre o grande livro de Albert Camus, “A peste”. Ele volta à agenda de discussões porque é uma alegoria da ocupação nazista de Paris, uma referência à guerra. No livro, Camus, através de um personagem, afirma que o bacilo da peste nunca morre, ele adormece nas gavetas, nas nossas roupas, esperando o momento para ressurgir.

Quem se concentra apenas na interpretação política poderá entender que o bacilo do nazifascismo pode sempre despertar. Basta ver o discurso de Roberto Alvim ressuscitando as ideias de Goebbels.   entanto, há uma transformação que poderia também alcançar a releitura de “A peste”. De Camus para nossos dias, os perigos biológicos aumentaram muito. Bill Gates tem se dedicado a demonstrar que as pandemias podem matar muito mais que as guerras.  Quando me atenho a uma leitura biológica do texto de Camus, constato de fato que os bacilos a que se refere, de uma certa forma, nunca morrem. A febre amarela, por exemplo, deu as caras de novo no Brasil; da mesma forma, o sarampo. Estavam apenas adormecidos.
O texto de Camus é muito mais do que uma alegoria política ou mesmo uma reflexão sobre riscos biológicos. Ele trata de relações humanas nessas crises que nos levam ao limite.

Certamente, numa Wuhan semideserta muitos dramas e conflitos éticos estão em curso. Aqui mesmo no Rio, a leitura mais produtiva da crise da água não passa pela geosmina nem pelos milhões de litros de esgoto que chegam às estações do Guandu.
Como em “A peste” de Camus, os primeiros sinais aparecem com os ratos mortos. No Rio, foram os indícios de corrupção e incompetência que surgiram lá atrás, pouco notados antes do fim do governo Cabral. No caso da água, chegamos a uma situação difícil de superar. Não somente os milhões de litros de esgoto, mas as estações de tratamento paralisadas na Baixada Fluminense, tudo isso demanda recursos.

Há uma longa discussão sobre privatizar ou não. Defensores da presença do estado argumentam que a Cedae dá lucros. Mas lucros para nós talvez não sejam a questão essencial.  O problema central é a eficácia; há cidades que privatizaram o serviço e se deram bem. Outras se dão bem com o modelo estatal. Os ratos começam a aparecer mortos quando questões que demandam competência e seriedade são entregues ao apetite político partidário.  Essa é a historia antiga que precisa ser mudada. Resolvê-la pela privatização ou pela seriedade administrativa é uma tarefa que deveria apaixonar os dois lados da discussão. No entanto, as saídas demandam muito dinheiro, parte dele consumido nas farras de Cabral, nas fortunas enviadas para o exterior, nas migalhas distribuídas entre os cúmplices.

Bacilos, micróbios, vírus e bactérias — tudo isso assombra num mundo moderno e interligado. Mas é no personagem de um bispo que se fecha com provisões para enfrentar a crise e abandona seu povo que Camus mostra a importância da miséria humana nas tragédias coletivas.  Ele escreveu no Pós-Guerra. De lá para cá, cresceram os perigos biológicos, e nada indica que a humanidade tenha ampliado seu impulso solidário.
A geosmina e a solastalgia são a herança dos sobreviventes.


Blog do Gabeira - Fernando Gabeira, jornalista

 
Artigo publicado no jornal O Globo em 10/02/2020