Um golpe contra os pobres está em curso
Como diz a peça de acusação a Dilma, o Brasil perdeu a cultura da responsabilidade fiscal. O resultado são os cortes nos programas sociais
A responsabilidade fiscal virou um saco de pancadas no Brasil atual. O Tribunal de Contas da União,
por unanimidade, apontou graves irregularidades na gestão fiscal, em
2014, mas o governo diz que nada de mais aconteceu. Nada diferente do
que fizeram “outros governos”. Diante de um gráfico, mostrando os
pagamentos a descoberto, feito por bancos oficiais, a programas do
governo, sem o devido repasse pelo Executivo, eminentes juristas e
economistas “em defesa da democracia” dizem nada enxergar. Talvez seja a
realidade que ande por baixo, no Brasil de hoje.
Dias atrás li um artigo do professor da Universidade de São Paulo Vladimir Safatle, em um jornal paulista, reproduzindo a narrativa do “golpe”. Seu argumento era o seguinte: não há sentido em acusar a presidente em função das pedaladas fiscais, dado que, neste país, ninguém respeita um orçamento público. Orçamentos, no Brasil, dizia o professor, não passam de “mera carta de intenções”. E mais: que, se orçamentos valessem, “não sobrava de pé um só representante dos Poderes Executivos”.
O texto poderia ser ofensivo a milhares de bons gestores públicos, Brasil afora, mas por certo ninguém deu bola. Desconheço se o referido professor algum dia analisou a execução orçamentária de um município ou Estado brasileiro. O curioso é que ele “sabe” que nenhum deles cumpre coisa nenhuma. Safatle segue a última moda da intelectualidade governista: se o PT, o melhor de todos os partidos, cometeu algum deslize, é óbvio que todos os outros já fizeram coisa muito pior. O partido pode até ter cometido algum pecado. Mas será sempre inocente, por definição, dado que ninguém é virtuoso o suficiente para julgá-lo.
A lógica complementar, nesse argumento, é mais direta: que importância tem, afinal de contas, a ideia de responsabilidade fiscal? Se o governo ficou sem caixa, em algum momento de 2014, para honrar os repasses aos programas sociais não seria lógico mandar os bancos públicos pagarem a conta? Qual seria a alternativa? Deixar de pagar o Bolsa Família? O seguro-desemprego? As bolsas do Fies? Foi Lula que deu o tom desse argumento, logo no início do debate sobre as pedaladas fiscais. E ele tem sido seguido à risca pela intelligentsia oficial.
Como de costume, a narrativa governista empurra alguns detalhes para debaixo do tapete. Um deles: a parte gorda das pedaladas fiscais foi feita para bancar os empréstimos a juros subsidiados, feitos pelo BNDES, dentro do PSI, o Programa de Sustentação do Investimento, a empresas brasileiras. Lula poderia ter explicado que as pedaladas serviram ao “mercado”, primeiro, e em tese beneficiaram os mais pobres, depois. Sua base militante, por certo, entenderia. De qualquer modo, correto mesmo teria sido dizer que elas serviram ao governo, que driblou a contabilidade pública e ganhou as eleições em novembro de 2014.
A “narrativa pela metade” de Lula explicita um paradoxo da democracia. Temas de gestão pública são, frequentemente, complexos, mas o discurso político requer simplificação. As pessoas dificilmente perderão um episódio de House of cards, ou uma boa cerveja, no fim do dia, tentando entender se as pedaladas foram uma “operação de crédito” disfarçada, e, portanto, vetada pelo artigo 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal, ou um simples “inadimplemento”, mera “tecnicalidade contábil”, como escutei de um intelectual amigo, dias atrás. Tudo funciona, no fim do dia, como um convite à irresponsabilidade, fiscal e hermenêutica. Talvez seja este “estado de irresponsabilidade” que democracias maduras aprendem a superar, com o tempo.
Em maio de 2000, o PT votou contra a Lei de Responsabilidade Fiscal. Dois meses depois, o partido entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, no Supremo, contra a Lei. A “narrativa” usada, à época, pelo partido, era de que a Lei faria mal aos trabalhadores. Tratava-se de uma imposição da “austeridade”, do FMI, do mercado financeiro, aquelas coisas de sempre. Cinco anos depois, já no governo, o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, fazia autocrítica da posição do partido, dizendo que a responsabilidade fiscal havia se tornado “um valor da sociedade, de caráter suprapartidário e acima de questões pessoais”.
Dias atrás li um artigo do professor da Universidade de São Paulo Vladimir Safatle, em um jornal paulista, reproduzindo a narrativa do “golpe”. Seu argumento era o seguinte: não há sentido em acusar a presidente em função das pedaladas fiscais, dado que, neste país, ninguém respeita um orçamento público. Orçamentos, no Brasil, dizia o professor, não passam de “mera carta de intenções”. E mais: que, se orçamentos valessem, “não sobrava de pé um só representante dos Poderes Executivos”.
O texto poderia ser ofensivo a milhares de bons gestores públicos, Brasil afora, mas por certo ninguém deu bola. Desconheço se o referido professor algum dia analisou a execução orçamentária de um município ou Estado brasileiro. O curioso é que ele “sabe” que nenhum deles cumpre coisa nenhuma. Safatle segue a última moda da intelectualidade governista: se o PT, o melhor de todos os partidos, cometeu algum deslize, é óbvio que todos os outros já fizeram coisa muito pior. O partido pode até ter cometido algum pecado. Mas será sempre inocente, por definição, dado que ninguém é virtuoso o suficiente para julgá-lo.
A lógica complementar, nesse argumento, é mais direta: que importância tem, afinal de contas, a ideia de responsabilidade fiscal? Se o governo ficou sem caixa, em algum momento de 2014, para honrar os repasses aos programas sociais não seria lógico mandar os bancos públicos pagarem a conta? Qual seria a alternativa? Deixar de pagar o Bolsa Família? O seguro-desemprego? As bolsas do Fies? Foi Lula que deu o tom desse argumento, logo no início do debate sobre as pedaladas fiscais. E ele tem sido seguido à risca pela intelligentsia oficial.
Como de costume, a narrativa governista empurra alguns detalhes para debaixo do tapete. Um deles: a parte gorda das pedaladas fiscais foi feita para bancar os empréstimos a juros subsidiados, feitos pelo BNDES, dentro do PSI, o Programa de Sustentação do Investimento, a empresas brasileiras. Lula poderia ter explicado que as pedaladas serviram ao “mercado”, primeiro, e em tese beneficiaram os mais pobres, depois. Sua base militante, por certo, entenderia. De qualquer modo, correto mesmo teria sido dizer que elas serviram ao governo, que driblou a contabilidade pública e ganhou as eleições em novembro de 2014.
A “narrativa pela metade” de Lula explicita um paradoxo da democracia. Temas de gestão pública são, frequentemente, complexos, mas o discurso político requer simplificação. As pessoas dificilmente perderão um episódio de House of cards, ou uma boa cerveja, no fim do dia, tentando entender se as pedaladas foram uma “operação de crédito” disfarçada, e, portanto, vetada pelo artigo 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal, ou um simples “inadimplemento”, mera “tecnicalidade contábil”, como escutei de um intelectual amigo, dias atrás. Tudo funciona, no fim do dia, como um convite à irresponsabilidade, fiscal e hermenêutica. Talvez seja este “estado de irresponsabilidade” que democracias maduras aprendem a superar, com o tempo.
Em maio de 2000, o PT votou contra a Lei de Responsabilidade Fiscal. Dois meses depois, o partido entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, no Supremo, contra a Lei. A “narrativa” usada, à época, pelo partido, era de que a Lei faria mal aos trabalhadores. Tratava-se de uma imposição da “austeridade”, do FMI, do mercado financeiro, aquelas coisas de sempre. Cinco anos depois, já no governo, o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, fazia autocrítica da posição do partido, dizendo que a responsabilidade fiscal havia se tornado “um valor da sociedade, de caráter suprapartidário e acima de questões pessoais”.
Fonte: Revista Época
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