Entre mortos e afogados, flutua impávida a estrutura do poder real
A produção
nacional de cadáveres vai de vento em popa. Não falo dos milhares
sucumbidos diante da violência explícita ou implícita que toma conta do
País. Neste momento, o sistema de poder e do dinheiro, a fonte de toda a
violência, prepara as exéquias de mais um cadáver notório.
O epitáfio de Eduardo Cunha
é estampado em editoriais que alteiam a voz do moralismo para esconder a
cumplicidade do defunto, um servidor fiel daqueles que agora promovem a
sua liquidação moral e política. Diria o personagem de Lampedusa no Leopardo: “É
preciso mudar para que tudo continue como está”. O transformismo à
brasileira é mais cruel: “É preciso assassinar os súditos mais nobres
para preservar a reprodução das engrenagens do poder”. Os porta-vozes do
establishment nativo se encarregam do conhecido esporte, o chute ao cadáver.
No Congresso e
fora dele, os maganos e maganões da República já preparam requintados
pontapés na carcaça de quem, afinal, serviu e serve tão bem aos seus
interesses e apetites. Foi assim, diga-se, que escaparam do naufrágio do
regime militar e foram entronizados na democracia como corifeus das
liberdades.
Os fâmulos de Eduardo enfrentam, porém,
uma dúvida terrível: não sabem se, de fato, o cadáver está bem morto.
Sendo o defunto notório e possuidor de amplos e reconhecidos saberes
sobre as mazelas da política nativa, os estragos de uma ressurreição ou
de um último suspiro podem ser pavorosos. Imagino as angústias que nesta
hora oprimem os corações de alguns acusadores de ocasião. Como
pistoleiros de aluguel, só vão sossegar o espírito quando convencidos de
que o cadáver está completamente morto. Não podem fazer outra coisa
senão esperar sua defunção definitiva. Mas aqui só há uma certeza
possível: não há como evitar o estrebucho político do moribundo.
Então caberia pesar as conveniências do
assassinato de um personagem tão emblemático, uma encarnação perfeita
dos vícios e das virtudes do sistema dominante. Os vícios são muitos.
Deixo à imaginação do leitor o trabalho de enunciar o elenco. Quanto às
virtudes, dentre as poucas sobressai a capacidade de reproduzir as
alianças de poder à custa da descaracterização humilhante e trágica dos
que alegam se opor a tal estado de coisas. Aí estão, prostradas e
subjugadas, estraçalhadas, as instituições incumbidas de promover a
mediação democrática.
A democracia dos
patrícios, observada de uma perspectiva realista e sombria, revela a
enorme capacidade de sobrevivência dos poderes dos donos. Governo após
governo, mudam os métodos, mas não os rumos, sequer os pretextos. Há que
se admirar o requinte dos poderosos nos cuidados de preservar pessoas
notoriamente comprometidas com a truculência e as malfeitorias do
passado. Aí estão os sobreviventes de outros naufrágios da República a
perorar sobre as virtudes da dita-cuja.
Elementar, meu caro Watson, entre mortos e afogados flutua
impávida a estrutura do poder real, esse contubérnio entre o dinheiro e
a política. Mandam e desmandam os mesmos grupos de sempre, reforçados
agora pela presença dos yuppies cosmopolitas da finança
globalizada. A grande inovação dos tempos, além da internet e do
celular, é a porta giratória entre as mesas de operação das instituições
financeiras e as burocracias econômicas executoras dos projetos e
programas da privataria. Nesse bloco hegemônico não faltam os serviçais
da mídia, infatigáveis em apresentar esses companheiros de jornada como
portadores de um saber superior, o único capaz de assegurar, aos olhos
dos mercados financeiros, a credibilidade da política econômica.
Mais do que isso, as
normas do mercado passaram a ditar as regras da vida política. No
Brasil de hoje, essa lógica fatal vem contaminando as instâncias
decisivas do poder estatal. O sistema partidário e o financiamento das
campanhas eleitorais parecem engendrados com o propósito de transformar o
Congresso num mercado de balcão, onde os gritos de “compro” e “vendo”
tornam ridícula a hipocrisia dos discursos moralistas dos plenários.
O arbítrio, o favorecimento, o segredo, a
obscuridade e o nepotismo eram os demônios que os valores da República
restaurada pretendiam exorcizar. Pois os curupiras da Pátria Amada estão
aí, livres e folgazões, gargalhando sobre as nossas incríveis
esperanças. Nesta coluna, reescrevo um artigo
publicado por ocasião da renúncia do então senador Antonio Carlos
Magalhães. Mudam as máscaras, mas os personagens são os mesmos. Ao
contrário do que se divulga, os senhores tornaram-se mais ferozes. Mas
aprenderam a usar métodos mais sutis e eficientes para torturar
coletivamente os cidadãos com as técnicas da desinformação, do massacre
ideológico e da “espetacularização” da política.
Por: Luiz Gonzaga Belluzzo - Carta Capital
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