A Fiocruz, a Anvisa e o Ministério da Saúde não se entendem. E grávidas do país inteiro continuam sem acesso ao exame rápido para detectar o zika, que deveria ter chegado em fevereiro
O obstetra Olimpio Moraes Filho viveu os piores momentos da epidemia do vírus zika, que passou a assustar o Brasil e o mundo em novembro de 2015. Ele administra uma maternidade no Recife ligada à Universidade Estadual de Pernambuco, Estado que concentra um em cada quatro dos 1.384 casos de microcefalia confirmados no país.
Ele estava lá quando grávidas começaram a chegar com sintomas de uma doença que, até poucos meses antes, não era comum. Quando ultrassonografias passaram a diagnosticar com frequência microcefalia em fetos. Quando uma onda de pânico assolou gestantes ao se relacionar o novo vírus transmitido pelo Aedes aegypti à malformação congênita que impede o desenvolvimento normal do cérebro.
Seis meses se passaram, o mundo entrou em alerta com a epidemia que se espalhou por 46 países e o Ministério da Saúde divulgou seu plano para enfrentar o zika. Mas, no hospital em que Moraes Filho trabalha, a situação não melhorou: os casos de microcefalia continuam a ser diagnosticados e os médicos seguem sem respostas para as grávidas que chegam com sintomas, como vermelhidão na pele, semelhantes aos causados pelo zika. Moraes Filho e seus colegas contam com as mesmas ferramentas de seis meses atrás: colher uma amostra de sangue da paciente e enviar a um dos 12 laboratórios públicos no país capacitados a procurar vestígios do material genético do vírus. O resultado demora um mês – e isso quando há resultado. “Só 20% dos testes que mandamos estão voltando”, diz Moraes Filho. “O volume é muito grande, e o governo não se preparou. Os laboratórios públicos não dão conta.”
Não deveria ser assim. Em janeiro, o ministro da Saúde à época, Marcelo Castro, afirmou que as gestantes contariam em breve com um novo teste. Com ele, em até oito horas, é possível detectar os vírus zika, da dengue e da febre chikungunya. O novo teste ganhou o apelido de “três em um”. A expectativa era de que começaria a ser distribuído em fevereiro. O fim de maio se aproxima e, até hoje, não há notícia do teste. O motivo é a falta de entendimento entre dois órgãos vinculados ao Ministério da Saúde e o próprio ministério, sobre as etapas regulatórias necessárias para liberar o exame. É o governo brigando com o próprio governo em meio a uma situação de emergência pública em saúde.
O anúncio inicial da novidade foi feito em janeiro, por duas entidades: a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), de pesquisas em saúde, ligada ao ministério, e o Instituto de Biologia Molecular do Paraná. Foram encomendados 500 mil kits. A Fiocruz diz que teria condições de produzir e distribuir os kits imediatamente. Seriam fabricados em sua unidade conhecida como Bio-Manguinhos, no Rio de Janeiro, responsável pela produção de vacinas, medicamentos e substâncias químicas usadas em exames, chamadas reagentes.
O problema é que a Fiocruz acreditava que seu teste não precisaria passar pela aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, responsável por avaliar medicamentos e dispositivos médicos usados no Brasil. “Houve uma reunião na Fiocruz com o ministro Marcelo Castro, em janeiro”, diz Rodrigo Stabeli, vice-presidente de pesquisa e laboratórios de referência da Fiocruz. “Foi perguntado a ele: ‘Estamos em emergência. Podemos padronizar um teste que será distribuído não comercialmente em laboratórios públicos. Vai precisar passar pela Anvisa ou não?’. Ele respondeu que não”, afirma Stabeli.
A Fiocruz entendeu, inicialmente, que o teste “três em um” se enquadrava dentro de uma categoria de exames, prevista por uma resolução da Anvisa, que elimina a necessidade de passar por um processo de aprovação sanitária. São os testes “in house” – desenvolvido e usado pelo mesmo laboratório. Por isso, a Fiocruz se surpreendeu, posteriormente, quando foi informada pela Anvisa de que deveria submeter o teste ao processo de registro na agência. Segundo a Fiocruz, essa informação foi passada por um técnico da Anvisa a um técnico da Bio-Manguinhos em fevereiro. O Ministério da Saúde afirmou que tudo não passou de um “mal-entendido”. E que a aprovação é, sim, necessária.
De acordo com a Anvisa, o teste “três em um” não pode ser considerado do tipo “in house”. “Ele não será realizado apenas em um laboratório, ele será distribuído para outros laboratórios públicos”, afirma Jarbas Barbosa, diretor presidente da Anvisa. “O Ministério da Saúde terá de comprá-los. Nesse caso, precisa de registro.”
A Fiocruz discorda. “Não há venda. O Ministério da Saúde financia os custos de produção dos testes, a Fiocruz fabrica e o ministério distribui no sistema público”, afirma Cláudia Martins, assessora de gestão da vice-presidência de pesquisa e laboratórios de referência da Fiocruz. Para atender à exigência da Anvisa, a Fiocruz segue trabalhando nos documentos necessários para solicitar o registro à Anvisa. A previsão é de que o pedido seja entregue até o fim de maio. O prazo para a aprovação é incerto. A Anvisa pode pedir mais informações a Fiocruz, caso considere insuficientes ou incompletas as que constarem do documento. “Se não houver necessidade de complementos, o registro deve sair em menos de dois meses”, afirma Barbosa, da Anvisa. “Tudo relacionado ao zika tem prioridade.” Ainda que o processo transcorra sem nenhuma intercorrência e o teste triplo seja aprovado até julho, serão cinco meses de atraso.
Atualmente, os testes genéticos na rede pública usam reagentes importados, comprados pelo Ministério da Saúde. Neste ano, foram gastos R$ 6 milhões. As substâncias foram compradas de quatro empresas estrangeiras e de quatro empresas nacionais, filiais de empresas estrangeiras. O exame desenvolvido pela Fiocruz usa reagentes nacionais, o que baixará em 50% o custo do teste. Além disso, como é um kit pronto, que dispensa a mistura de reagentes, é mais fácil de usar e pode ser feito em mais laboratórios. O número de laboratórios públicos que fará o exame passará de 12 para 27. Isso deverá acelerar a entrega dos resultados.
Para Stabeli, da Fiocruz, a confusão burocrática que deixou milhares de pacientes sem acesso a testes rápidos para o zika é causada por interesses comerciais travestidos de excesso de zelo. “A partir do momento em que se coloca um teste feito por uma instituição pública nos laboratórios públicos, reduzindo a compra de testes externos, o país deixa de comprar de uma empresa e ela sai de um mercado para o qual vendia antes”, afirma Stabeli. “Deve ter havido pressão sobre a Anvisa para fazer o teste da Fiocruz passar pela aprovação. Com isso, empresas continuam ganhando ao vender para o ministério”, diz Stabeli. “A Fiocruz em nenhum momento pensou em entrar em um jogo comercial. Essa morosidade prejudica quem precisa agora dos testes.” O diretor presidente da Anvisa, Jarbas Barbosa, rebate a acusação. “Não podemos ter exigências diferentes para produtos fabricados por empresas privadas e por instituições públicas. A Fiocruz não pode querer baixar o sarrafo. O cidadão tem direito a um produto de qualidade.”
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A importância de submeter medicamentos, exames e dispositivos médicos a avaliações de segurança e eficácia não está em discussão. Mas são absurdas a confusão de informações entre instituições públicas, durante uma situação de emergência, e a incapacidade de definir prazos para agir. “É preciso ter canais de comunicação mais ágeis entre a Fiocruz, que desenvolve o teste, e a Anvisa, uma agência reguladora”, diz o epidemiologista Gustavo Bretas, consultor de doenças transmissíveis da Organização Pan-Americana da Saúde.
A confusão mantém o país dois passos atrás do vírus. O teste genético da Fiocruz seria um belo avanço. Contar apenas com testes genéticos, porém, não é a melhor estratégia para diagnosticar o vírus zika. Eles procuram traços do vírus no sangue ou na urina do paciente – usualmente detectáveis no período em que os sintomas se manifestam e o doente procura atendimento. Mas 80% dos infectados não apresentam sintoma nenhum.
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Para dar uma resposta definitiva a grávidas que temem ter sido infectadas sem perceber e entender melhor a circulação do vírus pela população, o mais indicado é o teste que procura anticorpos específicos. Eles são produzidos pelo organismo em resposta ao vírus (leia o quadro). “Precisamos ter esses testes disponíveis na rede pública”, diz a obstetra Melânia Amorim, que trabalha no Hospital Municipal Pedro I, em Campina Grande, na Paraíba. A Fiocruz desenvolveu um teste desse tipo, em fase de análise pela Anvisa. O Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo também desenvolveu um exame assim, prepara-se para submetê-lo à Anvisa e espera que ele esteja aprovado em até um ano. Os dois testes sorológicos, feitos em parceria com empresas privadas, serão vendidos. O Ministério da Saúde terá de negociar a compra para distribuí-los nos laboratórios públicos, se quiser e se puder. Estamos longe de obter resposta para a pergunta mais básica em uma epidemia – onde está o vírus?
Aedes aegypti
Fonte: Revista Época
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