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sexta-feira, 21 de outubro de 2016

A partir de certo ponto, a delação vira o outro nome da impunidade

 [que fique registrado nosso protesto: se todos os bandidos tem direito à delação premiada, qual a razão do Cunha não ter? Vamos ser justos; o Cunha tem todos os direitos de qualquer um dos acusados na Lava-Jato e em outras operações, ou ele deve ser discriminado.
Cassar direitos ao Cunha é algo imoral, beira o fanatismo no desejo de punir de forma diferenciada o ex-parlamentar.
Cunha tem direito a todos os beneficios concedidos aos demais acusados, o que inclui o de exercer o direito da delação premiada.
Qualquer outra forma de tratar o ex-deputado é diferenciar os iguais e isso é no mínimo inconstitucional.]

É preciso estabelecer um marco temporal para as delações. Antes que comecemos a ser personagens secundários de um enredo surrealista, de final aberto, que está sendo escrito lá em Curitiba. Explico, claro!


Eduardo Cunha está preso, e há quem espere que opte pela delação premiada. Existe a mesma expectativa em relação a Antonio Palocci. O ex-deputado, especula-se, pode alvejar a cúpula do governo Temer e, quem sabe?, arranhar o próprio presidente. Se arrastá-lo para o olho do furacão, melhor. "Melhor para quem?" Os esquerdistas ainda não sabem, mas estão na fase da vingança moral, quando o desejo de retaliação fala mais alto do que qualquer apelo racional. No que respeita ao ex-ministro petista, a aposta é óbvia: se ele falar, e se a força-tarefa considerar satisfatório o que diz, então Lula se encontraria, finalmente, com o seu destino.


Mas esperem. Só por hipótese, vamos seguir nessa trilha. Digamos que Cunha se livre de uma pena pesada porque entrega uma penca de parlamentares, de ministros e o próprio presidente da República. Nada impede que estes também optem pela... delação premiada, ora bolas! A menos que se parta do pressuposto de que os alvos de Cunha, todos certamente menores e menos poderosos do que ele próprio, eram os chefes. Seria uma tolice. Ou alguém supõe que, mesmo na condição de vice-presidente da República e presidente do PMDB, Temer chegou a ser mais influente do que Cunha nesse estranho mundo? Ora...


E se Palocci entregar Lula e mais alguns companheiros? Poderá o próprio ex-presidente colaborar, então, com a investigação em nome da redução de uma eventual pena? E quem o chefão petista poderia delatar? Talvez o Azevedo... Aquele a quem encomendava esfirras quando estava no sítio de Atibaia.


Notem que a lógica da delação premiada, como está sendo aplicada por aqui, supõe existência de um "cérebro" a ser descoberto e denunciado, que seria a razão última das coisas. E não adianta o antipetista fanático gritar que esse centro irradiador é "Lula" porque, por óbvio, alguém como Cunha, por exemplo, não lhe devia vassalagem. E nem o próprio deputado cassado poderia ser o "cérebro" de sua turma, ou não faria sentido especular sobre sua delação premiada.


Ou se estabelece um marco temporal para as delações da Lava Jato, ou ainda veremos Sergio Moro e Deltan Dallagnol a convocar uma entrevista coletiva para anunciar, daqui a uns 50 anos (muitos de vocês verão, quero dizer, eu não!), a "causa não-causada" da corrupção no Brasil, o próprio capeta, o Mal Primitivo. Três das 10 medidas contra a corrupção já carregam certo sotaque de paladino e de cruzado, apelando a um furor de purificação que só os eleitos pela Divina Força sentem lhe queimar no peito.


Cunha delate, se achar melhor, quem bem entender. Quem ele pode denunciar acima de si mesmo em sua área de influência? Ou o modelo moralizador em curso lhe daria benefícios para que acusasse gente menor do que ele próprio? Mais: é razoável que decida agora, depois de tudo o que já sabe que os outros sabem, submeter a narrativa a torções que seriam obviamente de seu interesse?


A Lava Jato não tem de parar de investigar. Mas é evidente que o ciclo de benefícios para delatores tem de chegar ao fim. Concedê-los a Cunha já me parece essencialmente imoral. Se fez o que o MPF diz que fez, que pague. Ou a operação ainda acaba sendo o reino da impunidade dos graúdos.

Fonte: Reinaldo Azevedo - Coluna na Folha de S. Paulo


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