Quando ouvi, pela primeira vez, que os hackers da Lava-Jato tinham sido
presos, tive muitas dúvidas. Processos assim sigilosos dependem da
polícia. Ela é quem divulga a conta-gotas aquilo que considera
inofensivo para o curso das investigações. Lembrei-me de uma guia na Caverna do Diabo, no Vale do Ribeira. Ela me
disse que alguns pontos da caverna eram escuros, mas era preciso tirar
partido disto: as formas escurecidas estimulam nossa imaginação.
E lá fui eu no barco para a Ilha Grande remoendo as informações que
chegavam aos poucos. O advogado de um dos suspeitos disse que ele
negociava bitcoins, apesar de terem sido encontrados R$ 100 mil
escondidos em casa. Lembrei-me daquela velha história: em nosso país, as putas gozam, os
traficantes se viciam, e os mercadores de bitcoins, possivelmente,
escondem dinheiro nos colchões. Parecia verossímil. Quando surgiram os primeiros indícios de que
realmente tinham hackeado o telefone de Moro, pensei ainda: e se fossem
apenas alguns dos hackers, os menos sofisticados que caíram na rede? Descartei essa hipótese. Afinal, o telefone de Moro não pode ser uma
espécie de piquenique de hackers. Deve ter sido um grupo apenas.
Muito rapidamente, com a confissão dos suspeitos, as evidências nas
nuvens, não tive mais dúvidas: caso resolvido. Mas aí surgiram dúvidas
novas. Foi eficaz a ação da PF: demonstrou que está equipada no momento
para rastrear e encontrar os autores do crime. Um alívio para nossa
privacidade. Alívio parcial, é verdade. A PF tem como apurar, empregou
40 homens e dedicou-se intensamente ao trabalho.Será possível o mesmo empenho quando o hackeado defende apenas sua
privacidade de pessoa comum, devassada em suas frases cotidianas,
bobagens, mas que podem ter inúmeras consequências emocionais? Minha
sugestão é que sempre haja empenho, no mínimo, para treinar a capacidade
de solucionar casos mais complicados.
Mas, ainda assim, sou o reticente quanto ao futuro da privacidade. Acho
ingênuo demais confiar apenas na proteção policial. É preciso sempre na
internet ter um Sancho Pança interior que nos lembre: olhe bem, mestre;
olhe bem o que está falando ou escrevendo. Nossos grandes irmãos estão nos olhando por todas as frestas. Pensou em
comprar um simples chapéu, e sua timeline será inundada com ofertas.
Dificilmente seus hábitos de consumo passam ao largo.Dizem que cerca de mil pessoas foram atingidas. Bolsonaro, Alcolumbre,
Paulo Guedes. Não posso imaginar o que pretendiam fazer com essa
sinfonia de vozes da República.
Moro teria afirmado para o presidente do STJ que as mensagens seriam
descartadas. Como descartar as mensagens e, simultaneamente, provar que
existiram e aplicar a pena pela multiplicidade do crime? O que estava em jogo no grande auê que se formou era comprometer
Moro e favorecer a libertação de Lula. Uma proposta modesta se
considerarmos o potencial que essa incursão pelos telefones de
poderosos teria se os hackers fossem, por exemplo, interessados em
abalar a segurança nacional, coletando diuturnamente os dados,
analisando-os e usando-os a seu favor.
O tema da segurança cibernética ainda não subiu realmente à agenda. De
vez em quando, passo pela TV Senado, ouço alguns discursos esparsos.
Sinto pela ausência de reação que a maioria dos parlamentares ainda
considera isto um tema do futuro. De fato, num país em que um sargento entra com 39 quilos de cocaína num
avião da comitiva presidencial, o tema da segurança cibernética pode
parecer distante. Mesmo acreditando nisso, não se pode ignorar que autoridades tratam de
questões de Estado, e a comunicação entre elas tem importância para o
país.
O propósito do hacker era combater a Lava-Jato, como ficou claro também
em suas postagens na rede. Mas ele gosta de dinheiro, deu alguns golpes,
tinha atalhos para entrar em contas bancárias. Mesmo se conseguir
provar que estava apenas numa cruzada pela justiça, era um tipo ideal
para ser contatado para um trabalho puro de espionagem.Claro, não estamos em guerra, não se disputam com fervor nossos
segredos nacionais. Mas existe uma linha divisória entre um país
pacífico e um país de ingênuos.
Blog do Gabeira - Fernando Gabeira
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