Qual é o tipo de esquerda que se alinha com os privilegiados de funções públicas e abandona os que não usufruem os mesmos privilégios? [óbvio que a brasileira;
tão incompetente que ainda não descobriu, depois da surra que o presidente Bolsonaro lhe aplicou nas eleições passadas, que rumo tomar.
Vale destacar que a esquerda sempre foi pusilânime, após a surra mais covarde ficou.]
A reforma da Previdência terminou, no campo da esquerda, por provocar
desalinhamentos entre os seus membros, com deputados se demarcando da
posição de seus respectivos partidos, sobretudo no PSB e no PDT, com PT,
PSOL e PCdoB mantendo a fidelidade de seus parlamentares. Os primeiros
mostraram uma salutar desavença interna, os últimos mantiveram-se firmes
em suas origens leninistas, em suas várias vertentes.
Contudo, para além do problema partidário de ordem conjuntural, com
ameaças de punições e expulsões, lideradas por chefões partidários
fazendo o seu teatrinho, existe uma questão de monta, concernente ao que
significa ser de esquerda. Ou seja, qual é o tipo de esquerda que se
alinha com os privilegiados de funções públicas e abandona os que não
usufruem os mesmos privilégios? Será que a mensagem da esquerda
brasileira – e para além dela – é uma mensagem particularista,
corporativa?
A mensagem da esquerda, em sua vertente marxista, era efetivamente
universal. Estava voltada para a emancipação da classe trabalhadora,
naquele então denominada proletária, e, por intermédio dela, da
humanidade. A defesa dos proletários se faria por sua libertação das
amarras do capitalismo, instituindo um tipo de sociedade cuja
característica central seria a igualdade em todos os níveis, sem nenhum
tipo de particularismo, nem de interesse particular.
Para o presente propósito, não cabe a discussão sobre a exequibilidade
ou não dessa proposta, mas tão somente ressaltar sua universalidade, sem
a qual ela se torna claramente ininteligível. A contraposição principal
se estabelecia em relação aos burgueses, que deveriam ser eliminados
ou, em sua versão mais branda, tornados iguais. Não se tratava, na
posição marxista, de defender os interesses corporativos de funcionários
públicos em detrimento dos outros trabalhadores.
Em linguagem corrente: não tem cabimento político, nem moral, que os
trabalhadores comuns, com ganhos pequenos, financiem o regime dos
funcionários públicos, mediante aposentadorias precoces, integralidade
de seus vencimentos e paridade, entre outros benefícios. Seria a própria
mensagem da esquerda que estaria sendo traída, em proveito de um
punhado de privilegiados, que se arvoram, hipocritamente, em defensores
dos “direitos sociais”, como se fossem os direitos de todos os
trabalhadores.
Os deputados rebeldes têm, dentre outros méritos, o de terem resgatado
uma mensagem de cunho universal, abandonando o corporativismo e o
particularismo de seus respectivos partidos. Os que não se rebelaram
ficaram atados à usurpação ideológica. Pensaram eles na sociedade como
um todo, não no caráter restritivo da conjuntura partidária. Partido, em
sua definição, defende uma parte, porém devendo integrá-la ao interesse
coletivo, sem o qual cai nas armadilhas do corporativismo e do
fisiologismo. A pauta previdenciária é uma pauta da sociedade e do Estado, não apenas
dos partidos políticos. Não se trata de ser a favor ou contra o governo,
mas de ser ou não a favor da coletividade, do bem maior. O cálculo
meramente partidário é particular, restrito às suas lideranças e a seus
interesses. Não tem nenhuma dimensão social.
Do ponto de vista da esquerda em geral, a mensagem dos rebeldes foi de
renovação, de sacudida das carcaças partidárias. Pensaram no todo, e não
na parte; no coletivo, e não no particular. Apesar das incompreensões
de seu gesto, estão proclamando por um reposicionamento da esquerda e de
seus respectivos programas. Democracias contemporâneas dependem de uma esquerda moderna e plural.
Dependem de uma esquerda que pense os desafios do mundo atual,
acompanhando as enormes mudanças políticas, econômicas, sociais,
culturais, tecnológicas e científicas das últimas décadas, que
transformaram a face da humanidade. Pense-se no conceito marxista e
positivista de proletário, para melhor aquilatarmos a grande
transformação. Perdeu seu significado, quanto mais não seja, porque o
mundo mudou. O que tinha a esquerda a propor na reforma da Previdência? Além do não
dogmático, voltado para a defesa dos privilegiados e de suas
corporações, tinha algo a dizer? Não poderia ter apresentado uma
proposta mais universal do que aquela que, após laboriosas negociações,
foi finalmente aprovada em primeira votação? Não teria sido o momento de
a esquerda dizer não aos privilegiados e sim aos trabalhadores em
geral?
Em vez disso, optou por abandonar os trabalhadores, refugiando-se numa
suposta fidelidade partidária e doutrinária. Ora, é precisamente essa
doutrina que está em questão. Ela não responde ao espírito do tempo,
funciona como óculos às avessas, que só vêm para dentro, retirando-se do
exterior. O PT continua firme em suas posições esquerdizantes, à sua origem
leninista, apesar de seu namoro com a social-democracia no primeiro
governo Lula. O PCdoB e o PSOL seguem na mesma linha dogmática. O PSB
tem também um programa partidário de cunho marxistizante, cuja leitura
remete a uma peça de ficção política, própria de outro tempo. O PDT,
originário do antigo PTB, por sua vez, é fruto de outra concepção,
oriunda do trabalhismo inglês e, nesse sentido, já não segue a
orientação leninista, algo próprio, então, dos comunistas ingleses.
Historicamente, correspondem ambos os partidos a uma primeira versão da
social-democracia no País, embora tampouco tenham seguido o caminho da
modernização. Haveria aí uma proximidade com os tucanos, com a atual
social-democracia brasileira, por terem fontes comuns.
Os debates da reforma da Previdência, extremamente pobres na perspectiva
das esquerdas, mostraram os impasses de uma modernização necessária,
mas claudicante e já atrasada. O seu dilema poderia ser assim traduzido:
O “proletários de todo o mundo, uni-vos!” tornou-se “privilegiados,
uni-vos!”. Triste destino!
Opinião - O Estado de S. Paulo - Denis Lerrer Rosenfield - Professor de filosofia na Ufgrs
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