Palavras ao vento
O Globo
A falta de cuidados com as palavras pode trazer grandes prejuízos políticos, como mostram precedentes
O presidente Jair Bolsonaro vai levar muito tempo para se livrar do
lapsus linguae que cometeu chamando os nordestinos de “paraíbas”, numa
conversa com microfone aberto sem que soubesse. As distrações na linguagem falada podem revelar preconceitos arraigados,
ou serem simplesmente equívocos desastrados. Sujeitas a manipulações
políticas. Ontem, na sua primeira viagem ao Nordeste, Bolsonaro teve que
se explicar diversas vezes, e o fez com criatividade.
Dizer que “somos todos paraíbas” foi uma boa saída. Já usar um chapéu de
boiadeiro foi repetir um gesto político tradicional. No Rio, onde
Bolsonaro fez sua vida política, embora seja paulista, chamar
nordestinos de “paraíbas” tem um sentido pejorativo histórico, devido às
migrações nordestinas para a Região Sudeste do país, em busca de
emprego e fugindo da seca. Em São Paulo, o menosprezo vai para os “baianos”, pela mesma razão.
Bolsonaro também falou “somos todos baianos” ontem, bem orientado para
que a tentativa de correção de seu lapso de linguagem tivesse alcance
nacional.
O general Hamilton Mourão, vice de Bolsonaro, sofreu muito com esse tipo
de erro durante a campanha, ou revelando desejos recônditos como acabar
com o décimo terceiro salário, ou tratando de temas tóxicos, como
torturas ou autogolpes. No poder, o general Mourão passou a ser cuidadoso com as palavras,
refletindo uma posição mais moderada que o próprio presidente Bolsonaro,
que, incentivado pelo filho Carlos, considerou parte de uma campanha
para colocá-lo como alternativa viável. Carlos chegou a dizer que havia gente no entorno do pai que queria sua
morte. Bolsonaro ecoou esse sentimento paranoico ao perguntar a Mourão
por telefone, quando estava internado devido à tentativa de assassinato:
“Quer me matar?”.
Recentemente, deu parabéns a Mourão por ter conseguido ficar sem dar
entrevistas por uma semana. Como tem mandato pelo voto, tanto quanto
Bolsonaro, Mourão é indemissível, ao contrário de outros militares que
trabalhavam no governo e foram defenestrados, geralmente vítimas de
intrigas palacianas da família do presidente. Ontem, os dois chegaram abraçados para uma cerimônia no Palácio do
Planalto, com Bolsonaro dizendo que estavam “namorando”. Outra
brincadeira frequente do presidente, que distribui beijos e abraços
“héteros”. A falta de cuidados com as palavras pode trazer grandes prejuízos
políticos, como mostram precedentes históricos já relatados aqui na
coluna. Desde o caso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que
tachou de “vagabundos” quem se aposentava cedo, e acabou marcado como
tendo classificado todos os aposentados de vagabundos.
Mas o mais famoso aconteceu em 1945, quando o brigadeiro Eduardo Gomes,
candidato a presidente pela UDN com larga vantagem sobre o candidato
getulista, o general Eurico Dutra, fez um duro discurso contra Getúlio. Disse que não precisava dos votos “desta malta de desocupados que apoia o
ditador”. Segundo relato da historiadora Alzira Alves de Abreu, do
CPDOC da Fundação Getulio Vargas, o getulista Hugo Borghi descobriu no
dicionário que “malta”, além de significar “bando ou súcia”, o que já
era ofensivo, também denominava trabalhadores que levavam suas marmitas
nas linhas férreas, o que atingia mais diretamente os eleitores pobres.
Daí a dizer que o brigadeiro não queria os votos dos “marmiteiros”,
menosprezando os pobres, foi um passo, e o general Dutra venceu uma
eleição perdida. No caso atual, como o lapsus linguae foi cometido fora
da campanha eleitoral, Bolsonaro ainda terá muito tempo e tinta na
caneta para se aproximar dos “paraíbas” e “baianos”. Já anunciou o décimo terceiro para o Bolsa Família, e estuda um abono
para os que o recebem. Uma tentativa de retomar um reduto eleitoral
petista, prejudicada pela fala revelada.
Merval Pereira, jornalista - O Globo
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