O Globo - Janaína Figueiredo
A
revelação por um ex-diretor da Ande (a Eletrobras paraguaia) dos termos
da ata diplomática assinada por autoridades dos dois países em maio, em
Brasília, modificando aspectos da administração compartilhada da hidrelétrica
de Itaipu desencadeou verdadeira tsunami política em Assunção. O presidente
Mario Abdo Benítez ficou à beira de um pedido de impeachment e foi
obrigado a afastar quatro altos funcionários, entre eles o chanceler Luis
Castiglioni, senador colorado mais votado nas eleições de 2018. Segundo
analistas locais ouvidos pelo GLOBO, a crise tornou o atual governo o mais
fraco desde 2003.
Instalou-se
a sensação de que o documento negociado em Brasília, já rechaçado pelo Senado
do país, foi um acordo secreto altamente prejudicial para os interesses do Paraguai
. Ontem, o advogado Tadeo Ávalos apresentou uma denúncia à procuradora-geral do
Estado, Sandra Quiñónez, acusando Castiglioni; o ex-embaixador do Paraguai no
Brasil, Hugo Saguier Caballero; o ex-diretor da Ande Alcides Jiménez, e o
ex-diretor paraguaio de Itaipu José Alderete, de traição à Pátria.
Os pontos
mais questionados pelos paraguaios se referem a limitações que seriam impostas
ao país sobre seu direito de solicitar energia produzida por Itaipu e a redução
da chamada “energia excedente” que seria entregue ao Paraguai. Desde 2007, o
país tem preferência para receber esse tipo de energia, a preços baixíssimos.
As
denúncias públicas feitas por Pedro Ferreira, ex-presidente da Ande que ontem
foi ao Parlamento reforçar suas acusações ao governo de Benítez, acentuaram a
crise e aumentaram as dúvidas sobre como o chefe de Estado conseguirá acalmar
os ânimos. Benítez, do Partido Colorado, foi eleito por margem estreita de
votos e não controla o Parlamento, onde enfrenta a oposição de liberais,
partidos de esquerda e, atualmente, também de amplas alas do próprio partido.
Segundo informações que circularam na imprensa local, correligionários do
presidente teriam apoiado o pedido de impeachment, suspenso temporariamente
após a decisão de Benítez de afastar os quatro altos funcionários que assinaram
a ata de Brasília. — Esta
crise é consequência de erros graves cometidos pelo governo e da incapacidade
dos técnicos de chegarem a um acordo que acabou ficando, pela primeira vez
desde a criação de Itaipu, em mãos da Chancelaria — afirmou ao GLOBO Alejandro
Evreinoff, do Instituto de Altos Estudos Estratégicos (IAEE) e assessor de
Coordenação de Itaipu.
Segundo
ele, “o ponto mais sensível refere-se à energia excedente, que permite ao
Paraguai baixar os custos operacionais de suas empresas e se desenvolver”.
—
Finalmente, estamos igual ou pior que em outubro do ano passado, quando os
técnicos começaram a negociar os termos para 2019. Essa ata não tem validade e
acabou sendo usada para tentar desestabilizar o governo — apontou o
especialista.
Itaipu é
uma questão extremamente sensível para o Paraguai, já que fornece 90% da energia
elétrica consumida pelo país. Com menos de um ano de gestão, sem poder exibir
grandes êxitos e às voltas com o impacto da recessão argentina e a
desaceleração da economia brasileira, Benítez cometeu um erro que já lhe custou
caro. No discurso anual ao Congresso, no começo de julho, o presidente ignorou
a ata de Brasília e agora é acusado de secretismo e traição. O governo
brasileiro considera válido o documento e espera seu cumprimento. - No
Paraguai, a política pode ser vertiginosa, e erros como este podem ter
consequências graves — afirmou o ex-chanceler Ruben Melgarejo Lanzoni, espécie
de assessor externo do presidente.
Num país
que elege seus presidentes em apenas um turno, Benítez venceu as eleições por
pouco e é pressionado por um Congresso que mostrou rápida capacidade de
articulação. O chefe de Estado reagiu rápido, mas analistas como José Tomás
Sánchez se perguntam como esta crise afetou o governista e dividido Partido
Colorado.— Existe
a sensação de que este governo nunca começou e, agora, a incógnita sobre a
guerra colorada — frisou Sánchez.
Desde que
a crise veio à tona, uma pesquisa sobre a hidrelétrica e a relação entre Brasil
e Paraguai desde 1973 realizada pelo Centro para a Democracia, a Criatividade e
a Inclusão Social viralizou nas redes sociais. O trabalho, coordenado por
Miguel Carter, tem números que só aumentaram a irritação social. A pesquisa de
Carter diz que entre 1985 e 2018 o Paraguai deixou de ganhar US$ 75,4 bilhões
por vender a energia que não consome ao Brasil, a preços abaixo dos valores de
mercado. O trabalho mostra, ainda, que em todos esses anos de funcionamento da
hidrelétrica o Paraguai usou 7,6% da energia produzida.— Há um
amplo consenso no país de que o tratado e esta última negociação foram
amplamente desfavoráveis aos paraguaios — afirmou Carter.
Em
Assunção, o documento selado em Brasília é chamado de “ata secreta da traição”,
e mesmo que nada do que foi negociado tenha saído do papel, sua divulgação
debilitou um governo que já era vulnerável e que muitos se perguntam como se
sustentará por mais três anos.
O Globo - Janaína Figueiredo - Colaboraram Manoel Ventura e Eliane Oliveira, de Brasília
Nenhum comentário:
Postar um comentário