Maria Cristina Fernandes
Enquanto a esquerda se divide, Bolsonaro aprende a compor
Numa disputa em 5.569 municípios, sempre será possível comprovar uma tese e seu contrário, principalmente na eleição mais apartada da história. Uma parte dos eleitores está trancada na autossuficiência de seu ensino e trabalho remoto, plano de saúde e entregas em casa. Outra, mais numerosa, se depara com o despreparo das escolas públicas para o ensino à distância, de um transporte público desaparelhado para um serviço sem riscos, de postos de saúde desorientados pela ausência de uma política nacional de prevenção à pandemia e de um Estado que pretendeu anestesiar tudo isso com um auxílio financeiro.
É
difícil imaginar que tamanhas fissuras num colégio eleitoral de 147.918.498
pessoas mantenham quaisquer teses em pé, mas aí estão muitas a pontificar. A
primeira delas é a de que o mote da anti-política, que moveu as eleições de
2018, perdeu força. Três indícios respaldam esta tese: o presidente Jair
Bolsonaro abraçou [sic] a velha política e respira sem ajuda de aparelhos; estrelas
da renovação, como os governadores Wilson Witzel (RJ), Carlos Moisés (SC) e
Wilson Lima (AM), caíram em desgraça; e, finalmente, a gravidade da pandemia
levou o eleitor a revalorizar a experiência de políticos testados.
A
liderança dos prefeitos Alexandre Kalil (PSD), em Belo Horizonte, Rafael Greca
(DEM), em Curitiba, Marquinhos Trad (PSD), em Campo Grande, dos ex-prefeitos
Eduardo Paes (MDB), no Rio, e Edmilson Rodrigues (Psol), em Belém, e do
ex-governador Amazonino Mendes (Podemos), em Manaus, serve aos arautos da tese.
Por outro lado, se houvesse tanto conformismo assim com a política tradicional,
o candidato do Psol em São Paulo, Guilherme Boulos, não estaria tão à frente de
seus adversários de esquerda, todos eles com mais estrada na política. Também
fica difícil explicar, com a tese da revalorização de políticos testados, a
liderança da candidata do PCdoB em Porto Alegre, Manuela D’Ávila, que hoje tem
a soma das intenções de voto de um ex-prefeito, José Fortunati (PTB) e de seu
ex-vice, Sebastião Melo (MDB).
É
bem verdade que pesquisa não é voto, mas trata-se da disputa mais curta da
história. É, também, uma campanha com poucos ou nenhum debate em que os
candidatos que largam na frente estarão menos expostos ao contraditório. Sempre
podem cair, mas correm mais o risco de tropeçar nas próprias pernas, como, por
exemplo, o deputado federal Celso Russomanno (Republicanos), líder da disputa
em São Paulo com apoio do presidente Jair Bolsonaro, ao dizer que a sujeira dos
moradores de rua de São Paulo os imuniza contra o coronavírus.
A
outra tese é a de que a eleição municipal prediz o desempenho dos partidos nas
eleições proporcionais dois anos depois. A tese não resiste ao resultado das
ultimas eleições. Entre 2012 e 2016, o MDB manteve, com uma variação negativa
de 1%, seu número de prefeituras. Nas eleições gerais (2018) que aconteceram no
meio do mandato desses prefeitos, porém, o partido perdeu metade de suas
cadeiras na Câmara dos Deputados.
O
PSDB chegou a crescer em número de prefeituras entre 2012 e 2016 (15%), mas não
foi capaz de evitar que, na eleição de 2018, perdesse quase metade de suas
cadeiras na Câmara dos Deputados. Com o DEM foi diferente. O partido manteve
relativamente estável o número de prefeituras (-4%) entre as duas últimas
eleições municipais, mas conseguiu aumentar em 38% o número de cadeiras na
Câmara nas últimas eleições. Já o PT teve o maior tombo em número de prefeitos
(perdeu 60%), mas foi capaz de conter as perdas de sua bancada, com uma redução
de 20% na atual composição.
Ainda
que o resultado de uma eleição não explique a outra, este ano os partidos não
têm alternativa senão buscar nesta a sobrevivência para a próxima. Por isso,
batem recordes em número de candidatos. Com a proibição de coligações e a
entrada em vigor da cláusula de desempenho nas eleições de 2022, os partidos
precisam ganhar musculatura com bases municipais capazes de gerar cabos
eleitorais que os livrem da guilhotina.
Esta mudança desfavoreceu qualquer tentativa dos partidos para começar, a partir das eleições municipais, a ensaiar uma frente ampla para as eleições gerais capaz de enfrentar a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. No conjunto dos 96 maiores colégios eleitorais do país, cidades que podem ter segundo turno, o PT disputará sem coligação em 36 delas, como mostrou o Valor (23/9). As mudanças na lei explicam uma parte. O cálculo político das lideranças explica a outra. O do PDT, por exemplo, passa por sedimentar uma aliança capaz de aglutinar o centro e levar, de arrastão, a esquerda, em torno de Ciro Gomes. Foi assim que se frustrou, num domingo de agosto, a derradeira tentativa de se formar uma frente em torno do deputado Marcelo Freixo (Psol), no Rio, cuja disputa é a mais emblemática para o presidente da República e sua família.
O
PT topava retirar a candidatura deputada federal Benedita da Silva, mas o PDT
se recusou a discutir em que termos negociaria a candidatura da deputada
estadual Martha Rocha. No dia seguinte ao encontro combinado, Ciro estava em
Salvador firmando aliança com o prefeito de Salvador, Antônio Carlos Magalhães
Neto (DEM). Sinalizou o mesmo rumo já tomado pelo partido em Fortaleza, onde
rompeu a aliança com o PT, responsável pela aliança que elegeu os atuais
prefeito e governador. Ciro reaproximou-se, depois de décadas em raias
separadas, do senador Tasso Jereissati (PSDB). [senador Tasso: aliar-se ao Ciro Gomes equivale dividir a derrota. Caia fora, enquanto é tempo - a tradição política dos Jereissati o aconselha, e autoriza a pular fora do.] O candidato de ambos, o deputado
estadual Sarto Moreira (PDT), está em terceiro.
Na
disputa de novembro, o eleitor quer, sobretudo, alguém que cuide do espaço e
dos serviços públicos. Leva em consideração o que dispõe hoje e as chances de
melhorar. Isso não impede que se constate a ausência de ensaios para as
movimentações de 2022. Em toda eleição lideranças testam compromissos,
capacidade de se cumprir acordos e a definição de metas em conjunto para a
conquista do poder.
Por enquanto, é a busca de sua manutenção que sai na frente. O presidente sem partido tem se movimentado em Brasília, em suas alianças com o Congresso e o Judiciário, com muito mais foco para formar uma frente ampla para 2022, do que a miríade de partidos que um dia compuseram a esquerda.
Maria Cristina Fernandes, jornalista - Valor Econômico
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