Análise Política
O sistema eleitoral brasileiro produz amiúde um cenário contraditório,
resultado de certo paradoxo: enquanto a eleição presidencial costuma
produzir entre duas ou quatro candidaturas que atingem massa crítica, a
disputa para o Congresso Nacional sempre resulta num quadro pulverizado.
A cláusula de desempenho promete resolver o problema no médio e no longo
prazos, mas será preciso ver se, quando o remédio finalmente funcionar,
o paciente ainda estará vivo.
Haveria como corrigir. A cura radical poderia vir de um voto em lista
fechada nos estados, acabando, ao mesmo tempo, com a desproporção entre
as representações estaduais na Câmara dos Deputados. Ou então
implantando o voto distrital misto, com uma certa reserva (talvez 20%)
para as listas fechadas.
Se se quisesse aplicar um remédio imediato que não demandasse grandes
quóruns legislativos, seria simples: calcular em cada estado as bancadas
de deputados federais não mais a partir dos votos dados aos
parlamentares e às legendas para a Câmara, mas dos votos dados aos
postulantes à Presidência.
Por analogia, as cadeiras nas assembleias seriam calculadas a partir dos
votos para governador. E a composição das câmaras municipais
respeitaria o desempenho dos candidatos a prefeito.
Essa simples alteração obrigaria os partidos a fundir-se ou formar
federações em torno de candidatos viáveis e garantiria que a vontade
popular, expressa na eleição majoritária com muito mais nitidez que na
proporcional, se traduzisse em possibilidade real de governar.
E o curioso é que as segundas formalmente desprezam as primeiras pelo
“fisiologismo”, termo que só é temporariamente aposentado quando o
segundo grupo precisa apoiar algum governo que represente o “mal menor”.
E passa a repaginar como “articulação política” o que sempre tratou
derrogatoriamente.
É natural e humano que essas janelas de oportunidade aticem o apetite
das legendas antes chamadas de fisiológicas, pela momentânea eliminação,
ou ao menos redução, do custo reputacional implicado no que normalmente
seria xingado como “toma lá, dá cá”. É onde estamos.
Ainda mais quando se nota o azeitamento da relação entre o Planalto e o
Judiciário, o que faz suas excelências do Congresso olharem com cuidado
redobrado para a possibilidade de aninhar-se sob as asas do Executivo.
Mas aqui quem me lê poderia fazer uma pergunta: afinal, por que o Executivo precisa fazer tantas concessões?
No mínimo, para garantir que não se formarão massas críticas em torno de
possíveis impeachments. E para evitar, ou ao menos controlar, comissões
parlamentares de inquérito. Agora mesmo, uma competente articulação
política (vou usar a expressão benigna) emasculou ou virou do avesso
CPIs originalmente anti-Planalto.
E tem também o “apoio às reformas”. Seria o caso de estudar como e por
que governos, um atrás do outro, decidem ter uma agenda legislativa que
demanda expressivas maiorias, apenas para, ao fim e ao cabo, e a um
custo altíssimo, colher mudanças legais de efeito apenas relativo.
Verdade que isso faz parte da estranha propensão brasileira a,
simultaneamente, orar no altar da Constituição de 88 e diariamente
revogá-la pela enxurrada de emendas congressuais e decisões do Supremo
Tribunal Federal. O que talvez merecesse um estudo de especialistas na
relação entre política e psicanálise.
É nesse ponto que se acha o governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Para
ter governabilidade (outra expressão bonita que se impõe ao governante
que não quer virar um Luís XVI), precisa abrir espaço a políticos que
nada têm a ver com o que se decidiu na eleição, ou até se opuseram ao
que acabou prevalecendo na urna.
Alon Feuerwerker, jornalista e analista político