A médica e o monstro
[Circo Parlamentar de Inquérito = Covidão]
Diálogo surrealista num tribunal surrealista. Qualquer semelhança com a realidade é mera semelhança.
I— A senhora não respondeu a minha pergunta.
— Eu…
— Não me interrompa! Estou falando, não tá vendo?
— Mas como é que eu vou…
— Cala a boca! Se me interromper de novo serei obrigado a tomar medidas duras contra a senhora.
— …
— Voltando: por que a senhora não respondeu a minha pergunta?
— …
— A senhora está surda? Fiz uma pergunta!
— Já posso falar?
— Ah, tá debochando, né? Sabe o que pode acontecer com quem debocha neste interrogatório?
— Não, só fiquei confusa com as regras…
— Tu tá mentindo!
— Hein? Só disse que fiquei confusa.
— Não interessa o que tu disse! A mentira tá na tua voz!
— Como assim?
— Cala a boca! Não gosto da tua voz! É voz de quem mente!
— Como é voz de quem mente?
— É assim, que nem a sua! Suavezinha, delicadinha, calminha.
— Mas eu sou médica, lido com pessoas vulneráveis e preciso informar num tom que…
— Médica nada! Mentirosa! Esse tom aí é pra enganar os outros! Tanto que não respondeu a minha pergunta.
— Eu respondi…
— A tua resposta não serve! Resposta nessa voz não serve! Não gosto dessa voz! Tudo que tu falar com essa voz é mentira. E quem mente aqui vai preso.
— …
— Tá debochando de novo? Fica caladinha só pra me irritar, né? Cadê o habeas corpus? Tu tem um habeas corpus aí debaixo do braço pra ficar em silêncio?
— Não.
— Claro que não. O STF não ia dar habeas corpus pra uma mentirosa. Mas gostei da tua resposta. Daqui pra frente quero assim: responde só sim ou não. Mais nada. Não aguento mais ouvir a tua voz. Não gosto da tua voz!
— …
— Tá me desafiando?!
— Não.
— Posso imaginar seu sorrisinho cínico debaixo da máscara. Tu tá rindo da minha cara?
— Não.
— Tá achando que tem alguém mais poderoso que eu nessa sala?
— Não.
— Porra, tu só responde “não”! Tudo é “não”! Tu é negacionista!
— Não.
— Cala a boca! Não te perguntei nada. Só fala quando eu perguntar!
— …
— Tá me provocando de novo, né? Esse seu silêncio sonso me irrita. Fala alguma coisa, porra! Mas não fala com aquela tua voz calminha que eu não gosto. Tu só tem essa voz chatinha?
— Sim.
— Não me provoca! Cala a boca! Fala alguma coisa! Silêncio! Responde! Não mente! Não quero mais ouvir essa voz suave de gente mentirosa! Não quero mais ouvir o seu silêncio! Não quero mais olhar pra você sem dizer nada na minha frente! Cínica! Tá me provocando? Fala alguma coisa, porra! Tu tem língua?
— Sim.
— Agora tu só fala “sim”?! Antes tu só falava “não”! É a prova que tu é mentirosa! Cada hora fala uma coisa! Se cair mais uma vez em contradição vou mandar te prender!
— …
— Debochando de novo, né? Não aguento mais olhar pra tua cara! Some daqui antes que eu te arrebente!
— …
— Tá indo aonde?! Parada aí! Não se mova! Tá fugindo? Tu acha que vai fugir de mim assim com essa facilidade? Perdeu a noção do perigo?!
— Não.
— Ah, agora é “não”? Não tinha mudado pra “sim”?! Cada hora tu diz uma coisa? Mentirosa! Não sabe explicar nada, não tem argumento, só fica dizendo sim, não, não, sim… Tá achando que eu sou trouxa, madame?!
— Sim.
— O quê??!! Desacato! Vou acabar com a tua raça! Filma ela! Fotografa ela! Escreve aí, imprensa: vou acabar com essa negacionista disfarçada de médica! Vou destroçar! Vou escalpelar! Vou trucidar! Não vou aceitar esse desrespeito à ética e à democracia!
Resumo da sessão do tribunal surreal: a médica continuou sendo médica, o monstro continuou sendo monstro, a imprensa marrom continuou sendo marrom e a classe médica começou a reagir ao show de horrores com o repúdio do presidente do Conselho Federal de Medicina ao uso do mandato parlamentar para agredir uma respeitada profissional de saúde. Que seja o início do fim da letargia.
Leia também “Checamos: você não existe”
Guilherme Fiuza, colunista - Revista Oeste
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