Correio Braziliense
Famílias de vítimas da covid-19 processam Bolsonaro por conduta na pandemia
Documento aponta que Bolsonaro incentivou o uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19, prejudicou a vacinação no Brasil, estimulou aglomerações enquanto cientistas orientavam o isolamento social e defendeu uma teoria de "imunidade de rebanho" sem qualquer respaldo científico
No fim do ano passado, o advogado Gustavo Bernardes, de 46 anos, enfrentou duras complicações da covid-19. Ele ficou intubado por dias e os médicos chegaram a duvidar se o paciente sobreviveria. "Me despedi da minha família por ligação de vídeo, antes de ser intubado. Um médico chegou a dizer para a minha irmã que achava que eu não resistiria", diz Bernardes à BBC News Brasil.
O advogado se recuperou e recebeu alta hospitalar. Meses após viver o período mais difícil de sua vida, decidiu buscar a responsabilização daquele que ele aponta como o principal culpado pela dramática situação da pandemia no país: o presidente Jair Bolsonaro. Por meio de uma representação criminal na Procuradoria-Geral da República (?PGR), protocolada em 9 de junho, ele pede que seja oferecida uma denúncia contra Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que o presidente seja processado criminalmente pela condução da pandemia.
Bernardes é presidente da Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico). Ele explica que, apesar de a medida protocolada na PGR estar em nome dele, ela representa todas as pessoas que compõem a associação e tiveram quadro grave de covid-19 ou perderam familiares para a doença. "É uma iniciativa coletiva", ressalta o advogado. Ele assinala que a medida foi a forma que membros da Avico encontraram para fazer com que Bolsonaro seja responsabilizado pelo modo como tem conduzido a crise sanitária no país.
A representação afirma que a conduta do presidente da República diante da pandemia é uma "estratégia federal cruel e sangrenta de disseminação da covid-19, perfazendo um ataque sem precedentes aos direitos humanos no Brasil". O documento aponta que Bolsonaro incentivou o uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19, prejudicou a vacinação no Brasil, estimulou aglomerações enquanto cientistas orientavam o isolamento social e defendeu uma teoria de "imunidade de rebanho" sem qualquer respaldo científico. A reportagem questionou o Palácio do Planalto sobre os apontamentos listados na representação da Avico. Porém, não houve respostas até a conclusão deste texto.
'Não aguentava mais a falta de ar'Em novembro passado, Bernardes enfrentou uma batalha pela vida em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de um hospital de Porto Alegre (RS). Após ser diagnosticado com a covid-19, exames apontaram que 25% de seus pulmões haviam sido afetados pela doença. Ele foi internado em 23 de novembro. Nos dias seguintes, o quadro de saúde do advogado piorou cada vez mais. "Chegou um momento em que não conseguia nem segurar o meu celular ou comer. Além disso, sentia uma falta de ar tão grande que nem conseguia dormir", relata o advogado. "Cheguei a falar para um médico que se não fizessem nada, iria desistir porque não aguentava mais a falta de ar", diz Bernardes à BBC News Brasil.
Os médicos decidiram que o advogado deveria ser intubado. Minutos antes, ele se despediu da irmã, que era o principal apoio dele naquele momento, em uma videochamada. "Foi horrível ter me despedido da minha irmã. Disse que não sabia se iria me recuperar, pedi para ela ficar bem e cuidar dos meus sobrinhos", conta. Ele, que se considera uma pessoa saudável e sem fatores de risco para agravar a covid-19, chegou a ser desenganado pelos médicos. Após complicações, o advogado conseguiu melhorar e passou pelo procedimento de retirada do tubo, após 10 dias de intubação.
Bernardes ficou quase um mês internado. Em 20 de dezembro, ele recebeu alta hospitalar e passou a lidar com as complicações deixadas pela covid-19. "Tive lapso de memória, não reconhecia meu corpo, tive dores nas articulações, taquicardia e precisei reaprender a andar. Fiquei na casa da minha família e recebi apoio para evoluir", comenta.
Enquanto Bernardes enfrentava o período de recuperação em casa, uma amiga dele, a assistente social Paola Falceta, começava a viver a fase mais difícil de sua vida. No fim de janeiro, a mãe de Paola, Italira Falceta, de 81 anos, foi internada em um hospital público de Porto Alegre para passar por uma cirurgia cardiovascular.
Após o procedimento cirúrgico, a idosa foi encaminhada para um quarto coletivo na unidade de saúde para se recuperar. A assistente social acredita que foi justamente nesse período que a mãe foi infectada pelo novo coronavírus. "Um dos médicos testou positivo. Depois, escutamos vários outros casos de pessoas que também tinham testado positivo ali. E a minha mãe acabou pegando o coronavírus também", relata Paola.
A assistente social, que passou alguns dias junto com a mãe após a cirurgia, também testou positivo para a covid-19, assim como a irmã dela e um sobrinho. Os três tiveram sintomas, mas se recuperaram. Já Italira não resistiu às complicações da doença. Paola relata que os últimos dias de vida da mãe foram traumáticos. Na época, início de fevereiro, a região Sul do país começava a enfrentar o pior período da pandemia. Italira passou semanas em um quarto de isolamento na unidade de saúde. Não havia vaga em UTI para a idosa, em razão da sobrecarga no sistema de saúde no período.
Paola conta que os médicos disseram que dificilmente Italira sobreviveria às complicações da covid-19. Isso porque, segundo ela, os profissionais de saúde disseram que a situação da idosa era grave por causa da idade dela, por ela ter doença pulmonar obstrutiva crônica e em razão da saúde fragilizada porque ainda se recuperava da cirurgia. Os médicos avaliaram que ela não era elegível para ser intubada. "Falaram que havia um monte de gente precisando (de intubação) e, provavelmente, ela morreria. Eles acabam escolhendo pacientes que têm melhores condições de ser intubados e sobreviver", relata Paola. "Perguntaram para a gente se mesmo assim a gente queria (que ela fosse intubada) e a gente disse que sim, mas mesmo assim não ocorreu. O hospital é ótimo, o problema foi a lotação e a disputa de vida ou morte por causa do colapso da saúde. Isso foi bem nos dias em que houve colapso da saúde em Porto Alegre", acrescenta.
Após semanas, a idosa deixou o isolamento e foi encaminhada para outro quarto, pois foi constatado que ela não estava mais com o coronavírus. Nesse período, diz Paola, Italira já estava extremamente debilitada pelas complicações da covid-19 e os médicos disseram que ela sobreviveria poucos dias. No novo quarto, Paola acompanhou a mãe na noite de 1º de março. Na data, ela ajudou a dar banho em Italira e se emocionou com o quanto a mãe estava fragilizada. Horas depois, na madrugada de 2 de março, a equipe médica constatou que a idosa não tinha mais os sinais vitais. "Aquilo foi horrível. Primeiro uma técnica de enfermagem viu a situação da minha mãe, depois chamou a chefe da enfermagem. Por fim, dois residentes chegaram e confirmaram que ela havia morrido. Foi a pior cena da minha vida", relembra.
Cerca de duas semanas antes da morte da idosa, o pai de Paola, de 82 anos, foi vacinado contra a covid-19. O idoso não havia tido contato com Italira durante a internação dela, pois os filhos evitaram que ele se expusesse ao vírus. Caso a vacinação no Brasil tivesse começado antes e fosse mais rápida, acredita Paola, os pais poderiam ser imunizados antes da cirurgia de Italira. "E ela estaria com a gente até agora", diz a assistente social.
A AvicoA morte da mãe motivou Paola a buscar uma forma de responsabilizar autoridades pela conduta na pandemia no Brasil, que atualmente tem mais de 500 mil mortes pela covid-19. "10 dias depois da morte dela, percebi que precisava fazer algo. Estava muito incomodada com o que estava acontecendo", diz.
Ela conta que decidiu procurar algumas pessoas em busca de ajuda até que se lembrou que Bernardes havia sido intubado meses antes. No passado, os dois haviam atuado juntos em organizações não governamentais (ONGs) de Porto Alegre."Várias pessoas me desencorajaram. Mas quando falei com o Gustavo sobre (a possibilidade de fazer algo pelas vítimas ou familiares de vítimas da covid-19), ele me falou sobre a possibilidade de montar uma associação", lembra Paola.
Bernardes também estava incomodado com a situação da pandemia no Brasil e tinha vontade de fazer algo em relação ao tema, após o período em que passou no hospital. Ele diz que a conversa com Paola o motivou a pensar em alguma iniciativa para responsabilizar autoridades brasileiras que tenham adotado medidas equivocadas durante a pandemia. A ideia de criar a Avico surgiu após o advogado assistir a um documentário sobre a "Noi Denunceremo" (em português "Nós denunciaremos"), uma associação italiana na qual parentes de vítimas e sobreviventes da covid-19 cobram o governo local sobre omissões e ações equivocadas no enfrentamento à pandemia.
A "Noi Denunceremo" começou como um grupo de Facebook em março de 2020, no qual italianos compartilhavam as histórias de familiares vítimas da covid-19. Diante de diversos relatos de negligência de autoridades, os responsáveis pelo grupo decidiram transformá-lo em uma instituição sem fins lucrativos, que passou a coletar histórias para que elas se tornassem queixas formais ao Ministério Público. Assim como a associação italiana, Bernardes e Paola também consideram que o principal objetivo da Avico é apoiar familiares ou as próprias vítimas da covid-19 e responsabilizar gestores que não adotaram medidas adequadas no combate à pandemia. "Fizemos uma reunião com mais três pessoas que enfrentaram a covid-19 e também participaram, no passado, da militância do movimento ligado à aids. Discutimos um estatuto e divulgamos nas redes no fim de março", relata Bernardes.
Dias depois, conta o advogado, já havia mais de 20 pessoas de diferentes lugares do país interessadas em ajudar a associação. Em 8 de abril, fizeram a assembleia de fundação da Avico. "A gente não achava que tivesse tanta repercussão, mas saiu na mídia de todo o país e fomos procurados por muita gente querendo algum tipo de orientação", diz o advogado. Segundo Paola, que é vice-presidente da Avico, há 17 pessoas, incluindo ela e Bernardes, que são consideradas fundadoras da associação. Além disso, atualmente há 125 membros de diferentes regiões do país, sendo que 45 são familiares de vítimas da covid-19 e os demais são voluntários. De acordo com a assistente social, há 210 inscrições na fila de espera para participar da associação.
A iniciativa tem dado apoio aos seus membros por meio dos voluntários. "Temos grupos virtuais que dão suporte às pessoas", explica Bernardes. Ele conta que há diversos grupos, como para suporte ao luto, para apoio jurídico, para iniciativas solidárias, para acompanhar crianças e adolescentes que perderam parentes ou foram afetados pela covid-19 e para questões relacionadas às vacinas. Há algumas semanas, a Avico deu entrada no registro do CNPJ — ainda não há prazo para a conclusão do procedimento. O cadastro será fundamental para ações futuras da associação, como para mover ações judiciais ou para receber apoio financeiro de seus associados.
...........O primeiro item citado na representação é a "ineficiência na condução da vacinação". O documento menciona que por diversas vezes Bolsonaro se posicionou contra a obrigatoriedade da vacinação, por meio de sucessivas declarações sobre o tema, como quando questionou a eficácia da CoronaVac por ser uma vacina "da China".
Ainda sobre o item, a representação cita que o governo federal "apostou em poucas vacinas" e faltou planejamento para a imunização no país. Outro apontamento é de que o Ministério da Saúde falhou em campanhas eficientes para esclarecer à população sobre a necessidade da máxima cobertura vacinal para eficiência do controle da doença.
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