Filho de escrava, João Cândido liderou a Revolta da Chibata, movimento de marinheiros que parou o Rio em 1910. Os rebeldes tomaram quatro navios na Baía de Guanabara e apontaram os canhões para a cidade. Ameaçavam abrir fogo se as punições físicas não fossem abolidas.
Às vésperas do motim, o marujo Marcelino Rodrigues Menezes havia sido castigado diante da tripulação do encouraçado Minas Gerais. Foi amarrado ao mastro e levou 250 chibatadas. A rebelião mobilizou 2.379 praças aos gritos de “Viva a liberdade” e “Abaixo a chibata”. Em mensagem ao presidente Hermes da Fonseca, eles protestaram contra a rotina de maus-tratos: “Pedimos a V. Exª. abolir a chibata e os demais bárbaros castigos pelo direito da nossa liberdade, a fim de que a Marinha brasileira seja uma Armada de cidadãos, e não uma fazenda de escravos que só têm dos seus senhores o direito de serem chicoteados.”
A Lei Áurea, assinada em 1888, ainda não havia chegado aos navios de guerra. Os marinheiros, quase todos negros, continuavam a ser açoitados pelos superiores, quase todos brancos. O motim instalou o pânico na então capital da República. Os rebelados mataram seis oficiais que tentaram reprimi-los. Um tiro de advertência matou mais duas crianças no Morro do Castelo.
A imprensa defendeu os marujos e apelidou João Cândido de Almirante Negro. No Senado, Ruy Barbosa cobrou o fim dos castigos e exaltou “o homem do povo, preto ou mestiço, que veste a nobre camisa azul da nossa Marinha”. O governo ofereceu uma anistia para encerrar o movimento, mas descumpriu o trato e expulsou a maioria dos rebeldes. João Cândido foi preso e confinado numa solitária. Absolvido, passou a sobreviver como estivador e vendedor de peixes na Praça XV. Na velhice, morava numa rua sem luz e sem asfalto na Baixada Fluminense. “Ele comeu o pão que o diabo amassou”, conta o historiador Álvaro Pereira do Nascimento, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Morto em 1969, João Cândido viraria herói popular. Inspirou músicas, peças de teatro e desfiles de carnaval. O Congresso aprovou uma nova anistia há 13 anos, mas os chefes militares insistem em açoitar sua memória. Nos últimos dias, a Marinha tentou convencer os senadores a desistirem da homenagem. Em nota, definiu a Revolta da Chibata como “um péssimo exemplo e um episódio a ser lamentado”. “A Marinha não reconhece o heroísmo das ações daquele movimento e o considera uma rebelião”, sentenciou. O texto admite que os castigos físicos não eram “corretos”, mas condena a “ruptura do preceito hierárquico”.
A proposta foi aprovada na sexta-feira e seguirá para a Câmara, onde a pressão deve recomeçar. “Os militares querem apagar a História. João Cândido morreu há 52 anos e continua a ser perseguido”, critica o professor Nascimento. Somando o tempo de banimento em vida, já são 111 anos de perseguição.
Bernardo Mello Franco, colunista - O Globo
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