Análise Política
Um aspecto tem passado algo despercebido em todo esse
imbróglio sobre o novo valor do Auxílio Brasil (ex-Bolsa Família) e de onde
virão os recursos: o assunto ter provocado a necessidade de aprovar uma emenda
constitucional. Isso parece ter decorrido de dois fatores: a decisão do Supremo
Tribunal Federal sobre os precatórios e o teto de gastos ter sido lá atrás introduzido
na Constituição.
Tudo sempre guarda alguma explicação, mas é bastante anômalo
que decisões simples de governo tenham passado a depender de mudar
sistematicamente a Constituição. É um sintoma de várias coisas, antes de tudo de
ter caducado a ordem constitucional construída em 1988. [a Constituição cidadã caducou antes de outubro de 1988 = a partir de quando começou a conceder direitos sem a contrapartida dos deveres.] É sintoma também do grave
enfraquecimento do Executivo. Uma tendência inaugurada pelas vicissitudes de
Dilma Rousseff e acelerada no intervalo Michel Temer.
A eleição de Jair Bolsonaro representou um impulso à
retomada da centralidade política do Palácio do Planalto, mas a tendência
centrífuga retornou conforme o presidente se enfraqueceu devido aos próprios
erros políticos, especialmente na abordagem da Covid-19. [em nosso entendimento, o presidente Bolsonaro pode até ter pensado em errar em uma eventual abordagem da Covid-19, só que o Supremo ao conceder poderes supremos às autoridades locais, proibiu na prática e na teoria qualquer iniciativa do presidente da República, no tocante a eventual combate à pandemia.
Impõe-se perguntar: como poderia Bolsonaro tomar alguma iniciativa no combate à covid-19? tendo em conta que decisão do Supremo o proibiu de contrariar àquelas autoridades que, no afã do protagonismo, decidiam às cegas, sobre tudo e sobre todos, guiados apenas pelo interesse de se antecipar até mesmo a eventuais pensamentos do Chefe do Poder Executivo Federal?
Outro erro atribuído ao presidente Bolsonaro foi nas alterações que buscou promover no 'estatuto do desarmamento', ao inicio do seu Governo, se valer de decretos para modificar leis = que lhe foram apresentados, não se sabe se por incompetência ou sabotagem, talvez nascida na Casa Civil, de apresentar decretos para alterar leis.
Várias tentativas de mudanças caíram, o que propiciou aos inconformados com sua eleição, chances de passar narrativas desautorizando o presidente, que esquecendo os sábios ensinamentos do poema "No Caminho
com Maiakóvski,
abriu espaço para muitas ações contrárias ao seu governo e que resultaram na situação atual, exposta adiante.] E
chegamos à situação
atual,
quando mexer nos programas sociais depende de PEC, e a rotina diária dos
ministros do STF supõe passar o tempo desfazendo o que o governo faz.
A situação agrada a quem está na oposição pois vai levando à
progressiva paralisia governamental, e também neutraliza as teóricas vantagens
operacionais da maioria congressual.
Antigamente, governar dava trabalho.
Era
preciso ganhar a eleição de presidente e formar base parlamentar sólida. Hoje
em dia, basta eleger meia dúzia de deputados e recorrer ao STF quando o governo
faz algo que desagrada à opinião pública. [sendo que muitas vezes a 'opinião pública' se resume a um punhado de deputados, integrantes de partidecos SEM noção, SEM votos, SEM representatividade, SEM nada e que acham que governar é judicializar qualquer coisa, que entendam possa torná-los menores e mais inúteis.]
É uma situação confortável para quem, na política, não tem
perspectiva de poder formal e regular, e também para quem mais influencia o ir
e vir dos cordéis que movimentam a opinião pública. A dúvida é sobre a
sustentabilidade. Um debate constante no Brasil é se as instituições estão
funcionando. Estão funcionando sim, e funcionando tanto que o sistema de freios
e contrapesos chegou ao estado da arte, com eficiência ótima: tudo travou.
A dúvida é como vamos sair da pasmaceira. Um caminho é
sempre a eleição presidencial. O problema: faz muito tempo a humanidade já sabe
como transformar ovo cru em omelete, mas a rota inversa é um mistério que
permanece insolúvel, desde sempre, aos mais brilhantes cérebros científicos. É
ilusão imaginar que bastará eleger alguém para “as instituições” recolherem-se
à casinha.
Mas História não é Biologia ou Química. Na História, o
omelete pode voltar a ovo cru. Geralmente, situações assim são destravadas por
alguém que acaba cortando o nó górdio. Uma coisa é certa, como já foi dito: o
cenário crônico de paralisia política, baixo crescimento econômico e travamento
institucional não permanecerá indefinidamente. Alguma transição virá. Há apenas
duas dúvidas: quem a fará e como.
Alon Feuerwerker, jornalista e analista político
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