Alexander Lukashenko costuma ser astuto
em sua desumanidade. Currículo para isso ele tem, como primeiro e único
“presidente” da Bielorrússia desde que esse antigo Estado-satélite da
União Soviética tornou-se república, em 1990. Na última das eleições
fraudulentas realizadas no país — a de 2020, para um sexto mandato de
Lukashenko —, ele proclamou ter obtido 80% dos votos. E foi logo
avisando ao mundo democrático: “A menos que vocês me matem, não haverá
mais eleições”. O cara vive às turras com a União Europeia (UE), que lhe
aplica sanções múltiplas por seus modos ditatoriais, e alinha-se com
fervor à Rússia de Vladimir Putin, o vizinho imperial da fronteira
leste.
Em tempos recentes, Lukashenko encontrou a maneira mais infame de
ostentar seu poder e azucrinar a Europa democrática. Passou a importar
como gado humano milhares de errantes de nações desintegradas do Oriente
Médio e da África do Norte, para socá-los na soleira da porta trancada
da sonhada União Europeia — mais precisamente, nas fronteiras com a
Polônia, a Lituânia e a Letônia, todos países-membros da UE.
Seu esquema é tão azeitado quanto vil. Primeiro, agentes de viagens
bielorrussos instalados no Iraque, Turquia e outros países oferecem
voos, vistos de entrada e um possível recomeço de vida no Ocidente. Ao
custo de alguns milhares de dólares por cabeça, aviões de carga da
estatal Belavia transportam a carga humana até Minsk, capital da
Bielorrússia. Mas dali são transferidos para uma viagem terrestre sem
volta. Quando descarregados, têm à frente uma intransponível muralha de
arame farpado como fronteira e, às costas, a guarda armada da
Bielorrússia a impedi-los de sair dali. Pelas contas da revista The
Economist, perto de 2 mil migrantes já foram estocados nesse limbo em
pleno início de inverno, e outros 20 mil estariam aguardando seu destino
em outros cantos do país-cilada.
A lógica de Lukashenko consiste em gerar uma crise política europeia
semelhante à de seis anos atrás, quando uma avalanche migratória de
proporções bíblicas, vinda do mar, quase derrubou vários governantes. Na
tentativa de forçar a UE a levantar as sanções impostas contra seu
regime, o homem forte de Minsk também ameaça interromper o trânsito de
gás natural russo que atravessa a Bielorrússia antes de aquecer e manter
a Europa em funcionamento.
Por ora, esse plano B de Lukashenko tem
poucas chances de ser levado adiante, pois não atende aos interesses
atuais de Putin.
Essa é uma arma cujo direito a eventual uso somente o
Kremlin quer ter. Mas resta a massa de manobra de quem hoje foge da
miséria e da violência. Expulsos de suas raízes, arriscam-se por
caminhos incertos, sem rumo claro, a esperança minguando.
Nem sempre foi assim. Basta ver o notável acervo de fotografias
reunido pelo chefe do Departamento de Registros de Ellis Island,
Augustus Frederick Sherman, entre 1905 e 1914, nos Estados Unidos. Por
aquela ilha vizinha à Estátua da Liberdade, fincada na Baía de Nova
York, passaram mais de 12 milhões de imigrantes entre sua inauguração
como porta de entrada nos EUA e novembro de 1954, ano em que se tornou
obsoleta. Mais especificamente, imigrantes de terceira classe, pois
passageiros marítimos da primeira e segunda classes podiam desembarcar
diretamente nos cais de Nova York e Nova Jersey.
É extraordinário o garbo com que esses desprovidos da terceira classe
procuravam se apresentar no desembarque, para a inspeção médica contra
doenças contagiosas e regulamentação de documentos.
Fosse o
recém-chegado ao Novo Mundo um pastor de ovelhas da Romênia ou um
mineiro da Baviera, um padre ortodoxo da Grécia ou um soldado albanês,
uma família de ciganos da Sérvia ou uma mãe com duas filhas vindas da
Holanda, quanto zelo em se mostrar com a melhor roupagem!
Graças ao
interesse pessoal do funcionário Sherman por fotografia, existe um
registro impactante e comovente dessa gente. Vale a pena consultar esses
retratos de fácil acesso na internet para admirar o zelo orgulhoso de
indivíduos e famílias ao pisar em Ellis Island. Portavam o que tinham de
mais bonito, mostrando suas raízes.
Tinham motivo para desembarcar
esperançosos, pois, apesar das agruras e sacrifícios que só desterrados
conhecem, haviam chegado ao destino escolhido.
O que dizer do amontoado de vidas na fronteira bielorrussa? Não há
garbo possível nem orgulho identitário nos agasalhos de plástico, jeans e
tênis surrados, nem em bonés, toucas de lã ou xales misturados. No
fundo, seja em terras europeias ou rumo aos Estados Unidos via México, o
desterrado de hoje veste uniforme globalizado: quase tudo made in China
ou em Bangladesh. Das 60 toneladas de roupas descarregadas anualmente
no porto chileno de Iquique, para revenda na América Latina, mais da
metade encalha e forma pirâmides de lixo no Deserto de Atacama, como
noticiado nesta semana.
Esse lixo de roupas usadas e descartadas nos
Estados Unidos, Europa e Ásia por consumidores globalizados forma um
triste retrato do capitalismo perverso. Na outra ponta, temos os
descartados de suas terras a perambular pelo mundo. É torcer para que
não venham, também, a ser considerados lixo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário